sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

A casa da vovó

Poderíamos chamar esse relato também de vovó. Até antes de ela morrer, eu não entendia que o centro do espaço é a alma. Os judeus constroem o templo e o cobrem de ritos, mas tudo por causa do santíssimo, onde Deus se revela. 

Quando as férias iniciavam, viajávamos para a casa dela. Esse caminho tomava duas estradas. A primeira percorrida de carro até nossa casa no interior. A segunda, de bicicleta até a oficina mais próxima a fim de encher o pneu, e depois até, enfim, à sua casa.

Era uma casa enorme de cinco cômodos com uma rachadura no meio do chão da sala de estar onde, diziam-me, antes havia uma bancada de budega. Aquela sala já havia sido um comércio. 

O quarto de dormir tinha duas camas de casal. Uma delas era de mola, onde pulávamos à revelia. A outra era a do meu irmão mais velho, criado por ela, o preferido. Adolescente, seu sono era sagrado. Deveríamos andar pisando em ovos se ele estivesse dormindo, sob pena não apenas das repreensões de vovó como também, e mais importante, de ele querer nos bater. 

O meu irmão é um personagem que influiu nos meus primeiros gostos musicais, nos primeiros passos de danças, nas primeiras e ingênuas ideias do que deveria ser um rapaz descolado, sedutor, famoso e querido entre os seus e, de algum modo, líder. Os seus amigos eram sombras. Sua bicicleta era enorme e veloz. Um dia apareceu cheia de marchas, com adesivos impressionantes. E, acima de tudo, sabia dirigir carro com velocidade e manobrar como ninguém. Deixemos ele um pouco de lado, certamente retornará.

Logo atrás do quarto de dormir era a sala de jantar, das tapiocas, cafés-com-leite, pães com ovos, baiões-de-dois, paçocas, e a cozinha, logo ao lado, onde tudo era preparado. Era o único café coado que eu bebia na vida. Em casa, era o solúvel. É que na vovó, tudo era pra ser consumido por muitos. O café solúvel representa uma forma bem individual de consumir o café, o coado, uma coletiva. Vovó era de todos nós. Meus primos possuíam a mãe diferente da minha, o pai diferente, irmãos, cada um com o seu, mesmo o meu irmão tinha um pai que não era o meu. Mas, vovó era igualmente de todos.

De vez em quando, galinhas entravam na cozinha, cansadas da monotonia do quintal. Neste havia três pés-de-cajarana que nos sustentaram, macacos, até um dia, adolescente, perceber que os galhos nem eram tão altos assim. A maior façanha de todas era chegar ao inatingível olho da árvore que só o nosso primo mais magro conseguia fazê-lo num segundo. Ele também, mais macaco que nós, pulava de um galho a outro. Nosso peso imprimia um medo salutar contra os esnobismos dele. 

Logo ao lado era a casa da tia, mãe do meu melhor amigo da infância, meu primo, de uma parecença tal que fazia confundir os displicentes, embora eu moreno e ele branco. Nossas personalidades são tão diversas e acabamos seguindo caminhos tão diferentes, mas dia desses me admirava o quanto que, no fundo, éramos parecidos até nas formas de ser atualmente: não gostamos de afrontar autoridades, prezamos a gentileza e a amizade, somos dedicados à família, conquistamos carreira acadêmica, dividimos a preocupação das mães com problemas neurológicos. Deu pra coincidir de nossas casas estarem em reforma nestes meses só para o acaso brincar com o julgamento que fazia de nosso parentesco. 

As portas da casa eram de madeira muito fina, desgastada. Qualquer chute arrombaria. Eram divididas em duas partes. A de cima, deixava apenas o vento entrar, sem o cachorros saírem. A de baixo, não fazia sentido deixar apenas esta aberta, só se fosse para pregar uma peça em um adulto que teria de se baixar para passar. Os ferrolhos eram de madeira. Fácil mesmo de arrombar. Mas, estamos em 1990. Os becos da noite daquela cidadezinha ainda não conheciam as drogas alucinógenas. Apenas os bêbados tropeçavam na madrugada e alguns adolescentes malandros davam vazão às suas aventuras. Roubo de uma casa era uma manchete incomum que se espalhava rápido no burburinho do dia. O presídio era um pequeno lugar que albergava desordeiros, mas não criminosos. O que eu quero dizer é que não se tinha medo que arrombassem a porta da casa. Ela fechava como fechamos os olhos, para dormir. 

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