Eu gosto de comédia. Não há quem negue ao me conhecer. Ela tem um poder de modificar significados, revisitar lugares comuns.
A ironia é um tipo de comédia (ab)usada por Voltaire para criticar uma igreja que não mais satisfazia. Segundo Sponville, ela “põe à distância, afasta, repele, rebaixa. Ela visa menos rir do que fazer rir. Menos divertir do que desenganar. Como Sócrates, com relação a todos os saberes, e ao seu próprio.” Ironia, vem do grego, eroneia que é interrogar.
Esse vídeo do Porta dos Fundos brinca com a primeira apresentação do Decálogo. Não tenhamos a ingenuidade de nos sentir feridos, aqueles que têm o decálogo como primeira Lei Divina, porque afinal não aconteceu assim. As mentes eram outras. E a virtude dessa cena é nos fazer revisitar aquele momento crucial para a história da nossa civilização judaico-cristã com os olhos dos pós-modernos.
Mas tudo começa com os argumentos dos modernos, e bem no estilo voltairiano, encontramos, por exemplo, Kant que buscava fundar uma lei moral sobre o princípio maior da ação desinteressada. A virtude deve ser uma que, mesmo contrariando meus interesses, a ela eu ceda porque é o bem da humanidade. Os contra-argumentadores de Moisés insistem que os mandamentos são muito cômodos para ele, isso basta para desconfiar. Há Rousseau, no seu discurso contra o inspirado, que rejeita uma verdade revelada (“Porque Deus falou!”) por uma razão fundamentada.
O argumento sobre o ponto de inflexão da Lei é um dos que mais faz pensar. E quando não havia Lei? E quando meu Espírito atravessou exatamente o deserto da mudança? Sob que lei deverei ser julgado? Uma condenação eterna para um ato que não estava submetido a essa nova consciência é de uma injustiça diabólica. Uma flexibilidade diante do impasse é de uma esperteza humana. Onde está a marca do divino na resolução desse problema? Filigrana? Seria para quem está salvo, mas para o condenado, qualquer brecha lhe é companheira.
A ironia é assim: desestabiliza até o esgotamento. Mas aí pára. Três décadas são necessárias para se construir uma verdade, três segundos para destruí-la. A verdade que Moisés trazia pretendia ter sido forjada no tempo do infinito e pela eternidade durar, conforme a marca Daquele que assinou. Quatro minutos (filhos de quatro séculos de crítica) foram necessários para nos confundir, para nos fazer rir (50.000 gostaram), para enfurecer os que prestam culto ao Torá (5.000 não) há três milênios.
Mas, e depois? Eis a marca do pós-moderno. Nossa crítica evoluiu de tal forma que saiu do nosso controle. Destruiu nossas espiritualidades mais caras. Não sobrou pedra sobre pedra para que fosse gravada nelas qualquer lei, ainda que com “l” minúsculo.
Mas, Porta dos Fundos nos dá uma dica do que sobra como valor sagrado: “Quer dizer que você ama mais a Deus do que você ama sua mulher?”. A mente pára, o coração fibrila, a fala treme. Um novo sagrado se anuncia. Não há mais como conceber um amor por algo que não tenha carne. Todavia, não basta a carne para o amor. Se Deus pedisse para matar o seu filho hoje, o que você faria? Mataria Deus! E se nova Lei surgisse dizendo que o seu filho ou a sua mulher são tão amáveis quanto Deus? Que esse amor não deve ser imiscível? Uma Lei que unisse Corpo (o que é falível) e Espírito (o que não é).
Não, já não precisa mais condenação para me convencer. Só me basta convidar. "Vinde a mim..."
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