domingo, 4 de março de 2018

Diálogo in extremis



(Um padre chega ao leito de morte de um, digamos, quase-pagão para fazer a extrema-unção)

Padre: Aceita Jesus como seu único Deus e salvador? 

Quase-pagão: Não. 

P: Por que não?

QP: Não posso. 

P: Você reconhece a grandeza de Jesus?

QP:  Demais.

P: Então?

QP: Não ao ponto de fazê-lo o próprio Deus. 

P: Você concebe Deus fora da imagem de Cristo?

QP: Não.  

P: Ficou menos compreensível ainda sua negação.

QP: Cristo é, do Deus transcendente, a Sua imanência no mundo. Todo aquele que ascende à completa consecução da Vontade do Pai passa essa intensidade da encarnação de Deus. Não conheço outro na história humana que tenha sido melhor manifestação. 

P: Você está se enrolando. 

QP: Não. Não conheço, eu disse, não posso afirmar que não há. Minha vida, nos limites que a dimensão humana me impôs, fazem-me reconhecer Jesus como Aquele que veio nos salvar. Não posso, por força do infinito que nos foi revelado nos últimos séculos, reduzir todo o cosmos ao homem que, de outro modo, foi a minha unção de Deus. 

P: Você concebe alguém maior que Cristo?

QP: Não. E isso fala menos a favor da grandeza dele do que da minha pequenez. Dediquei-me a vida para que esta pequenez não representasse um tributo à verdade, mas a Cristo. 

P: Se você não reconhecer Cristo como seu senhor e salvador é possível que o inferno te espere. 

QP: Eu entendo seu ponto, padre. Sei mesmo das passagens que podem fundamentar essa sua fala. É forte sua ameaça. Vejo o fogo eterno que pode me queimar sem nunca me consumir. Espero que este momento histórico que vivemos, imperfeito, inacabado, não tenha conseguido enxergar o sentido último da danação e da salvação. Espero que sua fala não represente a verdade um dia dita e para sempre lacrada da palavra de Deus. Acredito que esta palavra desdobra o seu sentido na história, que a história não chegou ao fim, que talvez nunca chegará, que apenas no além é que possamos findar as disputas. Aqui vivemos de carne, sangue, ossos e interpretações, logo ali viverei a verdade. 

P: É possível que sua passagem para o céu seja vedada por esse orgulho. 

QP: Que ao possível seja dada minha última devoção. A criação, desde todo o sempre inacabada, cerrará suas portas quando encerrar meu suspiro. A terra prometida, creio que não é aqui. A promessa se cumpre fora deste nosso encontro, padre. Sinto-me como a nubente na noite de núpcias. O meu amado não é você. 

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