quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Como foi a desencarnação de mamãe

Vitimada há quatorze anos por um Parkinson raro que provocava nela tremores, dores e muita rigidez que nunca havia permitido brincar com meus filhos, entra na emergência com pneumonia grave já com uma vontade previamente expressa que não queria UTI. 

Rapidamente foi iniciado o antibiótico, mas por medida de conforto, tamanho foi o desespero do cansaço, sedaram-na. Supus que ela morreria no mesmo dia. Pedi para meu primo que não trouxesse a tia, não daria tempo. Só que ela não morreu. O coração batia forte apesar de uma respiração pouca e superficial. Sete médicos a rondavam e constatavam atônitos: ela resiste. Pensei: ela espera se despedir da tia. Convoquei com urgência nossa família do interior. Eles chegaram rápido. Juntamo-nos, choramos seu estado, afagamo-la, oramos, conseguimos um padre que conduzisse a unção dos enfermos. A cada instante da cerimônia eu imaginava: agora ela vai. 

Vocês que não tem ideia de pacientes críticos nunca poderão entender o milagre de um coração resistir viver sob o peso de uma respiração dificultosa, borbulhosa, adicionado de dois sedativos-analgésicos endovenosos, em infusão contínua, extremamente necessários todavia para tirar sua dor. Ela resistia. E até mesmo deu sinal de melhora da oxigenação, da pressão. Por Deus: ela quer voltar!

Insone que eu estava, vigilante para que a equipe do hospital a tratasse com todo o desvelo e sem procedimentos desnecessários, madruguei no outro dia em busca de agilizar os exames que apontassem seu caminhar para a recuperação, o que justificaria tirar a sedação. Três médicos estavam de acordo com essa idéia. Descobri, ao contrário, que o corpo dela entrava em falência. Desesperei-me. Caí em prantos. Tive raiva dela: a senhora nunca fez o que os médicos queriam, sempre cuidou dos outros e esqueceu de si, e mesmo agora na morte, você é cabeça dura. Pare de sofrer! 

Paralisei no ar. Vaguei perdido pelos corredores. Ia e voltava de casa tentando entender o que ela queria. Tive a ideia de uma reunião espírita de meus amigos para cantar e ler o evangelho. Preparamo-nos no outro dia para tal. A respiração dela do mesmo jeito, terrivelmente fraca, ruidosa, o coração pulsando forte. À noite, então, estávamos lá, dez pessoas no quarto cantando em coro músicas espíritas que falavam de Jesus, da libertação da alma, da renovação de tudo. O Espírito de meu pai se comunica falando estar preparado para recebê-la. A cada instante, olhava para o peito dela que resistia, resistia e resistia. O que fazer, Senhor?! O que fazer?! 

Meus pés estavam inchados de tanto andar, meditar em pé buscando alguma resposta. Meus nervos também inchados de tanto remoer os dados médicos, tentando captar se algo da medicina havia sido equivocado. Passei e repassei a história daquela internação para seis médicos. Todos eram unânimes: 

- Não se culpe, tudo que foi feito está nos conformes. A doença dela não cabia de fato procedimentos invasivos. Além do mais, era da vontade dela não ser intubada. 

Gritei dentro de mim: "Se você morresse! Mas você não morre! Você é dura!". Comecei a delirar. Será mesmo se ela realmente não queria ser intubada? Eu tinha ouvido isso da boca dela. Saí perguntando para os mais próximos se também haviam ouvido isso. Minha irmã confirmou, minha esposa também ouvira. Todos os cuidadores ouviram a mesma coisa. Será se todos deliravam igualmente? Meu Deus, se todos deliram, e fui aquele que abriu a boca para dizer à equipe médica que a suposta vontade dela era aquela... eu... matei... minha mãe. 

As enfermeiras já suspiravam aflitas quando eu repisava o corredor. Todas as vezes que chegava no posto de enfermagem eram os olhos vermelhos ou lágrimas grossas. Meu irmão não dormia. Meu primo não dormia. Minha irmã não dormia. Tive vontade de sair pela rua a fora. Em vez disso saí com um amigo, recontei para ele tudo. Ele novamente me mostrou que nada faltava. 

No último sol dessa aflição, escorado ao leito do hospital, tive a ideia de, mesmo com todos os indícios de deterioração clínica, desligar todas as bombas de analgesia e sedação, deixá-la acordar ainda que em agonia brutal para que ela gritasse o que queria. Compartilhei a ideia com o médico do dia. Diante do meu sofrimento e da própria angústia dele sem entender aquele fenômeno de resistência, anuiu que fizéssemos um teste. Qualquer indício de sofrimento, seria necessário voltar a infusão de sedativos. Combinado. A bomba foi desligada. Enquanto esperava ao seu lado olhando fixamente seus olhos, sua boca, seu braço, se este voltava a tremer, eu que passei esses últimos quatorze anos pedindo aos céus que aquele braço não tremesse mais, estava ali esperando qualquer sinal de retorno de consciência e falando com amigos, entre eles uma paliativista que disse delicadamente para mim: 

- Não faça isso. A morte é um momento muito especial de cada um. Cada qual faz do seu jeito. Este é o jeito dela. Ela deve estar com medo da passagem. Respeite-a. Não deixe que aconteça com dor, com desespero. É o tempo dela na vontade divina. Eu vou aí. 

Então religamos a bomba, e pela primeira vez fui esclarecido que a audição e o tato são os últimos sentidos que a pessoa perde. Chamei meu irmão que chorava e chorava, mas ainda não tinha tido um momento a sós com ela. Pedi para que todos saíssem do quarto que aquele momento era dele e dela. Ele passou cerca de dez minutos falando para a mãe. A médica, então, mobilizou-a, tentou diminuir o desconforto respiratório dela. Tudo com muito cuidado. Falando com ela todo tempo, tocando-a com muito carinho. Minha alma estava se acalmando. Parecia que a médica fazia massagens no meu coração. Cada palavra, um alento. Respeitou minha dor e todos os meus movimentos de filho médico até agora. Mas, disse enfim: 

- Não seja mais médico, seja só filho. Toda e qualquer decisão ligue para mim. 

Sugeriu-me então uma enfermeira paliativista que combinou vir às 18h. Fui em casa tomado por uma paz que há dias não tinha. Revi minha esposa, meu filho mais novo, o mais velho havia saído com a outra avó. Deitei na cama e tive a ideia de fazer um áudio com a mensagem dele para a vovó Irami. Havia sido conselho da médica. 

Às 18h em ponto estávamos lá no hospital, todos os cuidadores, minha irmã e minha esposa. A enfermeira massageava minha mãe e explicava como se deveria massagear. Os cuidadores seguiam suas orientações. Começaram a mobilizá-la, em busca de confortar sua respiração. Já se iam cerca de 90h de respiração ruidosa, que naquele dia havia sido amenizada pelas intervenções das paliativistas. Eu comecei a entender que aquele momento não era a resistência de mamãe mas a última fase de sua doença. Uma fase em que ela, livre das dores, dos tremores e da rigidez, tinha a oportunidade de passar os últimas dias com os que amava. 

Nesses dias para mim sombrios, para ela havia sido os dias em que recebera orações como nunca, cânticos, declarações, cuidados a vontade. Os cuidadores se uniram entendendo que seria o último esforço. Ela ouvia todos dentro do quarto lembrando do quanto ela foi mãe de todos. Até dos cuidadores. Relembravam seus gostos, seus afetos, o quanto era feliz com todas as crianças que se aproximavam dela. 

As massagens em seu corpo continuavam, quando de repente ela abre os olhos. A enfermeira percebe aquela oportunidade única e diz: Allan, conduza a todos para que falem com ela um a um. O último de nós, meu irmão, chega para visitá-la exatamente nessa hora. Olhos semi-serrados, cada um olhou naquele acastanhado bonito e falou: os cuidadores, que ela não se preocupasse que também cuidariam de nós, seus filhos, e nós, os filhos, que ela partisse em paz que cuidaríamos uns dos outros feito irmãos. Nunca havíamos dito isso para ela, separados que estávamos pelo trabalho de cada um. Por fim, coloquei o áudio do meu caçula no ouvido dela, olhando no fundo de sua alma. Terminado o áudio, a enfermeira toma a dianteira para melhorar a posição dela na cama, é quando eu e minha esposa percebemos o último suspiro. E a cor do lábio se esvaindo. Dou alguns passos a frente e tomo seu pulso carotídeo. "Ela morreu". Choramos. 

Agradeço à enfermeira por ter proporcionado aquela despedida. Convido todos a se darem as mãos em um grande círculo ao redor do corpo de mamãe. Agradeço a Jesus por aquele momento com palavras de improviso nascidas do coração. Emendamos com um Pai Nosso e uma Ave Maria. Abraçamos-nos uns aos outros. Agradeço a cada um e a todos. Mamãe atravessara, enfim, o portal. Era aquilo. Tudo foi tão rápido. Ela só queria ter a certeza que não iríamos ficar desamparados. 

Tenho outras tantas reflexões, e houve muito mais entre cada respiração do que posso contar agora. Mas, como sempre digo para meus meninos ao contar historinhas que se alongam: são cenas dos próximos capítulos.

domingo, 3 de novembro de 2019

Sonho sobre a vida póstuma

Sonhei que havia morrido. Era muito estranho. Não fui para o umbral. Não vi espíritos sofredores, nem vociferadores. Também não vi ninguém que me convidasse para qualquer cidade espiritual. 

Acordei e levantei-me do corpo, andei alguns passos, olhei para trás. Era ele, o meu corpo. Aquele que tinha animado há pouco. Já havia passado os choros e as homenagens. Tive vontade de ver a esposa e os filhos. Pronto! Foi o suficiente para já estar ao lado deles. Os rapazes enxugavam o rosto da mãe. O mais velho a beijava. O mais novo não sabia o que dizer. Beijei o rosto do caçula que tomou um susto, olhou para os lados. Vi o peito do primogênito apertado. Eu podia ver a angústia. Isso não é metáfora. Eu podia ver mesmo! Cheguei para ele e pus a mão em seu coração. Seu músculo cardíaco deu um salto descompassado. A angústia diminuíra. Ele achara estranho aquele fugaz descompasso. Beijei a boca da minha esposa, que saboreia o beijo em seus lábios com leve movimento da língua.

Só, então, percebo presenças ali em casa estranhas a minha família. Mas todos eles me olhavam. Como, se eu havia morrido? Senhor! Eram outros tantos Espíritos! Saudavam a minha chegada. Papai, vovó, todos estavam ali. Papai, veterano naquele lugar apenas me fala:

- Vá conhecer o mundo, não há mais barreiras para você. 

Quis experimentar. Saí a esmo, correndo. Eu não me cansava. Aumentei o passo, ultrapassei minha velocidade comum. Voei! Que liberdade! Não havia mais dores, nem a asma me constrangia. O ar frio do alto céu me era inofensivo. Chego à Lua, onde vejo outros tantos Espíritos dialogando festivamente, outros apenas a mirar o espaço, pensativos. Lembro de meu amigo astrônomo. Subitamente estou ao seu lado. Ele toma um livro que havia dado de presente para ele há tempos. Lembra de nosso cumprimento. O pensamento dele para mim era fala! Eu o respondo. Ele acha engraçado aquele diálogo que acontece na sua mente. Continua a brincadeira e pergunta para mim como estou agora, morto. "Mais vivo que nunca!". Ele ri. Sua esposa pergunta do que ri. "Do Allan." Ela estranha ele estar rindo de um homem que acabara de morrer. Que macabro!

O sol parece querer nascer. Olho para o relógio. Não é possível. Eram apenas duas horas da manhã. Vou ao encontro desse adiantado sol. Um moço enorme me espera fora daquela casa. Dá-me a mão. Tenho a perfeita intuição quando o toco: era o meu anjo. Ele me aponta o céu para que veja o tal sol. Os raios me ofuscam. Aos poucos diviso uma forma no centro da irradiação, logo mais, um rosto. Meu Deus! Não era o sol, mas Jesus. 

O Espírito sopra onde quer

Andei tentando resolver problemas da família. Perturbações de ordem mental me empurraram de volta às mediúnicas. Mas, dessa vez, uma forma nova de se comunicar com os Espíritos me foi apresentada. 

É nova, mas é antiga. É antiga, mas não é decrépita. É a velha forma como Kardec fazia. Quer falar com um Espírito? Evoque-o. Chame-o. Tome-o pelo nome. É assim que sempre foi. Simples assim. Há de aparecer embusteiros. Ora, reconhecê-los e se livrar deles é toda a ciência espírita. Pode ser conteúdo do médium? Outro capítulo, então, da ciência espírita. 

Parece-me que deixamos essa ciência de lado. Os atendimentos em massa de espíritos sofredores anônimos, sempre tive essa suspeita, acabam por acalmar mais os médiuns do que ajudar as pessoas que precisam. 

Então, eis que seu pai morre. Você deve esperar a gentileza de permitirem que ele se comunique por um médium enclausurado numa sala, acessível apenas para o grupo seleto, sequioso para que de lá saia alguma carta que pareça dedicada a você. Como acontecia na época de Kardec? Sente em sua casa e evoque-o. Profanação? Mas o Espiritismo sempre foi profanação. Essa era a graça dele. Tornamo-nos bons mocinhos.  Acolhemos as críticas que todos nos faziam para bem passar na avenida. Hierarquizamos os centros, colocamos vários intermediários entre o familiar aflito e a alma querida que, viva mais do que nunca, vibrava para se comunicar. 

- Ei, você! Está com saudades dos seus que já se foram? Eles não se foram. Enxugue essas lágrimas! Tome de um papel e uma caneta. Pode ser no seu computador mesmo, ou no seu tablet, smartphone, e dedique-se a tentar o diálogo. Vem a hora que o sinal pega e sai o fenômeno. 

Não me admira que perdemos o fogo da consolação. Conseguiram nos esfriar. 

domingo, 7 de abril de 2019

Santo Agostinho e o Espiritismo

Lemos hoje sobre a presença de Santo Agostinho como Espírito ajudando no nascimento do Espiritismo entre nós, humanidade. Em o Evangelho Segundo o Espiritismo, é o Espírito Erasto que evoca essa lembrança. Veio-me a dúvida sobre a teoria da graça ou da iluminação divina que Santo Agostinho construiu quando encarnado nos idos de quatrocentos depois de Cristo. Seria ela incompatível com o que pregamos? Concluímos que não. 

A teoria da iluminação divina é bem simples de entender quando assumimos uma coisa: a corrupção que trazemos em nós como noção antropológica primeira. A observação da natureza humana que nos circunda torna isso bem evidente. Não somos santos. E os santos se destacam tanto mais quanto mais pecadores ao redor, quanto mais eles tem de se esforçar para se superpor às paixões que puxam o homem à selvageria. 

Se o fim da salvação é a felicidade ao lado de Deus, algo tão supremo, como nossos atos, todos mesquinhos, por mais grandiosos que sejam, na nanica escala em que ocupamos no universo, como podem valer a salvação que Deus promete? Não valem nada - em comparação. Não quer dizer que não tenhamos que nos esforçar, mas aí está o nó da questão. Nó insolúvel para a modernidade: se Deus tem o poder de conceder a salvação, e apenas Ele, de que adianta o esforço?

Não é uma questão de o que adianta, não é uma questão de entender o propósito de Deus, tentação humana por excelência que nos faz se afastar Dele, já que extrapola o nosso limite essa pretensão, mas suportar conviver com o mistério. Confiar, ter fé, suportar o mistério, eis o que santifica o homem ao lado de amar. Se a equação da salvação fosse matemática, de que adiantaria a fé. Não passaria a vida de uma contabilidade de obras. 

Nós espíritas caímos nesse erro quando não entendemos bem a psicologia da alma. Isso faz de Santo Agostinho um senhor muito atual. Queremos exigir de Deus que nos dê o céu porque merecemos. Quando Kardec conclui que fora da caridade não há salvação, essa caridade abarca tanta coisa, que mal cabe na nossa cabeça. Envolve os mais diversos tipos de ajuda material, as mais diversas dedicações para o desenvolvimento moral, mas, coisa esquecida!, a submissão do espírito à vontade de Deus, a tal ponto, virtude suprema!, de temer não ser um dos escolhidos. É aprender a conviver com o mistério.

O que é a teoria da iluminação, então? Não é rejeitar o livre-arbítrio, mas reconhecer que se ele é suficiente para nos fazer cair, nunca o será para nos salvar. Sempre haverá o hálito do Criador, insuflando boas resoluções a nos guiar para o bem. Saber surfar nessa onda é o que Ele espera de nós. 

Meu amigo ainda comentou algo: que a reencarnação, coisa desconhecida ou rejeitada nos moldes em que ela era apresentada pelas heresias e pelos bárbaros da época de Agostinho, é a única forma de conciliar a bondade de Deus em querer salvar todos os seus filhos com o seu poder de verdadeiramente salvar no final dos tempos. Deus insufla o bem no coração humano, que hoje é pecador e amanhã será um santo, mais dia, menos dia, neste ou em outro milênio. Com a reencarnação reconciliamos os atributos de Deus, apartados, por exemplo, quando Diderot O acusava de negligente ou incoerente já que podia fazer o bem, queria fazer o bem e não o fazia. A teoria da transmigração evolutiva das almas não mais coloca a questão como um mero ato de Deus, mas devolve aos homens o sentido do esforço histórico. É preciso conquistar patamares de felicidade com ouvidos dóceis para os conselhos de Deus, através de seus mensageiros. 
 

quarta-feira, 20 de março de 2019

Somos totalmente diferentes!

"Somos totalmente diferentes". - Disse a colega de trabalho a respeito de uma opinião que tentei expressar a respeito do falecimento de uma paciente. 

Era acerca de uma idosa que já não tinha mais como investirmos com terapia com fins curativos. Estávamos tentando conduzir sua passagem em uma boa morte, o que na medicina se intitula ortotanásia. Eu falei de forma inocente: "Como ela resistiu!". E a colega, evangélica, replicou: "Não, ela foi na hora certa, a que Deus determinou. O senhor diz isso porque somos de posições bem diferentes. Eu sou cristã e o senhor é espírita." Nunca havia conversado com ela sobre minha crença, mas ela deve ter visto nas redes sociais. 

Como sempre, os adeptos das igrejas reformadas nos consideram não-cristãos. Pouco importa a discussão que originou aquela frase, haja vista, se uma pessoa pode resistir ao seu desenlace ou se é uma determinação absoluta de Deus. Vou desconsiderar também a disputa de conceitos e falar mais o que me vem ao peito quanto escuto essa acusação. Parece apenas uma lucidez de predicado: existem as denominações cristãs e as não-cristãs. Mas, para o espírita sincero, velador da moral fundamental da doutrina, soa como acusação. Acredito que muitos que despejam essa negativa é como se nos impedissem de entrar no templo. 

Calo-me, a discussão não me agrada, nem é frutífera. Ainda mais com pessoas de fé gritante. Gosto de discutir com amigos, mais por brincadeira do que por vontade de conversão. Contudo, sempre, no fundo, quando me impedem de entrar no templo, sinto como se eles pudessem ter razão. Quem respeita mais o Cristo, aquele que o considera o Deus encarnado, ou o que o entende apenas como um Irmão Maior (pouco importam as maiúsculas)? Sei que a resposta que sai na ponta da língua dos ecumênicos é: aquele que o segue, que o imita dia-a-dia, que se esforça para se aprimorar. Seria suficiente mesmo? Não seriam igualmente necessárias as pompas, os ritos, as prostrações? Não por ele, mas por nós mesmos. O corpo entende mais a linguagem do corpo do que das construções do intelecto. Ajoelhar-se, louvar com fervor, deixar o corpo tremer com o seu nome talvez fizesse chegar nosso coração mais forte ao seu lado, porque taquicárdico, porque suados, porque ciosos de olhar em seu rosto. 

O fato é que minha crença é esta. Jesus é o Irmão Maior, com maiúsculas, mas irmão, e não Pai. Dá vontade de chamá-lo de Deus, mas não é preciso. Seria precioso, mas não exato. Temos uma ideia de que é manso, e que teve seus momentos de fúria e de lágrima, das de sofrer por um amigo, e das de verter sangue de medo. Nossa forma de pensar Jesus o fez descer do símbolo sofrido e colocá-lo entre nós, conduzindo o destino da Terra, mas não do universo, nem mesmo do Sistema Solar. Mas, a Terra já é tanto! Falamos com ele a qualquer momento, de qualquer jeito. Falamos, nem rezamos, nem oramos. É quase conversa de pé de orelha. Profanação suprema! Tiramos quase toda a divindade dele, tornamo-lo humano, um humano divino, mas, por Deus, um humano. Daqueles que nos faz ter esperança na humanidade, porque se ele conseguiu, quem sabe, uma vida dessas, conseguiremos. 

sábado, 16 de março de 2019

Raskolnikov: o assassino ordinário



Falo, neste vídeo, sobre o protagonista do romance "Crime e Castigo" de Dostoiévski. Como era sua personalidade, o que o levou a cometer o crime, como ele entendia a sociedade, o que seria sua teoria dos homens extraordinários, como é a estrutura do romance que conta o calvário desse jovem pedante e perdido. Esse vídeo faz parte de uma coletânea de exposições que busca dissecar o universo dostoievskiano. 

sexta-feira, 15 de março de 2019

Nova Era

Quase todas as semanas, as famílias nossas amigas se reúnem em torno de O Evangelho segundo o Espiritismo  para discutir os temas suscitados por esse livro que nos é quase sagrado.

Ontem o encontro se iniciou com a exaltação das crianças alegres, pulando, inventando brincadeiras, que é a forma de umas dizerem às outras: que bom lhes rever. 

Conversei um pouco com meu amigo relatando meus últimos esforços para entrar na vida saudável. Parabenizei-o pela entrevista que deu a respeito das precauções que a comunidade deve ter na época de chuvas com relâmpagos.

Ele tomou o violão que estava em seu carro, tocou uma música para nos elevar. O meu menor subiu à mesa e ficou olhando aqueles dedos darem vida às cordas do violão. Abrimos o Evangelho, que agora vínhamos lendo item por item, na sequência proposta por Kardec. Era a vez da "Nova Era": 

"Deus é único e Moisés é o Espírito que Ele enviou em missão para torná-lo conhecido não só dos hebreus, como também dos povos pagãos..."

Ao final da leitura, tomou a palavra o violeiro:

- Me veio em mente, por algum motivo, que o problema da nossa era vem sendo os cristãos moralistas. Eles se esmeram ativa e bitoladamente para censurar comportamentos que eles consideram impróprios, mas cuja impropriedade pode ser apenas da cabeça deles. Eles se comportam como essa religião mosaica para a massa dos hebreus antigos, que eram tocados mais por sinais exteriores do que pelo espírito da mensagem. 

- Entendo. Veja, por exemplo, aquele diálogo que tive com nosso amigo de orientação sexual homoafetiva. De certo modo, para ter aquele diálogo, que foi um de muito respeito, precisei sair do meu lugar para estar aberto àquela forma de amar um parceiro. É um diálogo que pede flexibilidade da sua forma própria de ver as relações, olhar com o espírito. E olhar o Espírito! Enxergar que aquele ser é um que vem passando por múltiplas experiências, das quais esta aqui não é senão a amostra de uma construção arquimilenar. A reencarnação é a salvação da intolerância!  

- E apesar disso, desse alargamento de consciência que a reencarnação nos propõe, até mesmo espíritas renomados escorregam na intolerância. 

- Por outro lado, fico pensando se podemos ser tão críticos assim com esses que defendem sua fé com fervor. Sempre me ressenti dos jovens ao meu redor que não tinham uma bandeira na vida, e seguiam pusilânimes, quase feito zumbis, preocupados com movimentos pequenos, quase imediatos na vida. O objetivo do agora é ir só até mais ali adiante, quando muito, quando não se desfaziam ensimesmados, sem brilho, sem causa para lutar. 

- Mas, o que vejo é o contrário disso. Bandeiras e idolatrias de toda sorte foi o que (des)animou o Brasil nesses tempos. Há um ex-presidente preso, deus da esquerda. Há os que estão unidos, mãos dadas com força e desespero, através do ódio contra aquele que fazem questão de dizer ser um presidiário.

- De fato, hoje não é mais a frouxidão dos ideais que me preocupa, mas daqueles erroneamente abraçados. Então, a discussão toma outro rumo. Para não cair naquela frouxidão que, de certa forma caracteriza esses ecumenismos piegas, que, na gana de unir os diversos, reduz as singularidades das crenças a alguns dogmas possíveis de serem pacíficos, para não cair nisso, não deveríamos respeitar esses ativismos?

- O problema dos ativismos que evoco está em outra ordem. Ele se aprofunda e se torna abominável porque toca nos critérios de salvação da alma. Não se vê homens de times de futebol diferentes entendendo que o outro pode ir para o inferno em virtude de ser adversário. Mas, no caso por exemplo da homoafetividade, é essa a crença. 

- De fato! Todavia, se eu tenho a ideia de que os gentios podem ser salvos, e que meu Deus é o único Deus possível, e que a partir dele uma única concepção do homem passível de salvação surge, estarei sendo um criminoso se não tentar a conversão. O próprio Bento XVI, em sua época, havia evocado que a questão da homoafetividade estava na concepção do homem segundo a Bíblia, segundo a natureza, que é aquela que Deus criou, na qual reside Sua vontade. Defendia ele, e é mesmo assim na teologia católica, que o homem possui uma natureza, uma essência, que Deus o criou com uma forma, e essa forma traz um propósito a ser maturado. O exercício ruim da liberdade afastou o homem de Deus e o conduziu à danação. A primeira consequência dessa visão de mundo é que o homem é livre até certo ponto, mas é um ponto que chega a poder desobedecer a vontade de Deus. O mal, em grande parte, vem dessa desobediência. A segunda conseqüência é a possibilidade de o homem ser convencido do contrário do que ele imagina ser o certo, isso deixa margem para seu retorno ao bem, caso ele esteja em pecado. Daí a possibilidade, e até mesmo a necessidade, do ativismo apostólico de espalhar a boa nova para a humanidade.

Minha esposa, que até então revezava a atenção entre nós e as crianças, argumentou:

- O problema é forçar essa salvação através de imposições exteriores que mais castigam do que elevam. A conversão verdadeira se faz através do próprio exemplo que ilumina os demais naturalmente. 

Então, lembrei-me do romance "Crime e Castigo" de Dostoiéviski, onde a personagem Sônia era um símbolo dessa fala. A mulher mais fraca de todas, menos convincente, menos pura - se apenas olharmos o exterior. Ela era meretriz, mas para sustentar toda uma família. Era fraca, porque acreditava na força de todos os indivíduos. Não conseguia olhar ninguém no olho, porque considerava cada alma, por trás dos olhares, como um milagre maior do que sua própria vida. Ao final do romance, visitando presos na Sibéria, todos os presos a amavam. Quantas vezes ela pregou Cristo para aqueles criminosos? Nunca! E, ao mesmo tempo, a todo instante, através de cada célula de seu corpo, de cada movimento da sua alma. 

Entendemos, então, que o que a Nova Era, inaugurada pelo Espiritismo, vinha passar era a assunção de Cristo em uma espiritualidade sutil que enfim nos faça ser sua imitação, sem ter que ficar alardeando nossa conversão e a necessidade de conversão dos outros com tanto mais vigor e rigor quanto menos nosso coração estivesse mergulhado naquilo. 

domingo, 10 de março de 2019

Introdução à Dostoiévski



Por que importa estudar Dostoiévski em um canal de filosofia? Não foi ele apenas um romancista? Não, não foi apenas. Foi o romancista. E ele influenciou grande parte do movimento de desconstrucionismo que veio logo após. Detalhe, é que muitos aproveitaram dele apenas a parte depressiva, quando em sua obra ele trouxe o debate com perspectivas de solução para a desconstrução tão grandiosas quanto a fenda que ele gerou na razão que se queria salvadora do mundo. Mais ainda, ele colocou em personagens reais, assentados na vida mais palpável, com atos próximos a qualquer um de nós, a metafísica mais densa. Esse vídeo tenta mostrar conceitos fundamentais para começarmos a entrar no mundo dostoievskiano.

sexta-feira, 8 de março de 2019

Amiga diz que sua filha nasceu com múltiplas deficiências



AMIGA: Allan! Como vc está? Quanto tempo! Sabe, esses dias eu me vi pensando sobre nossas conversas sobre religião e o sentido de muita coisa, sobre os problemas da minha avó que não sei se vc lembra. Allan, quanta dificuldade a vida tem, e quanta força temos que ter para continuarmos felizes! Minha filha nasceu com múltiplas deficiências. E eu tenho muita fé em Deus e penso que deve ter sentido tudo tão intenso acontecer na vida. Não sei pq estou falando isso, talvez porque sempre te vi com tanta fé. Rezo para a minha aumentar todo dia. Espero que esteja tudo bem com sua linda família! Um grande Abraço!

ALLAN: Que saudade das nossas conversas! Não sabia sobre as deficiências da sua filha. Meu núcleo familiar mais próximo (eu, Mia e as crianças) está bem, mas quando começa a se afastar desse circulozinho as coisas estão desmoronando. Não cabe eu detalhar pra você. Às vezes dá uma trégua, e eu penso, deve se estar dando um fôlego porque vem chumbo grosso pela frente. Daquela nossa conversa (2006) para cá, vi tantas dores nos seres humanos. A profissão me fez ficar próximo de tantas mazelas humanas, que a fé chegava a estremecer. Dia desses me vi sendo interpelado por um amigo que queria entender porque o ano de 2019 estava começando com tantas bombas (incêndio, morte, destruição). Ele tinha perguntado porque sabia que eu era espírita e gostaria que eu conversasse com ele como naqueles dias que conversei com você, mostrando caminhos de consolo e, apesar de tudo, grandeza na Criação. Veja só: eu titubeei em falar, minha fala falhou. 

Ainda sou espírita, e muito, mas tenho abraçado um certo espiritismo sombrio, um que entende a onipresença do sofrimento no mundo e aceita o mistério de Deus. Faz tempo que não converso com Deus, com devoção e carinho. Tenho passado a ideia de Deus para meus filhos, em pequenas preces noturnas antes de eles dormirem, em frente a uma vela que queima lentamente enquanto rezamos preces decoradas. Sempre tive críticas sobre preces decoradas. Sempre fazia questão de improvisar as palavras. Hoje não mais. É como se o espírito estivesse cansado do meu próprio verbo e cedesse às palavras sagradas da boca de santos, que puderam mais do que eu na passagem pela Terra. Quatro principais embalam o sono das minhas crianças: Pai Nosso, Avé Maria, Oração ao Anjo da Guarda e Oração ao Divino Menino Jesus. Houve uma época até que tentei rezar o terço. Não suportei a repetição. E certamente isso fala menos contra o terço do que contra minha disciplina diante de Deus. 

Vou te falar um pouco sobre duas faces da vida. Tem uma que é bem lógica e é o que aprendemos insistentemente no espiritismo mais prosaico: tudo tem um porque. Lemos os romances psicografados por Chico Xavier, e lá as revelações das conexões dos nosso sofrimentos são bem claras com ações que fizemos no passado. O mundo há muito é quebrado, e sempre esteve nas nossas mãos deixar de quebrar e passar a consertar. Sua avó, sua filha, meus parentes que sofrem são reflexos de todo esse movimento. Ajudamos se não quebramos ainda mais o que já vem trincado. Tem outra face que é a do amor de Deus, infinito porém obscuro. Se Ele tem todo o poder, como Ele deixou tudo isso acontecer? Obscuro. Parece racional aceitarmos as teses propostas pelos romances espíritas de uma lei que nos chama a responsabilidade do mundo, mas às vezes parece pouco consoladora essa visão matemática. Sabe o que me consola mais nesse amor infinito e obscuro de Deus? É que é direcionado especialmente para mim, para você, para cada pessoa em particular. A imagem mais forte desse amor é a do Jesus abandonado. Ele era Deus, ou para os espíritas, um deus, e sua dedicação era tal que deu sua própria vida para ajudar cada pessoa que nele confiou (fé=fides=confiança). A imagem de Jesus é a de um deus quebradiço, mas que foi até a última gota alguém que esteve conosco, do lado. Essa imagem ressurgiu do sepulcro como um amigo que mostra as chagas e continua dizendo: vou ao Pai, mas estamos juntos. 

A encarnação do Cristo na Terra fala mais ou menos assim: "Eu sei de todo o sofrimento pelo qual você passa! (Veja que ele não fala para uma comunidade, mas para cada pessoa em particular, direto ao coração). Eu passei por algo assim também. Decidi sair das mais altas esferas da felicidade incorruptível para ser junto de você. Ao morrer e ressuscitar, eu quis dizer, não tema. Lute, continue, persevere, e em breve, parece um infinito, mas em breve, você estará comigo, em paz, do meu lado, no meu abraço." Ele se dirige a você e a sua filha. Fala ao ouvido de cada uma de vocês. E vendo Jesus falar assim, dá um ânimo que, para além de qualquer lógica, nos faz querer ser pelo ser amado que sofre o que ele foi por cada um de nós: alguém que abdica da própria felicidade, que se quer incorruptível, para apaziguar uma dor.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Os 5 pecados da Razão



Abordagem introdutória e essencial para prosseguir nossas exposições filosóficas a fim de deixarmos claro como devemos proceder com o uso dessa ferramenta tão preciosa que é a razão. Exceder seus limites no contexto humano é o resumo dos pecados (hybris), mas nesse vídeo esmiuço alguns vetores que levam a esta resultante. Sempre será bom retornar a este vídeo e ver se não estamos incidindo sobre os mesmos erros, pois a tentação é grande.

As brigas em torno da noção Ego




Conversa que surgiu com minha esposa acerca das falas dos mais diversos terapeutas que vez ou outra alvejam o ego como o centro dos problemas das pessoas. Busco fazer certa genealogia das críticas, pegando desde o budismo, passando, em um salto imenso por Freud, voltando ao Cristianismo. 

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

A casa da vovó

Poderíamos chamar esse relato também de vovó. Até antes de ela morrer, eu não entendia que o centro do espaço é a alma. Os judeus constroem o templo e o cobrem de ritos, mas tudo por causa do santíssimo, onde Deus se revela. 

Quando as férias iniciavam, viajávamos para a casa dela. Esse caminho tomava duas estradas. A primeira percorrida de carro até nossa casa no interior. A segunda, de bicicleta até a oficina mais próxima a fim de encher o pneu, e depois até, enfim, à sua casa.

Era uma casa enorme de cinco cômodos com uma rachadura no meio do chão da sala de estar onde, diziam-me, antes havia uma bancada de budega. Aquela sala já havia sido um comércio. 

O quarto de dormir tinha duas camas de casal. Uma delas era de mola, onde pulávamos à revelia. A outra era a do meu irmão mais velho, criado por ela, o preferido. Adolescente, seu sono era sagrado. Deveríamos andar pisando em ovos se ele estivesse dormindo, sob pena não apenas das repreensões de vovó como também, e mais importante, de ele querer nos bater. 

O meu irmão é um personagem que influiu nos meus primeiros gostos musicais, nos primeiros passos de danças, nas primeiras e ingênuas ideias do que deveria ser um rapaz descolado, sedutor, famoso e querido entre os seus e, de algum modo, líder. Os seus amigos eram sombras. Sua bicicleta era enorme e veloz. Um dia apareceu cheia de marchas, com adesivos impressionantes. E, acima de tudo, sabia dirigir carro com velocidade e manobrar como ninguém. Deixemos ele um pouco de lado, certamente retornará.

Logo atrás do quarto de dormir era a sala de jantar, das tapiocas, cafés-com-leite, pães com ovos, baiões-de-dois, paçocas, e a cozinha, logo ao lado, onde tudo era preparado. Era o único café coado que eu bebia na vida. Em casa, era o solúvel. É que na vovó, tudo era pra ser consumido por muitos. O café solúvel representa uma forma bem individual de consumir o café, o coado, uma coletiva. Vovó era de todos nós. Meus primos possuíam a mãe diferente da minha, o pai diferente, irmãos, cada um com o seu, mesmo o meu irmão tinha um pai que não era o meu. Mas, vovó era igualmente de todos.

De vez em quando, galinhas entravam na cozinha, cansadas da monotonia do quintal. Neste havia três pés-de-cajarana que nos sustentaram, macacos, até um dia, adolescente, perceber que os galhos nem eram tão altos assim. A maior façanha de todas era chegar ao inatingível olho da árvore que só o nosso primo mais magro conseguia fazê-lo num segundo. Ele também, mais macaco que nós, pulava de um galho a outro. Nosso peso imprimia um medo salutar contra os esnobismos dele. 

Logo ao lado era a casa da tia, mãe do meu melhor amigo da infância, meu primo, de uma parecença tal que fazia confundir os displicentes, embora eu moreno e ele branco. Nossas personalidades são tão diversas e acabamos seguindo caminhos tão diferentes, mas dia desses me admirava o quanto que, no fundo, éramos parecidos até nas formas de ser atualmente: não gostamos de afrontar autoridades, prezamos a gentileza e a amizade, somos dedicados à família, conquistamos carreira acadêmica, dividimos a preocupação das mães com problemas neurológicos. Deu pra coincidir de nossas casas estarem em reforma nestes meses só para o acaso brincar com o julgamento que fazia de nosso parentesco. 

As portas da casa eram de madeira muito fina, desgastada. Qualquer chute arrombaria. Eram divididas em duas partes. A de cima, deixava apenas o vento entrar, sem o cachorros saírem. A de baixo, não fazia sentido deixar apenas esta aberta, só se fosse para pregar uma peça em um adulto que teria de se baixar para passar. Os ferrolhos eram de madeira. Fácil mesmo de arrombar. Mas, estamos em 1990. Os becos da noite daquela cidadezinha ainda não conheciam as drogas alucinógenas. Apenas os bêbados tropeçavam na madrugada e alguns adolescentes malandros davam vazão às suas aventuras. Roubo de uma casa era uma manchete incomum que se espalhava rápido no burburinho do dia. O presídio era um pequeno lugar que albergava desordeiros, mas não criminosos. O que eu quero dizer é que não se tinha medo que arrombassem a porta da casa. Ela fechava como fechamos os olhos, para dormir. 

Rito de renovação

Tive que reaprender algum comportamento ritual depois de grande. Vivi os ritos normais de uma civilização quase-cristã, meio-romana, vagamente judaica.

O ano começa com um rito de renovação. Geralmente passávamos essa data no interior, pequena cidade natal de mamãe. Era o período das férias que ia do final de novembro ao final de janeiro. O rito começava pela ansiedade do presente natalino, envolto pelo alegre mistério de um velhinho que distribuía magicamente presentes pelo mundo. A muito custo tentavam enxertar a mensagem de que Jesus era o grande motivo das festas. Eu entendia que o menino do presépio era importante, que ele era o grande responsável pela paz no mundo, mas se o presente não chegasse às mãos seria infeliz. 

Papai Noel era o símbolo de que alguém muito poderoso olhava para as crianças o ano inteiro e as queria bem. Todas as crianças estavam irmanadas como objeto de seu bem querer. 

Era o momento também de comparar presentes, o meu com o das outras crianças, primos e amigos da vizinhança. Ganhava, muitas vezes, os melhores. Não atentava que por trás dessa diferença se escondia o status de papai, médico da região, a luta de minha tia para criar um, dois, depois três filhos sem pai presente, ou ainda, que o presente refletia bem a riqueza da própria casa de cada um. Minha casa ocupava quase um quarto de quarteirão. Nela cabiam cerca de cinco ou seis casas de amigos.

Depois falarei sobre a casa de vovó, e o quanto aquela vizinhança deu as principais cenas da meninice. Falarei também sobre vovó, e o quanto aquela mulher ajudou a construir os melhores lugares de mim. 

Passando o Natal, era o ano novo. Desejos de prosperidades eram trocados nas ruas. Alguns fogos de artifício coloriam o céu, que no interior é especialmente estrelado. Eu ainda não havia me deslumbrado com o céu da zona rural. Ainda não havia me dado conta o quanto as luzes da terra apagam as do céu. Deslumbrado ficava era mesmo com a cidade grande. O quanto ela se modificava após dois meses de férias, novas ruas, diferentes sentidos, novos prédios. 

Percorridos cem quilômetros de caatinga, entrar no perímetro da mata atlântica, penetrar na conurbação metropolitana, saber que, pouco depois de se ter visto as chaminés das fábricas de castanha, entraríamos na grande veia que nos conduziria ao nosso edifício, perdido na confusão de outros tantos edifícios no coração da cidade. Era bom ir para o interior. Era bom voltar para a cidade grande. Ficava uma saudade para trás. Mas, havia um encantamento na frente. Não eram os shoppings ou os parques de diversão. Não sei bem o que era. Aqui possuía bem menos liberdade, amigos, lugares para onde ir. 

Havia o quinto andar do nosso primeiro prédio que, para a infelicidade de quem morava no quarto, era a área de lazer. Os espaços exíguos invadidos pelo asfalto não permitiram uma margem para um parquinho. Foi uma novidade boa quando nos mudamos para um lugar que havia espaços de lazer no térreo. Havia um certo parque atravessado por um riacho por onde eu passava apressado, apenas acompanhando papai, que ia comprar o jornal no sábado e no domingo. Apenas uma vez na semana, mamãe encarava uma ida ao parque da faculdade de direito, quatro quarteirões adiante, onde havia balanços, escorregadores, crianças brincando de pega-pega, comidas de barraquinhas. 

No interior era a bicicleta que abria as portas de toda a cidade, de uma ponta à outra. Essa liberdade merece um texto a parte. Basta por ora entender o quanto a cidadezinha da zona rural me dava liberdade espacial infinita. Até mesmo o video-game só poderia ser ligado lá. O quanto a cidade grande era pequena. Todavia, acho que eram os olhos. Pronto, os olhos. Os cenários que enxergava entre as grades eram tantos e tão diversos que não cansava de os mirar. Talvez fosse a disciplina do tempo. Ao contrário do que as crianças pensam, criança adora disciplina. Um horário certo para acordar e dormir. A exigência de almoçar tal hora, logo após se arrumar, para em seguida ir à escola. A ânsia de reencontrar os amigos de classe e e a tia da turma. O que será que aprenderíamos de novo naqueles tempos cronometrados? Eram duas felicidades que marcaram a respiração da minha infância: a expansão do corpo nas férias, a expansão da inteligência nas aulas. 

Claro que sei não ser certo binarizar. A inteligência infantil se alimenta das emoções do corpo livre, contudo algo que havia esquecido, e que só agora tomo a reviver nestes relatos, é o quanto a inteligência e as emoções infantis são desafiadas pela clausura. Contrair para expandir, voltar a contrair. É uma verdade fisiológica vivida pela alma, pela civilização, pela história, dizem mesmo, pelo universo.

O ano se iniciava com largas asas. Então, era voá-lo. 

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Em berço espírita

Senti vontade de apresentar o espiritismo através de minha biografia. Como que para que entendam o que ele é como comunidade propícia para uma criança crescer. 

Todos os domingos era sagrado papai nos levar ao centro espírita. Nele, eu e minha irmã éramos entregues a evangelizadoras que nos ensinavam o bom proceder na vida com vistas a agradar a Deus. 

As temáticas cristãs, da herança judaica aos milagres do Cristo, eram naturalmente misturadas com as particularidades que só vieram modernamente com o espiritismo: mediunidade e reencarnação. 

Desde pequeno me era óbvio: Deus é supremo, Jesus seu filho mais querido que olha por nós, sobrevivemos à morte, podemos nos comunicar com os falecidos, a qualquer momento eles podem voltar em um processo que denominamos de reencarnação. 

Eu não sabia o quanto aqueles conceitos eram polêmicos. Mais na frente apenas me ria de colegas da escola não saberem o que eu sabia. Sentia-me um privilegiado. 

Porque não tive infância difícil, coberto de facilidades, maltratado apenas por uma asma que nas chuvas me apertava o peito, levando-me ao hospital de madrugada, não dei para questionar as atitudes divinas. Não coloquei em confronto a bondade, o poder e a justiça de Deus com a maldade, os desmandos e as iniquidades do mundo. Era bem óbvio, pela reencarnação, que tudo o que de mal havia no mundo vinha das más escolhas do homem, e que apenas ele poderia se redimir. Raciocínio matemático: meu quarto está desarrumado porque eu não o arrumei. 

Não fui um garoto piedoso. Buscava mais os elogios. Se a caridade era festejada, deveria procurar exercê-la. Diziam-me as evangelizadoras que assim o fazíamos quando éramos gentis, obedientes aos pais, cuidadosos com os irmãos, respeitosos com os mais velhos. Quando fazíamos as lições, estudávamos e éramos bons alunos. Arrumávamos o quarto, não cometíamos peraltices. Não mentir, não roubar, não falar mal do colega. Eis o caminho para o céu. 

De todas essas práticas de ascese, a mais difícil, de longe, era ser cuidadoso com o irmão, no caso, a irmã. Eu não suportava a minha. Brigávamos por qualquer coisa. Ela instigava, eu revidava. Chegávamos a nos espancar. Uma vez a empurrei ao ponto de a queda abrir uma ferida em sua cabeça. De outra vez, ela encostou o ferro quente em meu peito. Os cabelos dela vez ou outra restavam em minhas mãos. Certo dia, ela fechou o portão no meu dedo, que quase é decepado fora. Na maior parte do tempo, era uma animosidade latente. Quando culminava nesses excessos, um sentimento de culpa e desespero me invadia, talvez menos por misericórdia do sofrimento dela, do que pelo medo da punição materna. À época ainda não se havia instituído a lei anti-palmada.

À noite, antes de dormir, mamãe nos ensinava o Pai Nosso e a Ave Maria. Por algum tempo, o verso "Santa Maria mãe de Deus" não me incomodou. Apenas depois é que fui me perguntar como Deus, que é a origem de tudo, pode ter uma mãe. Com a ajuda do colégio católico em que fomos alfabetizados, em pouco tempo decorei estas orações. Serviam, dizia-nos, para nos proteger a noite dos monstros. Então, era menos os significados que elas carregavam, mas sim o poder mágico que elas tinham que importava. Muito cedo, dei para não dar valor a orações decoradas e passar a fazer uma que viesse das minhas próprias palavras, acho que instado pelas tias da evangelização domingueira. 

Quando me ensinaram a respeito da vida livre do Espírito durante o sono, que neste período nos desgarrávamos e poderíamos ir aonde quiséssemos, a prece antes de dormir passou a ter o objetivo de chamar o anjo da guarda para que me conduzisse  aos lugares mais alegres e bonitos. 

Disse que não fui um garoto piedoso, e que a infância foi repleta de facilidades. E se eu tivesse nascido entre pais que se odeiam, numa vizinhança conturbada, com a fome a me ferir os nervos e o frio castigando a pele? Quando eu rezasse para o Pai-de-todos e os berros continuassem, os tiros cortassem o céu, o alimento deste não descesse e o cobertor não caísse, que força teria tido meu coração infantil de sustentar o amor a Deus? Até que ponto a reencarnação de justificativa lógica para os males não passaria para um peso de culpa: o que fiz para merecer isso. Ingredientes explosivos para a revolta, que não aconteceu. 

João de Deus: uma chaga evitável



Qual o caso que tenho em mente quando escrevo isto:

- Um médium próximo ao espiritismo* (mas que se dizia católico?) que se dedica à medicina alternativa denominada cirurgia espiritual, internacionalmente conhecido e visado. Cobra certo preço em meio ao processo. Recentemente caiu sobre ele acusações de abusos sexuais, centenas, provindas de todo o Brasil.

Sobre essa imagem, trago de volta os conselhos do Prof. Allan Kardec com minhas palavras.

Centro espírita tem que ser pequeno. Por quê?
- Porque assim as pessoas podem se conhecer melhor, estudar com mais conforto as obras fundamentais para o engrandecimento moral, bem como engendrar um processo de análise das comunicações mediúnicas que receberem com mais cuidado e menos melindre, já que se tratam de amigos. Assim se tem um processo de vigilância que as previne de as discórdias tomarem proporções destruidoras para o grupo.

E se houver discórdia?
- O discordante, se não arrastar a todos pela verdade de sua palavra, funda outro centro espírita além. E se discordar dos pontos tidos como fundamentais na definição do espiritismo, funda novo movimento com outro nome.

É temerário o médium ter um lugar de destaque no centro espírita. Por quê?
- Porque suas comunicações são o objeto de estudo e não o núcleo fundante de novos dogmas. Se ele for o centro, o líder, o sacerdote, quem estará acima dele para criticá-lo, guiá-lo em direções mais sãs? Como saber se o que vem dele é de Deus se sua palavra for a última?

A humanidade precisa do contato com o transcendental pelos mais diversos canais. Médiuns são indispensáveis!
- É verdade. Quando éramos aqueles que errávamos no deserto esperando um profeta, muitos eram os que jogavam prodígios e milagres sobre a população. O profeta verdadeiro se sobressaía pelo seu exemplo santo, esmagado pela sombra de Deus. Hoje estamos em uma sociedade em que todo autor de milagre é glorificado em algum X's Got Talent. A sociedade do espetáculo.

Ainda Kardec: a mediunidade é apenas a entrada da doutrina. Quando se é convencido da realidade do mundo espiritual, devemos partir para as consequências morais.

Mas, os milagres de cura são bem diferentes. Eles são o poder de Deus descendo para aliviar os aflitos.

- Qualquer alívio ou mesmo cura é temporário se não houver transformação moral efetiva. Não é demais insistir: fenômeno mediúnico, qualquer que seja, é apenas ignição.

Pode-se cobrar pela graça distribuída?
- Não, já que é graça. Isso previne o charlatanismo. De onde virá a renda que sustenta o que quer que seja (uma cidade inteira?!) quando a graça da forma que veio, isto é, espontaneamente, desaparecer? Resposta: de fenômenos forjados.

O perigo do exercício da mediunidade à la João de Deus já estava previsto nos primeiros anos de doutrina espírita. O que acontece com um médium que é o foco das atenções de milhões de adoradores?
- Envaidece-se, certo dia suas vestes são rasgadas, revela-se a carne humana, e cai.