sábado, 6 de janeiro de 2018

O discurso demoníaco deve ser calado a todo custo?



Na postagem passada falei sobre o discurso demoníaco que a ciência busca combater, restabelecendo a verdade divina. Todavia, outra questão que se deve considerar é se o discurso demoníaco deve ser calado a todo custo, ou, em outras palavras, exorcizado.

A posição espírita é diferente da do exorcismo. Se é verdade que o este discurso é identificado com a crueldade absoluta, por outro lado o que chamo de discurso demoníaco não se encarna por inteiro no ser humano. Ele é como uma ideia transcendental, uma categoria analítica necessária para entendermos certos movimentos da realidade. Kant falava assim da ideia de Deus, de sua necessidade para entendermos o movimento da ciência como legítimo. 

Assim como não há Deus encarnado no homem, abstração feita da crença cristã a respeito da existência histórica de Cristo, não há o demônio. O que encontramos é sim o divino e o demoníaco tomando mais ou menos espaço no coração das almas de forma flutuante. 

A cosmovisão espírita endossa a judaico-cristã:  

O divino é perman-ente, e o demoníaco é transi-ente.  

A esfera em que imaginamos Deus é superior a em que transita o demônio. O que isso significa? Que qualquer ação demoníaca é passageira. Por outro lado, o homem tem vontade de Deus, e qualquer vontade demoníaca que o mova nem é perpétua nem é forte o suficiente para superar a vontade divina a longo prazo.

O que se vê, então, é o movimento demoníaco sendo um caminho alternativo ao divino, porém sem possibilidades de determinar o destino do homem. O livre-arbítrio permite o clinamen, mas Deus atua para o retorno. É o que se chama, na tradição cristã, de ação salvífica de Deus. 

O exorcismo como atitude castradora da ação demoníaca não é o caminho do espiritismo, mas o diálogo com o que de mal se manifesta no discurso a fim de redirecionar o indivíduo, encarnado ou desencarnado, para o bem. 

O discurso demoníaco deve ser calado a todo custo?

- Não. Deve-se compreender quais as condições que permitiram sua instalação e, sem muitas delongas, reconduzir o indivíduo para caminhos de reencontro com a vontade de Deus.    

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

Ciência como denúncia contra o demônio



Por que tanta crítica e desconfiança tanto na filosofia quanto na ciência?  Por que tanta rigorosidade metódica para extrair a verdade dos fenômenos? Por causa do discurso demoníaco.

Talvez você dissesse: "não, é pelo soberano bem, pela felicidade suprema". E nada disso, nem o soberano bem, nem a felicidade suprema, não fariam sentido suas buscas se não houvesse o demônio. 

Não estou falando necessariamente de uma entidade antropozoomórfica que espreita a queda do homem, mas sim de tudo o que espreita a queda do homem. 

Se de um lado a tradição cristã colocou Deus como Aquele que preparou para seus filhos o paraíso, de outro, enxergou uma divindade menor que serpenteia a natureza humana calcando sua perdição. São duas forças metafísicas ativas: uma oferecendo a salvação, a outra, o contrário. 

É mais condizente com a realidade circunvizinha entender estas duas forças como existentes do que definir uma pela ausência da outra. O holocausto nazista não se sobressaiu em crueldade pela mera ausência de democracia.   

O que seria a força demoníaca, então? Todas estas ações com força própria que levam o homem ao mal: a trapaça, a mentira, a ganância. Não entraria aqui o engano, por exemplo, pois este não é uma força ativa, mas o deslize de alguma força. 

A filosofia e a ciência, pois, não se esmeram em extrair verdades da pedra apenas pelo gosto lúdico de acertar. Elas querem salvar almas, e sabem que uma mentira que se propaga propositadamente como verdade é geradora de morte, merece, pois, ser questionada e desmascarada. Sabe que a trapaça se imiscui entre os fatos, e que é preciso denunciá-la a fim de que não faça vítimas.

Um artifício demoníaco que se incrustou nas ciências humanas foi a defesa de que não há verdade, apenas interpretações. Este subterfúgio permite que o discurso demoníaco seja acolhido como mera perspectiva. As ciências exatas não caem de todo nessa falácia, e é ainda o que nos permite estar vigilantes. 

Eis um fundamento metafísico da filosofia e da ciência que ignoramos, mas sem o qual não podemos entender a energia movente de muitos cientistas e filósofos genuínos.

Qual o incoveniente de se construir uma doutrina em torno de um médium?



Tive vontade de escrever esta postagem porque é disso que se trata alguma parte do posicionamento de certos antropósofos com quem venho tendo contato, mas também boa parte do movimento espírita que, sem dar valor à obra de Kardec, vai fundamentando seus conhecimentos apenas em romances mediúnicos.

Vamos começar por este ponto: o médium pode trazer informações falsas ou frutos da própria imaginação. Quando assim é, não é difícil de entender onde está o inconveniente. 

Digamos, porém, que o médium traga apenas informações aparentemente boas, justas e belas, e que a própria imaginação não tenha causado interferência. Como saber se são, de fato, boas, justas e belas se não pelo olhar crítico das pessoas?

No primeiro caso seria uma doutrina fundada na falsidade, no segundo, na possibilidade da falsidade.

Vamos avançar e considerar que o médium possui um desenvolvimento intelecto-moral tal que consiga controlar o teor de suas comunicações e mesmo acessar os "mundos superiores" sem se perturbar. E que ele, ainda, tem a virtude de passar estas informações de forma clara e precisa. É o que parecem considerar certos antropósofos em relação à Rudolf Steiner ou muitos espíritas em relação à Chico Xavier. Qual o mal disso? É que, nesse momento, a verdade flerta com o poder de forma muito perigosa. 

Uma tal pessoa, portadora desta aura de verdade, imporia suas concepções facilmente sobre muitos. Qual o problema se for a verdade mesmo? O problema é que, como Kardec bem considerava, não temos condição de saber a verdade de uma revelação apenas pela índole do médium mas apenas após a análise do conteúdo da mensagem, isto é, a verdade passa pela interação do médium e do ouvinte em pé de igualdade e respeito. Considerar como verdade qualquer informação emitida por um sujeito pretensamente portador de autoridade intelecto-moral é dar o pescoço à uma possível guilhotina. 

O projeto socrático consistia exatamente em ensinar às pessoas a, analisando as questões por elas mesmas, chegar a verdades construídas em diálogo que tem a força de apaziguar as exigências de dois espíritos sequiosos de verdade. Saíamos, assim, de uma monarquia para uma democracia. 

A natureza humana não comporta ainda estas perfeições projetadas em muitos médiuns e gurus. Toda monarquia guarda em si a corrupção do totalitarismo, e a democracia, a da demagogia. Aquele que se arvora portador de uma verdade limpa extraída de mundos superiores contra a qual ninguém pode se levantar está mais para um déspota ou demagogo do que para novo messias.

De outro modo, me parece que Steiner dava muito valor à filosofia da liberdade, pedindo para que todos os indivíduos analisassem suas verdades com o cuidado necessário, e Chico Xavier nunca tentou ser chefe de doutrina, sempre submetendo suas revelações ao evangelho de Cristo e às obras básicas de Kardec. Assim deve ser.

O esoterismo da escola do meu filho



Estou tendo acesso a literaturas esotéricas, principalmente porque meu filho estuda em uma escola cujo fundador da proposta, Rudolf Steiner, foi um alemão imerso nestes conhecimentos. 

O que me encanta na pedagogia é muito do que os tempos pós-modernos estão precisando: menos pressão, mais respeito pelo ritmo da criança, mais arte, mais investimento na sensibilidade, no entendimento estético, mais corpo, mais movimento, mão, suor, sujeira. E, particularmente bem evidente nas obras Steiner, o desenvolvimento do olhar místico, ou simbólico se preferir.

Há toda uma corrente filosófica originada do romantismo alemão que aponta ser o entendimento da vida e das pessoas através do sentido estético o futuro da humanidade. Entenda-se futuro não a utopia ingênua, mas o que é necessário ainda acontecer para conseguirmos apaziguar muitos conflitos atuais - presentes.

O filósofo Luc Ferry, bastante influenciado pelo pensamento alemão, havia dito que a grande questão contemporânea sobre a qual a filosofia mais devia se debruçar era o problema do gosto para era democrática, isto é, de como a arte possibilita um entendimento entre as pessoas por caminho diverso ao da razão. Ora, as grandes guerras mostraram que a razão não parece ser um preventivo ideal contra o totalitarismo. A Alemanha e a Itália eram nações muito cultas. Pelo contrário, parece mesmo favorecer: a razão que quer engolfar tudo, dar conta de tudo, saber tudo, entender tudo, subjugar todos à verdade do Partido. Se o gosto tiver o mesmo poder de permitir entendimento entre os diferentes, seria uma força política mais sã? Permitiria o crescimento sem guerra? Essa é a questão!

Já sou bastante herege por ser espírita para criticar quem quer que fuja da norma católica, mas várias questões me inquietam no esoterismo steineano: 

1. A falta de um método claro que permita o compartilhamento, e portanto a crítica, universal da verdade que se prega

Steiner quis ultrapassar isso tentando iniciar as pessoas em sua forma de ver o mundo, ou melhor, os mundos superiores. E em algumas palestras ele é bem duro com os interlocutores dizendo, por exemplo, que se a pessoa não teve o resultado esperado segundo o que pregava sua "dica" é porque ela não fez direito. 

Vá lá que esse é o mesmo argumento que meus professores de medicina carrascos davam aos alunos que não chegavam a um certo resultado dentro do laboratório. Mas, não é do totalitarismo que estamos querendo escapar? Para que Auschwitz não se repita...

O espiritismo diz que esta visão dos mundo superiores não se alcança por esforço. É uma possibilidade dada por Deus em certa encarnação, a que poderíamos chamar de dom. Não seria Steiner portador de tal dom e queria ele que todos o fossem forçosamente? Kardec achava que tal esforço só poderia originar produtos da imaginação. Daí outro ponto...

2. O exagero de revelações

O espiritismo já havia provocado uma ruptura com a tradição católica que rezava ser apenas, e unicamente, através da aceitação de Cristo, com a consequente e necessária adesão à sua igreja apostólica romana, o caminho da salvação. O espiritismo vinha dizer que não, que era a caridade. 

No fundo, olhando a argumentação toda de Kardec, significava dizer que a pessoa que verdadeiramente abraçou a Cristo mostrava o distintivo desta adesão com o esforço de abertura ao próximo. 

O que as igrejas cristãs oficiais pregam, devemos buscar entender, é que nenhuma obra substitui a aceitação amorosa da figura de Cristo. Essa aceitação é condição sine qua non de todo o resto. 

Steiner faz as vezes de aceitar o Cristo como centro de sua teoria esotérica ou teosófica, ou ainda, antroposófica, mas insere um conjunto de elementos estranhos aos discursos oficiais que, creio eu, perturbam mais do que esclarecem. 

Outras incursões, todavia, são muito bem-vindas, por exemplo, a de reconhecer a vida humana como impulsionada por uma força crística, e a história da humanidade, pelo mistério do Gólgota. Sem pudor vai estabelecendo parâmetros para mostrar o que seria o comportamento saudável tanto da encarnação do espírito no corpo, como do progressivo domínio deste por aquele. São voos que nem Kardec nem os Espíritos através de Chico Xavier decidiram dar tão altos. É que, defendia o codificador na sua sensatez, perde-se o ar em zonas tão rarefeitas das esferas das revelações, e as figuras poéticas tomam o lugar da precisão.

3. É possível acessar conhecimentos dos mundos superiores e tê-los disponível ao intelecto encarnado de forma clara?

Steiner fala da "piscina" Akáshica, que seria um todo de conhecimentos bem vivos do mundo espiritual ao qual poderíamos ter acesso em êxtase místico. 

Os seguidores da antroposofia advogam que Steiner conseguiu ter fôlego para entrar lá e trazer a coisa bem clara. Por que ele e não João, e não Daniel, para citar autores apocalípticos que trouxeram revelações akáshicas milenarmente guardadas? 

O que quero dizer é que a literatura apocalípitca, que mais akáshica não poderia ser, está toda encarnada em um simbolismo profundo que desafia as maiores mentes exegéticas e provoca dissensões escolares. Steiner seria o iluminado supremo que teria ultrapassado a capacidade dos autores apocalípticos de expressarem coisas transcendentes para as mentes imanentes na carne? Sem desprezar a grandeza do homem, acho mais sensato pensar que este grande especialista de Goethe trouxe de lá outras tantas imagens que, ao se encarnarem na linguagem humana, viraram símbolos de portentoso valor. É o mesmo que acredito acontecer com outros tantos romances de Chico Xavier. Tomamos eles ao pé-da-letra para melhor lê-los, mas não os deveríamos levar a ferro e fogo, senão extrair a essência das lições morais que permeiam aquelas cenas.

 

Por fim...

Queria pontuar, que, apesar destas considerações, a ciência espiritual de Steiner é muitíssimo intrigante. Uma mente prolífica que saiu espalhando milhares de conferências sobre os mais variados assuntos em um mundo entreguerras, semeando verdades inquietantes nos mais diversos terrenos (medicina e terapias diversas, arquitetura, agricultura, religião, pedagogia, dança, pintura, política), e que frutificaram angariando adeptos fervorosos. 

Assim como Chico Xavier, renegado pela ciência oficial, este é outro médium que precisamos estudar com calma. 

domingo, 10 de dezembro de 2017

Apenas a revelação pode nos dar a verdade vital



E pela manhã cedo tornou para o templo, e todo o povo vinha ter com ele, e, assentando-se, os ensinava.
João 8:2
"E pela manhã cedo tornou para o templo, 
e todo o povo vinha ter com ele, 
e, assentando-se, 
os ensinava." 
(João 8:2)

Para começar, tenho que elucidar alguns pontos do título:

  • Por revelação quero dizer todo conhecimento que se manifesta fora da construção que a razão individual pode engendrar. 
  •  Por verdade vital quero dizer toda verdade que é essencial para conseguirmos viver diariamente. 
 
 A mediunidade é um exemplo de revelação, bem como o simples diálogo com alguém. Deus fala ao ser humano: diálogo e revelação. 

Cotidianamente não buscamos a verdade das coisas. Vivemos sem essa busca consciente. O que nos faz tomar as rédeas dessa busca é o estranhamento, o espanto, o assombro. Desde que mamãe me ensinou a escovar os dentes, nunca precisei parar para entender pormenorizadamente o mecanismo dessa ação, e a tenho como primeiro imperativo assim que acordo. Caso um acidente vascular venha danificar minha motricidade, se meu juízo crítico não for junto com a falha cerebral, a busca pela verdade da escovação dentária se impõe. 

Mesmo esse problema banal, o da escovação da primeira hora da manhã, se evidencia: uma verdade vital que necessita de uma revelação para ocorrer. Mamãe me revelou que a manutenção da saúde bucal passava pela escovação. Sem ela, ou qualquer contato social que tivesse me apontado esse dever, teria de ter reinventado essa arte. Aqui se apresenta uma das faces da revelação: ela poupa esforços quando se encarna na história humana.

Há, contudo, verdades vitais, de ordem cada vez mais superior, cujo alcance gradativamente escapa do sujeito isolado. São elas as de ordem ética e da beatitude. Entendendo a ordem ética a que nos permite viver em sociedade e as da ordem beatífica a que nos permite viver para Deus. Ser solidário às necessidades da civilização participa da primeira ordem e anuncia a segunda. Ser sincero e coerente com os próprios ideais, ainda que eles sejam ignorados pela sociedade, participa da segunda ordem, coroando a primeira. Saber ajoelhar-se diante do infinito e praticar as lições escondidas do amor está imerso na segunda ordem, permitindo a primeira ter sua parte nesta. Mas, como ascender ao conhecimento necessário para praticar estas duas ordens se fôssemos solitários? Impossível. 

Para termos acesso aos conhecimentos da ordem ética e da beatífica necessariamente é preciso de alheios que firam nossa consciência cotidiana, que cobrem respostas retas, que exijam posicionamentos oportunos. Estes outros são os reveladores dos desafios e, não raro, os doadores de respostas. Novamente, se fôssemos esperar sempre ter de construir as respostas apenas por nós mesmos, cada vida terminaria em projetos inacabados sem nenhum avanço global. Restaria ao maior ou menor grau de genialidade de cada um ser mais ou menos probo, mais ou menos santo que o vizinho radicalmente separado da minha aventura existencial.

Mesmo que tivéssemos vida o suficiente para tanto, para ter possibilidade de finalizar a questão da ética e da beatitude, há um limite da nossa consciência que impede a resposta final. Aqui é onde entra a metafísica. Apenas um ente que pertence ao além do lugar onde estamos é que pode nos iluminar o caminho a seguir. Sem esse estranho nada podemos fazer senão circular em torno de nossa idiotia. É o mesmo que um povo de uma ilha querer conhecer o mundo sem jamais sair dali. Trocam figurinhas do mesmo. Diante dessa limitação, há apenas dois movimentos: (1) desistir de procurar e imaginar que o futuro é construção pessoal de cada amanhecer, (2) abrir o ego para o novo que o alheio traz, não como uma possibilidade radicalmente diferente que inauguraria uma outra forma de existir na qual perderíamos tudo o que vimos sendo, mas como revelação de possibilidades ulteriores que iriam se somar aos nossos esforços na construção de um homem integral.  

As experiências de peregrinação, de rebanho, de plateia de pregadores, na segunda hipótese recebem novos ares de validade, e talvez mesmo de necessidade ontológica da condição humana. 

quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Eficácia da prece



Referente a palestra dado ao dia 06 de dezembro de 2017 à Sociedade Espírita Irmãos do Caminho

É um tema difícil de ser trabalhado para mim, haja vista os grandes místicos que venho tendo acesso dizerem que é a atitude mais importante que um ser humano pode realizar a cada dia, e menos procurada, e a menos conquistada. Todavia, há algumas questões cotidianas que precisam de um pouco de esclarecimento. 

Quando uma mãe cristã pede a Deus que não deixe a chuva cair sobre a festa de sua filha, tão amorosamente preparada, essa prece é legítima ou seria uma mera expressão de um egoísmo impróprio para ser dirigido a Deus? 

Diante de Deus, me parece claro, para a concepção cristã, que importa menos a falta de horizonte com que essa mãe encara um fenômeno meteorológico de proporções regionais do que a atitude de conversa com o Pai pensando no amor pela filha. 

Os filósofos spinozistas diriam que Deus não privilegia ninguém. O que tem de acontecer acontece pela necessidade do Todo, e não para satisfazer tal ou tal ação. 

A chuva não cair sobre a festa seria apenas um fato, não uma concessão para uma prece eficaz. 

Se pensássemos assim para as doenças - que elas são necessidade - como explicar as curas milagrosas que Jesus operou nos indivíduos quando passou pela história humana? 

Muito embora nós espíritas tenhamos elaborado uma resposta que casa com a necessidade do momento de libertação daquela alma que recebeu a cura, não deixa de parecer evidente aos olhos do povo que Jesus era um deus (ou o Deus) saneando a matéria dos corpos corrompidos pelo pecado. 

A cura que Jesus provocava era uma já necessária consequência da história daquela alma ou uma graça do Mestre? Para entender os diversos ramos em que se dividiram os discípulos no tempo futuro, é preciso enxergar a profunda discrepância destes dois olhares. 

Se a cura já fizesse parte de um processo necessário, seria um fato,  não uma concessão para uma prece eficaz.

Poderíamos tentar enxergar da seguinte forma, conciliando as visões:

1. De fato temos processos que se desenrolam na natureza material e humana que são apenas consequências de um movimento cujo motivo fundamental, muitas vezes, é invisível para nossa consciência. Exemplo: a chuva, o saneamento de uma doença aguda simples. 

2. Deus, ou seu mais dileto representante, tem o poder de agilizar o processo sem interferir na harmonia do Todo. Exemplo: fazer parar a chuva, provocar uma cura. 

3. Essas atitudes que aparentemente perturbam a ordem cósmica, em verdade, provocam movimentos que reorganizam o Todo em uma conformação mais propícia para a salvação de muitos. Toda intervenção divina, embora dirigida para um filho em particular, parece ter um efeito ecológico. É como quando uma cura provoca a calma de uma família, a volta ou o reforço da fé de outros tantos, a motivação evangélica de mais alguns. 

A prece é eficaz? Sim ou não?!

Para responder de forma peremptória essa pergunta tem que se olhar não para as curas de Jesus, mas para o seu sofrimento final. 

Jesus, que parecia a encarnação da resposta de Deus frente aos clamores de Israel, não consegue livrar a si mesmo do sofrimento. Içado ao madeiro em cruz, começa a cantar baixinho o salmo dos antigos: "Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?" - e desfalece.

Isto era uma prece. Não era um pedido de benesses materiais, não era um agradecimento pela concessão de qualquer benesse, nem mesmo uma adoração. Era a constatação de uma solidão, de um vazio, de uma ausência de Deus ao seu lado. Esta canção que começa nestes termos - Jesus não a cantou por inteiro - ela se aprofunda na descrição das desgraças que o cercam, mas sobe de tom profetizando que o sofrimento do justo se converterá na salvação de muitos. O salmo previa o movimento de salvação das almas mediante a ressurreição do justo ferido.

E apesar disso, Jesus morre, não sem antes perdoar os carrascos. Para, então, ressuscitar ao terceiro dia. 

Que significado tem estas imagens? Que a verdadeira prece não espera a modificação do entorno, mas a ressurreição da própria alma para que o entorno pungente não mais nos alcance. 

Se a chuva cai e a festa ensopa, dancemos na chuva. Se a doença chega aos ossos, e o coração feito cera derrete-se pelas entranhas, exultemos, o Espírito se libertará dançando em chuvas de bênçãos, acolhidos por um Pai no infinito. 

Tentar modificar a natureza ao nosso redor na busca de um paraíso terrestre é uma tarefa bem mais fácil do que provocar a santificação da vida em nós. 

A que resultado gostaríamos que a eficácia da prece fosse dirigida?

Eis o áudio da palestra:


 




 

domingo, 3 de dezembro de 2017

Pesquisas espíritas no contexto acadêmico cearense



Dei esta palestra falando sobre o que aprendi com um grupo do qual me desliguei porque a vida me forçava prioridades familiares, e também porque minha linha de estudo flutuava para outra direção. 

Contudo, para não ser tão ingrato, deixei bem claro o quanto o que  iria falar se devia à professora Ângela Linhares. Não sei se ela concordaria com esta minha sistematização de seu pensamento, até porque ela não se sente dona de um pensamento para ser sistematizado. Todavia, as conversas que tínhamos por horas na busca de me iluminar formas de pensar espiritamente a vida gerou essa busca de síntese que vocês poderão ouvir no áudio que compartilho mais adiante. 

O que aprendi?

Quando pensamos em pesquisa, estamos acostumados com estatísticas e estudos de caso-controle. Temos de provar a relação causal de um fenômeno sobre outro, ou a eficiência disso e daquilo. 

Ângela Linhares me ensinou que nada disso pode acontecer sem antes nos reconhecermos como sujeitos apaixonados, movidos por ânsias e encantamentos. Só na medida que nos situamos na própria vida, fazendo encarnar o eu-pesquisador, é que podemos passar a tentar a objetivar algum olhar. 

Os números são importantes, mas apenas como início. O grosso do que podemos captar no campo do estudo está nas falas das pessoas, cujo peso tem uma singularidade sem par. Tanto melhor se pudermos fazer com que elas vivam o que pesquisamos, participem conosco do movimento de construção de todo o castelo teórico. 

Não sei se podemos voltar a fazer ciência nos moldes da física clássica, objeto de estudo separado de um sujeito-observador inerte, depois que descobrimos na história da epistemologia como verdadeiramente podemos estudar culturas. 

Os sociólogos e os antropólogos clássicos ainda quiseram objetivar a cultura das pessoas reduzindo-as a estruturas. Mas, Allan Kardec se abriu de tal modo que deixou os próprios Espíritos guiarem seus trabalhos. É esse comportamento que buscávamos ao fazer estudos com a Ângela.  

Outra questão era não cindir a realidade. Sempre se esforçar por enxergar as coisas em sua complexidade. Era como se tivéssemos que ver espírito e matéria ocupando o mesmo espaço. Nunca dicotomizar. Sempre era isso e aquilo, nada de isso ou aquilo, isso e não aquilo. Como este isso e aquele aquilo podem dialogar e serem enxergados como parte de um mesmo todo. 

Nossos olhos tinham de estar preparados para ver o grande no pequeno. Tudo em qualquer bagatela. Por que haveria de ser diferente? Cada átomo foi criado por Deus, e nele poderia o Criador se revelar. Do átomo ao arcanjo, no mesmo átimo! Não era um exercício de enxergar o que viria depois, mas o que estava ali, agora, por inteiro. 

Essa visão, eu digo, é a dor amor. Quem disse que os apaixonados se enganam a todo momento participa do paradigma antigo. Aqui, o amor é a condição primeira e o coroamento. Começamos apaixonados pelo estudo, perdemo-nos no mar revolto da realidade, peregrinamos para o retorno do amor. O final do trabalho é uma visão redimida, serena, pacífica. Não da paz do mar morto, mas da inteireza. 

Este não é outro método que não o que Allan Kardec usou para codificar a doutrina. Um pouco mais poético depois de Chico Xavier, um pouco mais trabalhado no que tange a conscienciologia depois de Husserl. 

Poucos são os espíritas que enxergam a construção da doutrina assim. Tive o prazer de vislumbrar. Venho percorrendo estudos que vão tentando assimilar mais e melhor tudo o que vivenciei. Quem sabe um dia não lanço uma pesquisa mais robusta e madura com isso tudo.