sexta-feira, 15 de março de 2019

Nova Era

Quase todas as semanas, as famílias nossas amigas se reúnem em torno de O Evangelho segundo o Espiritismo  para discutir os temas suscitados por esse livro que nos é quase sagrado.

Ontem o encontro se iniciou com a exaltação das crianças alegres, pulando, inventando brincadeiras, que é a forma de umas dizerem às outras: que bom lhes rever. 

Conversei um pouco com meu amigo relatando meus últimos esforços para entrar na vida saudável. Parabenizei-o pela entrevista que deu a respeito das precauções que a comunidade deve ter na época de chuvas com relâmpagos.

Ele tomou o violão que estava em seu carro, tocou uma música para nos elevar. O meu menor subiu à mesa e ficou olhando aqueles dedos darem vida às cordas do violão. Abrimos o Evangelho, que agora vínhamos lendo item por item, na sequência proposta por Kardec. Era a vez da "Nova Era": 

"Deus é único e Moisés é o Espírito que Ele enviou em missão para torná-lo conhecido não só dos hebreus, como também dos povos pagãos..."

Ao final da leitura, tomou a palavra o violeiro:

- Me veio em mente, por algum motivo, que o problema da nossa era vem sendo os cristãos moralistas. Eles se esmeram ativa e bitoladamente para censurar comportamentos que eles consideram impróprios, mas cuja impropriedade pode ser apenas da cabeça deles. Eles se comportam como essa religião mosaica para a massa dos hebreus antigos, que eram tocados mais por sinais exteriores do que pelo espírito da mensagem. 

- Entendo. Veja, por exemplo, aquele diálogo que tive com nosso amigo de orientação sexual homoafetiva. De certo modo, para ter aquele diálogo, que foi um de muito respeito, precisei sair do meu lugar para estar aberto àquela forma de amar um parceiro. É um diálogo que pede flexibilidade da sua forma própria de ver as relações, olhar com o espírito. E olhar o Espírito! Enxergar que aquele ser é um que vem passando por múltiplas experiências, das quais esta aqui não é senão a amostra de uma construção arquimilenar. A reencarnação é a salvação da intolerância!  

- E apesar disso, desse alargamento de consciência que a reencarnação nos propõe, até mesmo espíritas renomados escorregam na intolerância. 

- Por outro lado, fico pensando se podemos ser tão críticos assim com esses que defendem sua fé com fervor. Sempre me ressenti dos jovens ao meu redor que não tinham uma bandeira na vida, e seguiam pusilânimes, quase feito zumbis, preocupados com movimentos pequenos, quase imediatos na vida. O objetivo do agora é ir só até mais ali adiante, quando muito, quando não se desfaziam ensimesmados, sem brilho, sem causa para lutar. 

- Mas, o que vejo é o contrário disso. Bandeiras e idolatrias de toda sorte foi o que (des)animou o Brasil nesses tempos. Há um ex-presidente preso, deus da esquerda. Há os que estão unidos, mãos dadas com força e desespero, através do ódio contra aquele que fazem questão de dizer ser um presidiário.

- De fato, hoje não é mais a frouxidão dos ideais que me preocupa, mas daqueles erroneamente abraçados. Então, a discussão toma outro rumo. Para não cair naquela frouxidão que, de certa forma caracteriza esses ecumenismos piegas, que, na gana de unir os diversos, reduz as singularidades das crenças a alguns dogmas possíveis de serem pacíficos, para não cair nisso, não deveríamos respeitar esses ativismos?

- O problema dos ativismos que evoco está em outra ordem. Ele se aprofunda e se torna abominável porque toca nos critérios de salvação da alma. Não se vê homens de times de futebol diferentes entendendo que o outro pode ir para o inferno em virtude de ser adversário. Mas, no caso por exemplo da homoafetividade, é essa a crença. 

- De fato! Todavia, se eu tenho a ideia de que os gentios podem ser salvos, e que meu Deus é o único Deus possível, e que a partir dele uma única concepção do homem passível de salvação surge, estarei sendo um criminoso se não tentar a conversão. O próprio Bento XVI, em sua época, havia evocado que a questão da homoafetividade estava na concepção do homem segundo a Bíblia, segundo a natureza, que é aquela que Deus criou, na qual reside Sua vontade. Defendia ele, e é mesmo assim na teologia católica, que o homem possui uma natureza, uma essência, que Deus o criou com uma forma, e essa forma traz um propósito a ser maturado. O exercício ruim da liberdade afastou o homem de Deus e o conduziu à danação. A primeira consequência dessa visão de mundo é que o homem é livre até certo ponto, mas é um ponto que chega a poder desobedecer a vontade de Deus. O mal, em grande parte, vem dessa desobediência. A segunda conseqüência é a possibilidade de o homem ser convencido do contrário do que ele imagina ser o certo, isso deixa margem para seu retorno ao bem, caso ele esteja em pecado. Daí a possibilidade, e até mesmo a necessidade, do ativismo apostólico de espalhar a boa nova para a humanidade.

Minha esposa, que até então revezava a atenção entre nós e as crianças, argumentou:

- O problema é forçar essa salvação através de imposições exteriores que mais castigam do que elevam. A conversão verdadeira se faz através do próprio exemplo que ilumina os demais naturalmente. 

Então, lembrei-me do romance "Crime e Castigo" de Dostoiéviski, onde a personagem Sônia era um símbolo dessa fala. A mulher mais fraca de todas, menos convincente, menos pura - se apenas olharmos o exterior. Ela era meretriz, mas para sustentar toda uma família. Era fraca, porque acreditava na força de todos os indivíduos. Não conseguia olhar ninguém no olho, porque considerava cada alma, por trás dos olhares, como um milagre maior do que sua própria vida. Ao final do romance, visitando presos na Sibéria, todos os presos a amavam. Quantas vezes ela pregou Cristo para aqueles criminosos? Nunca! E, ao mesmo tempo, a todo instante, através de cada célula de seu corpo, de cada movimento da sua alma. 

Entendemos, então, que o que a Nova Era, inaugurada pelo Espiritismo, vinha passar era a assunção de Cristo em uma espiritualidade sutil que enfim nos faça ser sua imitação, sem ter que ficar alardeando nossa conversão e a necessidade de conversão dos outros com tanto mais vigor e rigor quanto menos nosso coração estivesse mergulhado naquilo. 

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