sábado, 21 de março de 2015

Inquisição de Curandeiros em pleno Iluminismo



O historiador Thimothy Walker, da Universidade de Massachusetts-Dartmouth, andou pelas terras de Portugal coletando dados para o seu doutorado sobre a caça aos bruxos curandeiros à época da inquisição portuguesa no auge do século XVIII. 

O século XVIII, pessoal, foi o século do Iluminismo, da Enciclopédia, de Voltaire que dizia defender até a morte o direito do outro falar embora não concordando com ele. Havia visto há pouco Descartes separar igreja e laicos no pensamento do método, Newton com um galo na cabeça pela maçã que o fez ter a intuição da gravidade. Mas, claro que isso se deu para além da península Ibérica, porque nesta, a cauda da inquisição ainda deixava escombros. 

É isso que vai mostrar Walker em seu livro Médicos, medicina popular e Inquisição: a repressão das curas mágicas em Portugal durante o Iluminismo. Tendo passado oito (!) anos lendo processos de inquisição, descobre o forte conluio que a medicina oficial firmou junto à igreja a fim de desacreditar as práticas e punir os praticantes da medicina popular. Diz-nos o pesquisador:

"Acreditava-se que algumas pessoas nasciam com um dom, uma capacidade divina de curar pelo toque das mãos. Eram os chamados saludadores. Eles usavam suas mãos para ‘extrair’ a doença ou o que quer que fosse que estivesse a causar sofrimento ao paciente. Por isso, os saludadores preocupavam muito a Inquisição. Pois, teologicamente, havia um entrave: ou essas pessoas estavam sob forças demoníacas; ou Deus poderia, quem sabe, estar mesmo atuando por meio delas. Isso seria um problema e tanto para a Igreja, pois naquela época ensinava-se que a era dos milagres já havia terminado. E a existência de pessoas comuns com capacidade de cura era algo que contradizia a ortodoxia da Igreja." (em entrevista ao Ciência Hoje)

Vamos aprofundar um pouco a questão de "Deus poderia, quem sabe, estar mesmo atuando por meio delas". 

A base do cristianismo oficial é que Deus se manifestou em Jesus e, por isso, ele conseguiu curar e, o que estava constantemente associado ao ato de cura, perdoar pecados. Se um qualquer pudesse fazer esse mesmo ato, Jesus poderia não ser mais que um simples mortal, portador de uma brecha para divindade como qualquer outra pessoa. Claro que sua superioridade moral ainda valia demasiadamente, mas eram os milagres que deram à sua palavra a força de Deus. Se Jesus fosse apenas o mais bem dotado de todos os seres humanos que já passaram pela Terra, diferindo-se de nós apenas de forma quantitativa e não qualitativa, isso seria o fim de uma autoridade que descolava a Igreja do mundo secular, deixando seu poder fragilizado. 

As conseqüências para essa fragilização do poder espiritual não se daria apenas em termos de política e economia, mas dentro dos próprios valores morais que sustentavam as pessoas, bem como na dissipação das angústias sobre o destino último da vida que, rezava o catecismo, seria ao lado daquele que, tendo vencido a morte, era o dono do Céu em que se findavam todas as misérias que o mundo material outorgara. 

Todavia, é exatamente esse desfecho que o Iluminismo vai lograr alcançar na secularização do mundo. Destruindo o poder intemporal da igreja e dos nobres, as pessoas terão o terrível desafio de encontrar o sentido da vida em outro lugar que não no Céu ao lado de Jesus. Terão de fundar o Reino dos Céus na Terra, pelas próprias mãos. É essa a proposta da democracia. Será a luta dos socialistas. Será a busca dos liberais. Com que armas? Nada que escape do humano. Nada que lembre os sacerdotes ou a natureza hierarquizada da realeza. Tudo que seja próprio do homem: a luta, o trabalho, o debate, o diálogo, a razão. Nada de dádiva, nada de dom, nada de messianato. 

É nessas últimas negações (contra a dádiva, o dom e o messianato, acresça-se a esta lista o mediunato) que o Iluminismo será também um inquisidor da medicina popular. É essa obra que eu ainda estou para encontrar. Precisamos de alguém de fôlego e coragem para construí-la. Sobre isso falarei em outro post. 

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Ficam mais alguns lugares em que você pode ver mais sobre o estudo que citei:

  • Entrevista concedida à Agência Fiocruz de Notícia: aqui.

  • Entrevista concedida ao Ciência e Letras:




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