segunda-feira, 26 de março de 2018

Crítica teatral à certa peça de amigos



Um grupo de teatro espírita amigo havia me convidado para criticar sua peça. Depois me pediram para escrever o que havia dito, como se fosse um manual de instruções das possibilidades de reconstrução. Teria sido essa a vontade deles? Quase o fiz. Sentei pra fazer, mas me veio a vontade de apenas reforçar a ideia, a força, o emblema.



Amigos,

É importante ter em mente que ninguém escreve um texto sem estar filiado à uma cosmovisão. Isso é ponto pacífico nas ciências humanas. Mesmo o artista que quer se dizer independente de escolas está participando da escola dos independentes, e isso virou moda na arte moderna. A regra é transgredir, e virou regra mesmo. De tal forma que se alguém segue regras antigas é execrado pelos pares que não seguem regras. A cosmovisão está explícita: não há regras porque o mundo é um caos, é a ausência de sentido, é um conjunto de forças aleatórias que nos dilaceram. A lógica é a do desespero. O mal estar é a norma, e a resposta só pode vir do próprio acaso, que também pode gerar a piora da depressão. Ninguém o domina mesmo, este tal de acaso.

Percebi isso na medicina. A cada 5 anos, diziam pra gente, tudo mudava dos dogmas médicos, por isso que ninguém deveria se fiar em livros que tivessem mais de 5 anos. Sempre tive um incômodo com isso. Era óbvio, todos aceitavam. Eu não. Eu odiava essa perspectiva. Depois fui entender que me incomodava com aquilo porque fui criado e acreditava piamente que havia verdades eternas que conduziam a realidade apesar da voracidade do tempo que mastiga tudo. O que havia em mim era a luta entre essa minha forma de ver a vida e a forma que a medicina queria me impor.

Por que essa digressão? Porque quando vocês dizem abertamente que não vão falar sobre isso ou aquilo do Espiritismo, apesar de serem espíritas, estão abrindo a brecha para que outra cosmovisão assuma a lacuna que vocês deixaram. Quem é a filosofia mais óbvia que pode assumir a lacuna de quem abdica dos seus dogmas religiosos? A materialista ou imanentista (o aqui e o agora somente).

Sartre dizia que a ideia de Deus era de menor importância para construir seu sistema filosófico. Ora, só porque o seu sistema filosófico erigia o homem como deus de si (a existência precede a essência). Não era que a ideia de Deus era de menor importância, mas surgia como uma inconsistência e um contra-argumento devastador. A maior parte dos filósofos do mundo entreguerra construíram sistemas que buscavam uma explicação que a ideia de Deus não havia sido suficiente para explicar - para eles. Daí vir os sentimentos mestres destas correntes: a filosofia do tédio, da falta de sentido, da insignificância do sujeito, e do desespero. Como reconstruir respostas apenas com estes elementos?

Resposta espírita: não dá.

Se estes sistemas filosóficos tivessem analisado o fenômeno das mesas girantes com respeito, teriam percebido que:

  • Não há tédio, pois a música quase ao final dá sempre uma guinada, e mais outra, quando reencarna, e assim vai;

  • Não há falta de sentido. Se olharmos apenas para a vida dentro da vida, não há sentido. Ir da vida para a vida, do aqui para o aqui não é sentido nenhum. Só faz sentido falar de sentido, se houver um fora da vida para onde nossa vida está apontada;

  • Não há insignificância do sujeito. O coração teimoso persiste glorioso após o esmagamento de toda a matéria arredia. E o que sobrevive é o coração de pessoas singulares, sujeitos na maior acepção do termo. 
 
  • Não há desespero último. A estrutura da realidade está sempre grávida da intervenção divina, esperando apenas o tempo de acontecer o advento de Cristo em nós. Esperar, e vir a acontecer sempre no momento oportuno.

Então, uma peça espírita não é espírita porque contém as palavras reencarnação, obsessão, imortalidade da alma, mas porque as histórias que nela se desenrolam:

  • Possuem um sujeito que fala, para quem Deus olha como pessoa singular, não perdido numa massa qualquer, mas um filho querido;

  • Possuem sentido que transcende todo e qualquer problema, desfaz todo e qualquer nó, ressuscita em redenção. Sempre tem que haver redenção, senão não acabou a história;

  • Se há essa resolução redentora, adeus tédio! Bem-vinda roda viva que continua a girar em círculos espiralados para o alto e além;

  • Não há desespero último, pois a espera sempre é beijada pelo advento do amado. Este amado era o esperado, aquele que haveria de vir. E ele desce para resgatar todos os que estavam perdidos.

Esse último elemento é bem cristológico, mas também não precisa ser o próprio Cristo. A velinha do final da peça é a vozinha amada que o garoto do lado esperava. O garoto é a companhia querida que a vozinha almejava. Estes dois são os ouvidos atentos que o músico queria para dedilhar seus acordes finais. Mas, mesmo o encontro dos três é pouco, pois a promessa espírita é que "o amado" resgata as pessoas da corrupção da carne, isto é, de sua mortalidade. Esse encontro, para ser cristológico, tem de gerar vida, e vida eterna - para todos e para cada um. Esse encontro é revolucionário, entorta rotas, revolve os caminhos, desnorteia os de visão obtusa de tão clara que é a luz que dele explode.

Toda solução das histórias espíritas se resolvem com a geração de vida, e vida eterna - para todos e para cada um.

Acho mais fácil entregar estas reflexões do que ficar tricotando a peça de vocês com intervenções minhas. Coloquem isso na cabeça, que foi o que aprendi até agora, e acho que conseguiremos construir bem nossos enredos.

Obrigado por me darem ouvidos, fico lisonjeado!

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