(Reflexão engendrada por ocasião de palestra proferida ao dia 27 de setembro de 2017 acerca do tema "A coragem da fé", presente em O Evangelho Segundo o Espiritismo)
E o barco estava já no meio do mar, açoitado pelas ondas; porque o vento era contrário; Mas, à quarta vigília da noite, dirigiu-se Jesus para eles, andando por cima do mar. E os discípulos, vendo-o andando sobre o mar, assustaram-se, dizendo: É um fantasma. E gritaram com medo. Jesus, porém, lhes falou logo, dizendo: Tende bom ânimo, sou eu, não temais. E respondeu-lhe Pedro, e disse: Senhor, se és tu, manda-me ir ter contigo por cima das águas. E ele disse: Vem. E Pedro, descendo do barco, andou sobre as águas para ir ter com Jesus. Mas, sentindo o vento forte, teve medo; e, começando a ir para o fundo, clamou, dizendo: Senhor, salva-me! E logo Jesus, estendendo a mão, segurou-o, e disse-lhe: Homem de pouca fé, por que duvidaste? (Mateus 14:24-31)
O primeiro elemento que me chama a atenção nesta passagem são as águas em meio ao vento contrário e o açoite das ondas. Andar sobre elas é ainda mais assustador do que ver um fantasma. Todavia, Pedro se atreve.
Dizem os biólogos que o mundo nos acolhe líquido ao ventre materno e, por muito tempo, permanece líquido para nossa compreensão.
Quando finalmente o entendemos sólido, vêm os filósofos e sociólogos, e dizem que permanece líquido. É o apeiron de Anaximandro, mas também o mundo líquido de Bauman, por motivos diferentes. O primeiro entendia que nosso gueto de existência está circundado por um sem fim de caos inapreensível, de onde tudo deve ter se originado. O segundo entende que a concepção mais ou menos rochosa da realidade que a cosmologia dos antigos e a teologia dos medievais nos davam se liquefez nestes tempos pós-modernos. As amizades e os amores não possuem mais aquela eternidade de antes, mas se desfazem com qualquer vento contrário e açoite de uma onda qualquer.
Essa concepção é a visão da primeira metade da cena evangélica que expus. O temível mundo das águas. Mas, há algo além do vapor do mar. O que é? Jesus, seu convite e sua postura de acolhimento.
Sabe-se que Jesus era um homem de tal encanto e magnetismo que sua presença acalmava nossos mares revoltos. De outro modo, sua mesma presença tinha o poder de provocar morte nas pessoas: do que elas vinham sendo para, então, ressuscitarem no que elas estavam destinadas a ser. Isso é o que demos para chamar, na tradição cristã, de conversão.
De volta às águas, lembramos que na imagem veterotestamentária, tudo antes de ser criado por Deus era apenas água. E o Senhor pairava sobre elas.
A associação me parece clara. A cena em que Jesus paira sobre as águas reproduz solenemente o ato criador do mundo. Pedro teme e cai. O fundo das águas se mistura com sua morte iminente. Jesus toma-o pela mão e o salva, o que quer dizer uma nova criação para Pedro. Se antes ele ainda não existia em Cristo, desta vez pode se considerar batizado para a nova vida.
Isso não impede que Pedro venha a experimentar a morte do cristão em outras passagens, particularmente quando nega o rabi. Mas, o cristão não é reconhecido pela sua perfeição, mas pelo jeito de sua caminhada, buscando pairar sobre as sólidas palavras de Cristo, ainda que em passos vacilantes.
Ao mundo líquido de Bauman ou ao apeiron de Anaximandro, ou ainda, ao universo da termodinâmica que se derreterá em caos após toda a energia ter se dissipado em calor, sobreviverá o Espírito de cada pessoa que Deus criou. Tão logo qualquer corpo submergir nas águas primárias da criação, é a mão de Deus que resgatará o homem para continuar sua escalada em outros corpos, planetas, universos criados.
O mundo vem precisando de Cristo sobre as águas. E enxergá-lo perto de nós com sua mão estendida, acredito ser a grande resposta do mal-estar do milênio.
Figura: De Amédée Varin, Le Christ marchant sur la mer. Disponível em http://www.culture.gouv.fr/GOUPIL/IMAGES/101_Christ_sur_eau.jpg (Gravures et eaux fortes)
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