sábado, 31 de janeiro de 2015

Curar é assumir os demônios das pessoas



Tive um pesadelo dias desses em um plantão. Pacientes começavam a chegar ininterruptamente trazidos pelas ambulâncias, sangrando muito, com cortes grandes. Mas, o pior deles estava com uma úlcera na zona axilar, por onde tínhamos acesso ao pulmão, que estava completamente enegrecido e se desfazendo. Sem dor e sem anestesia, conseguíamos retirar os arcos costais anteriores, e a paciente viva. O pulmão se desfazia necrosado em uma pasta gelatinosa que um dos estudantes que nos acompanhava inventou de provar um pouco para tentar reconhecer o tipo de câncer que estava a nossa frente. Isso fez com que um edema de glote se instalasse nele. Foi só então que eu, até agora sob controle das minhas emoções, comecei a me desesperar. 

- Não podemos deixar esse rapaz morrer! - acordei. 

É que só naquela noite, em vigília, havia atendido dois edemas de glote. Graças a Deus (e a adrenalina) os consegui sanar. 

A nossa concepção de cura é que sanar um paciente é devolvê-lo a normalidade fazendo desaparecer o mal. Desaparecer, esfumaçar, virar nada, extinguir, exterminar. 

Não é assim que o antropólogo Mauss entendia. Estudando sociedades tradicionais, em que vigia a medicina xamânica, via que as doenças eram consideradas espíritos que muitas vezes o xamã trazia para si, fazendo-os se manifestar em seu corpo, e nele os aquietando. 

No espiritismo funciona assim, também. As doenças que são tidas de difícil cura pela medicina oficial são trazidas para nós. Constatamos, nas mediúnicas, que se não é um Espírito provocando diretamente a doença, o é facilitando o processo patológico. 

O que a hipótese de Mauss e a concepção espírita tem a nos dizer, a nós médicos, independente de acreditarmos ou não em espíritos, é que a doença não desaparece. O curador parece deslocá-la de lugar ou compartilhar o mal para que ele pese menos sobre o doente. 

Dividir a doença com o doente, é isso o que acontece conosco, curadores e doentes, mesmo de forma inconsciente. Fica sempre um pouco da dor do paciente em nós. Foi isso que um professor de psiquiatria disse para a gente após um turno de atendimento:

- Vê! Não suturei, não interpretei radiografias, não peguei veia nem intubei ou massageei ninguém. Mas, ouvir todas essas dores me esgotou demais. 

E ele sai do ambulatório encurvado como se carregasse o peso (os demônios) de muitos. 

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