quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Quem sou eu verdadeiramente?



Por que o eu descrito nas Confissões de Santo Agostinho (~400 d.C) é mais verdadeiro do que o eu pensado por Descartes em seu Discurso sobre o método (1637)? De outro modo, por que o eu que se confessa é mais real do que o eu que se pensa?

O eu descrito por Santo Agostinho vai se mostrando na própria biografia, reconhecendo a impossibilidade de ser fundamento de si mesmo, aceitando a primazia do entorno em relação a si, entendo-se projeto e imperfeição caminhante. Este eu reconhece seus afetos, suas relações, suas derrocadas, e seus pontos de virada, em uma palavra, sua navegação na vida, ou, em uma palavra mesmo, a vida. 

A partir desta reflexão, dois respeitos surgem de forma irredutível: a Deus, como necessidade primeira da existência; ao outro, como impossibilidade de ser extinguido. O sagrado e a ética dão-se as mãos na abertura fundamental do eu para o mundo. 

O eu cartesiano é provado a partir de um conjunto de refutações que vão deixando de lado tudo o que dá suporte a ele. Um eu assim, hipoteticamente cogitado, é um fantasma na pior acepção do termo. É vaporoso, impalpável, imaterial. Não há possibilidade de atuação na vida. Desconsiderando os outros, mas também suas possibilidades de falha, tão pouco tem carne para acertar qualquer coisa. Tamanho foi o labirinto em que Descartes se meteu, que após todo o esforço da dúvida hiperbólica, o eu a que chegou como fundamento da existência era um incapaz de se comunicar com tudo o mais, necessitando aceitar dogmaticamente a necessidade de Deus para lhe salvar deste isolamento total (ontológico). 

Conseqüências funestas se originaram a partir deste eu cogitado: o outro só pode existir quando for possível se reduzir (leia-se: se curvar) ao meu pensamento; Deus (isto é, qualquer realidade que me transcenda) é uma hipótese inapreensível, não evidente. A ética e o sagrado são expulsas do exercício científico, pois este, com seu séquito de eus inchados, não pode reconhecer sua insuficiência total (ontológica).  

Se há uma coisa que nos faz mais conhecedores de nós mesmos, e até mesmo mais livres, esta coisa é se confessar, entrar na própria alma e apontar suas falhas. O reconhecimento de nossa insuficiência é a abertura primeira para nos reconciliarmos com a vida. 

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