Inspirei-me em escrever este post quando, participando de uma conversa com estudantes de medicina sobre saúde e espiritualidade, uma das participantes alegou que Deus privilegia os seus escolhidos nas vitórias da história. Algumas considerações muito importantes a respeito disso podemos fazer.
O privilégio que Deus (o Deus judaico-cristão) concede não é tão agradável assim. Não na vida terrena. A história de boa parte dos heróis é de sofrimento, sacrifício, carregar um povo nas costas, esgotar-se, dedicar-se de corpo e alma, consumir-se por uma causa. O ápice disso é o exemplo de Jesus.
Os hebreus viviam ansiando a vitória do próprio povo sobre os vizinhos, e, em vez de vitória perene, algumas diásporas se sucederam. Uma intervenção militar lhes devolveu algum Estado-Nação, não sem conflito.
Mesmo com a chegada do filho de Deus, o chamado Unigênito, haja visto, o Cristo (para os cristãos), mesmo a promessa dele ficou por acontecer, caso estejamos olhando a concretização do prometido na instalação terrena de um, enfim, reino de amor. Pelo contrário, a busca da concretização do "ano aceitável do Senhor", libertando os cativos, gerou muito sangue.
Depois de todos esses anos, ainda há quem espere, no Cristianismo, a vitória do próprio Deus em cima dos inimigos. Que Deus os esmague, os devore. E que, assim, só haja espaço para si, o escolhido, no reino terráqueo livre dos iníquos. É certa lógica desvendada pela sociologia de Max Weber, analisando a motivação dos yankees protestantes. É, de outro modo, a transposição do próprio ódio e da própria vontade de domínio para as divinas mãos.
Acreditam que a morte foi inventada pelo pecado. Que o santo viverá rica e eternamente - na Terra. E que o juízo final acalenta um fogo eterno para onde serão lançados os reprovados.
Bem, gostaria de dizer alguns sinais pelos quais vemos o Reino se instalando entre nós. Levo em consideração muito da sociologia contemporânea e quase nada do que essas esperanças aí de cima almejam:
- As causas pelas quais viemos morrendo, todas em busca de um reino mundano, estão em falência: a igreja, a causa revolucionária, a pátria;
- A família vem se tornando cada vez menor, e os pais se dedicando com mais afinco e amor aos poucos filhos. Eles passam a ser nosso motivo de sacrifício;
- As barreiras das nações vem se pulverizando e tornando o encontro entre povos cada vez mais fácil (e difícil). O desafio, nos diz Zygmund Bauman, é construir, como nunca antes na história da humanidade, uma "comunidade da humanidade";
- A nossa identidade de povo vem se tornando mais fluida, e cada vez mais tendo de aceitar o outro em nós, tentando entender qual o espaço que ele pode (deve?) ocupar aqui dentro;
- A liquidez do mundo vem servindo para relativizar as crenças e destronar as castas;
- O conhecimento vem se tornando de todos e cada vez mais sendo entregue para que todos descubramos juntos o que vale a pena;
- A preocupação ética entrou nos imperativos da ciência e não tem mais como sair;
- A filosofia, em toda parte, vem resgatando os sentidos das grandes espiritualidades de todos os tempos. O terceiro milênio será da espiritualidade (laica ou não) ou não será. Mesmo o materialismo, inimigo dos espiritualistas há tanto tempo, procura o espírito, a seu modo;
- Aumenta-se a busca das pessoas pelos valores do espírito, por isso que as reflexões morais e metafísicas (sobre o bem, sobre o mal, sobre a felicidade) voltam a chamar a atenção. No meio do século passado era a política. Já não mais;
Esse movimento não vem se instalando sob os cuidados de qualquer oligarquia. As inovações nascidas do espírito humano cavalgam sem rédeas, espaço perfeito para atuação de inteligências supremas.
Os socialistas abominam o mercado, mas querem construir a própria ditadura, assumindo as rédeas da história (e da economia) com a própria concepção de "o que deve ser o mundo melhor", ignorando a grandeza de cada indivíduo singular. As pessoas vêem estarrecidas novos extrema-direita subir ao trono, mas tudo é fruto do medo da maioria de se deixar abrir. E vêm a xenofobia e as leis de proteção e insulamento. Era o que Herculano Pires chamava de "os atalhos do Reino". Mas, o céu não se conquista de assalto.
A história da humanidade pendula entre a genialidade de um povo (e o seu individualismo egoísta conseqüente) e o sentimento de pátria (e a massificação embrutecedora necessária para isso). É o desejo de liberdade de um lado e a busca de segurança de outro. Grosso modo, Atenas e Esparta. O Espiritismo aplaude o gênio e o esforço intelectual, o avanço da tecnologia, pois. Mas, espera o crescimento moral para o restabelecimento dos laços fraternos entre as pessoas. Nossa esperança e esforço, portanto, é a síntese desses dois extremos.
Não já há perfeição. Falta um tanto. Esclarecia Kardec, contudo, que "o que nos parece perturbações são os movimentos parciais e isolados que só nos parece irregulares porque nossa visão é circunscrita." Isso é um jogo de xadrez. Jesus e suas potestades contra os homens que sobem a própria ganância ao topo do mundo. Aos poucos, com tranquilidade, vai colocando os valores caducos em xeque.
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