terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Não há iniciados no Espiritismo, mas iniciantes



As religiões, grosso modo, herdaram uma forma de abraçar seus adeptos através de rituais que os façam se sentir incorporados na igreja. Os batismos mais diversos objetivam fazer-nos renascer em um outro eu, agora purificado de tudo o que há de fora para, enfim, sermos iniciados em seus conhecimentos esotéricos.

A coisa se arrefeceu nestes séculos de laicização, esmaecendo as cores destes rituais, tidos mais como simbólicos do que efetivamente transformadores da substância de um convertido. No Espiritismo, contudo, adotamos um outro caminho: interiorizamos e estendemos a iniciação por toda a existência.

Seguindo radicalmente um movimento singularmente cristão, o da interiorização das práticas exteriores, nossas iniciações passaram a se dar dentro da alma, na medida em que penetrássemos nos conhecimentos revelados pelos Espíritos, burilados por Kardec. Ninguém vê as águas que nos banham, não há platéia para nossos sacrifícios. Os livros canônicos estão acessíveis a todos, prestando-se à releitura diária para a conversão íntima. Não há sacerdotes prescrevendo deveres espirituais, quando muito, alguém mais experiente nos estudos que fornece perspectivas de leitura.

Por isso vejo como complicado haver um catequismo espírita que busca a uniformidade das ideias e ações. É assim, por exemplo, que um rapaz com angústias em relação a sua sexualidade, sendo espírita, vai sentar-se reservado no quarto e ler as obras da doutrina em busca das respostas para si. Quem poderá dizer taxativamente que sua interpretação está errada? Deus o dirá! Duvido que haja algum representante Dele encarnado entre nós.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Em clima de carnaval: a carne reconciliada pelo cristianismo



Muitos nietzschianos enchem a boca para dizer que a carne foi repudiada pelo cristianismo, que é um platonismo para a plebe e, portanto, que despreza o sensível em favor do inteligível, ou que, pelo menos, considera aquele uma escada deste. 

É o conflito do sexo com o amor, senso comum. Mas, quando Jesus vem homem, e acolhe crianças nos braços (sorriso calcáreo), e chora (lágrimas de carbono), e morre (sangue de gente), e ressurge materializado (corpo espiritual); quando, enfim, toda uma doutrina surge sobre esses símbolos, a ponto de se considerar vã se não fosse por eles, não é a rejeição da carne de que se trata, mas de sua redenção, de sua reconciliação com o mundo dos espíritos. 

Ao dizer que não vinha destruir a lei, mas a cumprir, dava novos ares para as letras escritas nos pergaminhos, couros mortos. Pedia para que ela, a lei, a partir de então, se inscreve-se no coração - eterno pulsar do espírito. 

Eros é o caminho que se completa em Agape. Agape o fim para onde Eros aponta. 

Deve ser difícil para muitos espiritualistas entender que Agape seja fundamento de Eros, para sensualistas coroar Eros com Agape. Mas, um filho, e o amor que com ele vem, é tudo o mais o grande símbolo dessa fusão. 

Salve todas as famílias, e salve a alegria neste carnaval! 


sábado, 14 de fevereiro de 2015

Diabolos: um ser histórico

O catecismo da igreja católica reconhece o diabo como uma entidade devotada ao mal. Sua profissão de fé é afastar, por sedutoras artimanhas, os indivíduos comuns de Deus. Sua existência faz pensar que o mal como absoluto seria possível. Mas, como o absoluto é só Deus, o mal seria apenas uma revolta cujo fim é inevitável, se não previsível. 

Fora dessa ordem de divindades, trazendo as conseqüências dessa cosmovisão para o cotidiano, entende-se por ato diabólico o que abraça o mal como projeto. O diabólico não é qualquer mal ou erro, é ter a maldade como meta. 


Era o que víamos no nazismo, por exemplo. É o que os militantes do movimento anti-manicomial pretendem ver nos psiquiatras, os marxistas nos empresários, os sem-terra nos latifundiários, as feministas na sociedade patriarcal, os pesquisadores das ciências humanas nos cartesianos, etc. Os espíritas nos obsessores. Sempre o adversário é o maligno. 

Nunca é tão simples assim. Essa visão é suspeita porque extremista. Por trás de cada ação histórica há seus condicionantes que servem de atenuantes e nos dispensam do julgamento ácido, embora não de qualquer julgamento. O direito de buscar a justiça permanece ileso, mas não a vingança, não o ódio. E é o que constantemente vemos nessas intrigas de opostos. 

Se começássemos ressignificando a mitologia que origina toda essa forma de pensar, a do Satanás, poderíamos ter mais lucidez nessas variantes. Começo então o exercício dessa revisão sobre o mal personificado:

Não há um ser devotado ao mal. Todos somos sujeitos ao erro. As condições históricas delineiam as necessidades da época, esclarecem a ignorância de então. O tempo muda e os pensamentos com ele. Cedo ou tarde, com mais ou menos lutas, mas sempre com trabalho incessante, o diabolos em nós deixa de fazer sentido e desaparece de nosso espírito feito órgão vestigial. Essa transição pode ser mais ou menos cruenta, dependerá das virtudes que tenhamos podido angariar. 

sábado, 7 de fevereiro de 2015

Meu filho quer ser católico

Depois de ter começado a expor a sabedoria dos ateus, fiquei me perguntando por que não a dos crentes. Como não tenho nenhum amigo próximo que esteja em conflito com sua fé, decidi, para ficar mais intensa minha fala, imaginar o que eu diria se meu filho decidisse não seguir minha religião.

No marcador Outros Credos vou postar minhas falas para ele.



- Pai, decidi, quero ser católico!

O catolicismo, filho, é uma doutrina muito bela. Demorei para descobrir isso. Quem me ajudou foi sua mãe. Queria saber como ela entendia Deus. 

Bem, a primeira coisa que posso dizer é que, embora o catolicismo tenha um forte braço racional, enxerga que Deus deve ser mais sentido que entendido, mais aceito que estudado. E isso não é ruim... Eu também acredito nisso. É porque Deus é superior a nossa lógica que não O podemos acessar por ela, mas pela humildade, mas pela virtude, mas pela oração. 

A novidade do catolicismo é eles terem visto Deus em Jesus. Esse moço andou pela terra, acalmava feras com o olhar, consolava corações com a presença, curava doentes graves com o toque, sentava em cima de um pequeno monte e falava de Deus e de Sua morada para o povo semeado pelos espaços. De fato, era, no mínimo, um deus.

Os romanos, um povo que morava junto do dele, não tinha problema de ver isso. Para eles os deuses poderiam descer dos céus e andar feito gente entre as gentes. Mas, para os judeus, que era o povo de Jesus, dizer isso era complicado, um escândalo. Não há deuses, mas um só Deus. A carne humana não O agüentaria. Todavia, alguns discípulos de Jesus compraram essa briga. As evidências eram fortes demais. Tudo o que havia nas antigas escrituras sinalizando a vinda do libertador deles (os judeus eram escravos do povo romano, e já vinham de outros ciclos de escravidão) se concretizava em Jesus. Parece que não imaginavam que ele viria com milagres, também. E isso deve ter ferido os olhos a tal ponto de deixar exposto o coração e ter feito concluir, enfim, que aquele rapazinho não era apenas o libertador do povo, mas o próprio Deus que, compadecido e cheio de amor, havia encarnado em um homem para a salvação de muitos. 

Pode-se inventar mil raciocínios para defender a mensagem do amor, mas a grandeza do catolicismo repousa e se movimenta integralmente na passagem de Jesus pela Terra (que foi amor), na sua morte e espetacular ressurreição (pelo amor), bem como na fidelidade de seus discípulos estarem há dois mil anos tentando seguir tudo o que ele ensinou (por amor, para o amor) - ele: o homem-Deus (amor-Amor). A força dessa crença não dorme em qualquer livro de filosofia, mas acorda e resplandece na divindade de Jesus. 

Sobre a pergunta mais destruidora para qualquer religião monoteísta: "Se Deus existe, de onde vem o mal?". Os católicos respondem que nasce com o homem desobediente à Deus e que morre com o homem que soube obedecer. Segui-lo, ele que é caminho, promove a salvação do mal. 

Mas, isso não responde a pergunta: "Se Deus existe, de onde vem o mal?". Porque a força dessa pergunta é em virtude da concepção de Deus que não comporta o mal. Jesus não seria uma resposta, mas um alívio (e, ao final de sua vida, foi uma vítima desse mal). Se o mal nasce do homem, e o homem nasce de Deus, o mal nasce de Deus - eis o silogismo do ateu. 

A verdade é que os cristãos (os católicos entre eles) não se importam tanto com essa pergunta, mas com o alívio que Jesus é. Nunca a precisaram responder para querer ardentemente acabar com o mal da Terra, para trabalhar pelo fim de todo o mal. A ação mais valiosa que a razão. A fé mais do que a procura. Porque o amor basta: a falta dele antes, a presença dele com Jesus. 

sábado, 31 de janeiro de 2015

Curar é assumir os demônios das pessoas



Tive um pesadelo dias desses em um plantão. Pacientes começavam a chegar ininterruptamente trazidos pelas ambulâncias, sangrando muito, com cortes grandes. Mas, o pior deles estava com uma úlcera na zona axilar, por onde tínhamos acesso ao pulmão, que estava completamente enegrecido e se desfazendo. Sem dor e sem anestesia, conseguíamos retirar os arcos costais anteriores, e a paciente viva. O pulmão se desfazia necrosado em uma pasta gelatinosa que um dos estudantes que nos acompanhava inventou de provar um pouco para tentar reconhecer o tipo de câncer que estava a nossa frente. Isso fez com que um edema de glote se instalasse nele. Foi só então que eu, até agora sob controle das minhas emoções, comecei a me desesperar. 

- Não podemos deixar esse rapaz morrer! - acordei. 

É que só naquela noite, em vigília, havia atendido dois edemas de glote. Graças a Deus (e a adrenalina) os consegui sanar. 

A nossa concepção de cura é que sanar um paciente é devolvê-lo a normalidade fazendo desaparecer o mal. Desaparecer, esfumaçar, virar nada, extinguir, exterminar. 

Não é assim que o antropólogo Mauss entendia. Estudando sociedades tradicionais, em que vigia a medicina xamânica, via que as doenças eram consideradas espíritos que muitas vezes o xamã trazia para si, fazendo-os se manifestar em seu corpo, e nele os aquietando. 

No espiritismo funciona assim, também. As doenças que são tidas de difícil cura pela medicina oficial são trazidas para nós. Constatamos, nas mediúnicas, que se não é um Espírito provocando diretamente a doença, o é facilitando o processo patológico. 

O que a hipótese de Mauss e a concepção espírita tem a nos dizer, a nós médicos, independente de acreditarmos ou não em espíritos, é que a doença não desaparece. O curador parece deslocá-la de lugar ou compartilhar o mal para que ele pese menos sobre o doente. 

Dividir a doença com o doente, é isso o que acontece conosco, curadores e doentes, mesmo de forma inconsciente. Fica sempre um pouco da dor do paciente em nós. Foi isso que um professor de psiquiatria disse para a gente após um turno de atendimento:

- Vê! Não suturei, não interpretei radiografias, não peguei veia nem intubei ou massageei ninguém. Mas, ouvir todas essas dores me esgotou demais. 

E ele sai do ambulatório encurvado como se carregasse o peso (os demônios) de muitos. 

sábado, 24 de janeiro de 2015

A grandeza de Jesus

É menos por causa de Lázaro
Por mais podre que aquele cadáver estivesse
Tão pouco por causa da ressurreição
Sei que ela dividiu a história e os homens
Mas, não é por causa dela.

Seus encantos?

Sobre
Coxos
Cegos
Leprosos
Febris
Expulsando demônios - também não!

Seu perdões?

A
Ladrões
Prostitutas
Publicanos
Castigados - não, acho que não.

Uma menina
Sim, aquela menina
A tranqüilidade dele ilhada pela angústia dos pais
De todos

A menina morta...
Morta?

- A menina dorme!

E riam-se dele.
Essa é a melhor parte:
Riam-se dele!

Da sua visão de mundo
Nós: é morte
Ele: são sonhos
Nós: sobreviventes
Ele: vivo

"Pegou-lhe na mão, e ela se levantou". 

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

A perturbação que os astros provocam em nossos espíritos



Esse post não vai falar sobre a influência que os astros podem causar sobre nossa vida íntima, ou o determinismo que eles pretensamente engendram sobre nossa forma de ser, mas do quão perturbador são as novas revelações da astrofísica para a visão de mundo deste blog. Mas, também para qualquer visão de mundo que tenha o infinito como fim. 

Estava eu conversando com meu amigo astrofísico que se aprofunda nessa matéria pelas zonas dos Estados Unidos em que mais fervilha as pesquisas desse jaez. Falávamos das leis da termodinâmica (aqui o link da conversa), particularmente da segunda lei que reza assim, segundo expôs o filósofo francês Sponville:

"O segundo princípio da termodinâmica estipula que a entropia, num sistema fechado, necessariamente cresce, o que supõe que, nesse sistema, a desordem tende ao máximo: é o que confirmam a história do universo (salvo a vida) e o quarto de nossos filhos (salvo quando o arrumamos). O sol e os pais pagam a conta." 

Entropia seria a medida da quantidade de desordem de um sistema. Dizer que qualquer sistema tende ao crescimento de sua entropia é dizer que ele se desorganiza na medida em que evolui. É o que confirma, também, o nosso ambiente de estudo, que, na medida em que o vamos utilizando, a desarrumação toma de conta. Salvo quando paramos para arrumá-lo. Esse exemplo é bobo. O outro exemplo é que é magnânimo e me causou perturbação: "é o que confirma a história do universo". Isto é, o universo, toda essa ordem que conhecemos ao nosso redor, está se desorganizando, a tendência seria a desordem suprema, na prática, o fim, o apocalipse.  Isso dá razão a todas as teorias do fim dos tempos e de julgamentos finais (quando se acredita em um Deus-juiz). 

Meu amigo tenta ponderar na teoria, falando sobre a máquina térmica ideal, que seria o agente que conseguiria repor a ordem na mesma medida em que a desordem surge: um pai sempre a postos a reorganizar o quarto do filho, sem desgaste de si. Todavia, assevera, que essa máquina tem uma "eficiência inalcançável". Portanto, até onde conhecemos, "difícil escapar da segunda lei". 

Como isso muda a concepção apocalíptica que eu acreditava ser a do Espiritismo?

Eu acreditava que o trabalho no Universo era incessante. Assim como Deus, nunca pararíamos de trabalhar pela evolução do Universo. Claro que em ordens diferentes. Quando nós, Espíritos simples e ignorantes, chegássemos à máxima altura, complexos e sábios, retornaríamos a fim de ajudar os que ainda estavam submetidos ao erro. Esse ciclo seria sem fim. A segunda lei da termodinâmica diz que isso um dia pára. 

É como se o Universo tivesse um termo. Fosse um livro de história com página final. É o que meu amigo chama de "seta do tempo". Apenas podemos pensar em seta se ela aponta para alguma coisa, no caso do tempo, o seu próprio fim, a máxima desordem ou, o fim dessa era a que denominamos Universo, Cosmos, enfim, esse conjunto de leis, forças e matéria a que somos submetidos. 

Não é mais a pergunta o que há além da morte que cutuca a curiosidade, mas o que há além do Universo? Pergunta mais metafísica não houve nesses últimos tempos para mim. 

Qual a contribuição que isso traz para o nosso cotidiano?

Mais humildade. Até agora importa saber que essa vida aqui não finda. Prossegue além da nossa próxima morte. Que o trabalho continua e que, verdadeiramente, retornamos com novas luzes e amores para ajudar quem ainda está por se iluminar e aprender a melhor amar. Adianta pensar no fim dos tempos que está lá no infinito? Por ora, cuidemos de nos cuidar uns aos outros nestes momentos vizinhos, que já são uma eternidade para nossa percepção. É o melhor a fazer. 

Em outro post quero falar um pouco sobre o que meu amigo desprezou por ser uma ninharia em relação a escala do universo: o surgimento da vida. Ninharia que discordo. A vida, esse complexo surpreendente de que somos dotados, não é de forma alguma desprezível. Ela, simplesmente, manifesta a outra face do Universo que pode dar sinais do que há para além dele.