sábado, 25 de novembro de 2023

Confissão

    O meu filho mais velho, atualmente com dez anos, por tradição materna, fará o ritual católico da primeira comunhão. Hoje foi o dia de se confessar para, limpo de pecados, poder comungar em breve. Na semana que passou, ele quebrou o pé e teve que o engessar. Eu que estive com ele no hospital, levando-o nos braços, um garoto de 36 quilos. 

    Uma das coisas que mais me dá raiva nesta vida é não entender a razão de algo. Isso me deixa inseguro, exposto, como que desnudo. A minha vida está cheia de âncoras para não me sentir à deriva, são os meus vários papéis: de médico, de marido, de pai, de irmão. A religião, particularmente a espírita, acalma o terror da incógnita do que há depois da morte, o que houve, o que haverá. Mas vá qualquer coisa do cotidiano sair da ordem que consigo prever, e já me dá um desespero. 

    A perna quebrada do João foi uma dessas coisas. Eu me certifiquei bem, pela descrição dele, pela do professor de educação física, ele estava apenas correndo, e uma corrida leve, apenas para se esconder como pedia o jogo. Então, torceu o pé e fraturou a base do 5º metatarso. Que raios! Isso lá é mecânica de trauma para fraturar nada! Daí me vem a busca pela razão suficiente, e fico remoendo cenários possíveis que me justifiquem o ocorrido. Nada me consola. Porque a alternativa possível é ter sido uma fratura em um osso fraco. E o osso fraco, na idade dele, é uma doença mais grave. Só que até hoje, nunca teve indícios de doença grave em seu corpo. E as divagações seguem seu curso catastrófico. 

    Conseguimos muletas para ele se equilibrar, já que não pode colocar os pés no chão. Todavia, ele não sabe usá-las, não tem destreza. E a carência de explicação misturada com o ter de ficar ajudando-o como a um aleijado, a possibilidade de ser algo mais grave que o deixe dependente por muito mais tempo e o seu desleixo com a muleta vão me dando uma fúria e uma impaciência que me fazem ser bruto com os cuidados com ele. 

    Parte disso é uma ferida que ainda habita em mim da época de mamãe. A dependência dela colocava em perigo a minha independência para seguir em frente a formação do homem que deveria ser. Do contrário, estagnaria como o filho perpétuo, sem casa, sem casar.

    Hoje, esse sentimento não faz mais sentido. Estou de casa e casamento, sou pai, tenho três filhos. Sou médico com os pacientes certos. Por que a insatisfação? É que a possibilidade da doença que deixa o outro dependente de mim traz de volta a quebra da cadeia lógica da vida que gostaria como fosse, o padrão. João deverá crescer e ser independente, ter a própria profissão e me deixar para trás, ganhando o mundo. Isso acontecerá se ele tiver uma doença de ossos frágeis? É uma ameaça à minha vida certinha.

    Daí vem não mais a razão, mas a sabedoria. A vida é certa, mas não para nós. É segundo uma visão da eternidade que o seu arrazoado se faz. Querer encontrar o gabarito antes da morte é uma pretensão diabólica. A verdadeira fé não é a que tem a resposta nas mãos, mas a que aceita o texto que vamos conseguindo ler na medida que caminhos pelas linhas traçadas.

    Ele estava tão feliz hoje entre seus colegas de primeira comunhão. 

    - Você viu, pai! Eles estavam me abraçando!

    Fechava os olhos ao abraçar cada amigo como quem morde o primeiro pedaço de chocolate que há tempos não provava. Passou a manhã sendo cuidado por eles. Sem mais insistir nas certezas, pelo menos no que toca esse incidente, deixo em aberto as hipóteses, acolhendo uma delas como a mais importante: quem sabe Deus não deu à João o sofrimento de um pé quebrado para que ele sentisse o prazer de ser cuidado, para que ele sentisse nos ossos o quanto somos frágeis, necessitados frequentemente de perdão.

    - Perdão, Senhor! Por ser bruto com meu filho quando ele mais precisava, por colocar a segurança da minha razão a frente do consolo de minha criança. 

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