terça-feira, 5 de maio de 2020

Eu importo

Eis o desafio do século entre as correntes espiritualistas: defender o Eu das pessoas.

O tema do Eu me apareceu com mais força quando um amigo me falou estar seguindo certo guru cuja crítica principal era sobre o apego às questões mundanas, que são passageiras. Essa temática é recorrente entre os gurus de linha oriental e pousaram sobre a filosofia pós-moderna criando raízes malignas. Veja em que ideias ela está assentada:



  1. O eu é nossa manifestação no mundo
  2. Essa manifestação é uma de apego ao que o mundo é
  3. O mundo não é, pois não passa de passagem
  4. O eu, pelas premissas 1 e 2, se apega, necessariamente, ao que não é
  5. Esse apego ao que não é gera existência sem sentido
  6. Existência sem sentido gera sofrimento

Qual a solução proposta pelo guru? Desapegue-se do eu, portanto, colocando em xeque a premissa 1. Em favor de que? De escapar do sofrimento, que é a conseqüência 6.

As pessoas se encantam demais com o murmúrio dessa sereia. Mas, temos de ir com calma. As premissas estão certas? O eu é nossa manifestação no mundo. Sim, mas é só isso? Não existe algo em nós que veio antes do mundo e sobreviverá a ele mantendo individualidade? O que haveria de se manifestar no mundo se não houvesse nada a priori? Se quiséssemos ser radicais na premissa destrutiva do eu, deveríamos dizer, o eu não é mais que a própria vida manifestando-se a si mesma no desenvolvimento de um movimento cego cujas origens estão guardadas no abismo da história. Mas, se o eu é a própria vida, por Deus!, o eu é tudo o que temos. Como escapar dele? Se o eu é algo mais que consegue inclusive enxergar o movimento cego da vida, este eu é alguma coisa a mais. Como poderíamos magnificar esse movimento de superação da mundanidade passageira sem recorrer ao próprio eu de onde o artifício de superação provém?

Colocam como demonstração a posteriori, então, a hipervalorização do eu provocada pela cultura do consumo de tudo, representada pela fala: eu quero ou eu desejo. A ânsia do consumo em um mundo onde nem tudo pode ser consumido geraria um paradoxo de insatisfação constante destruidora do próprio ser que deseja. Certo, a crítica procede. Estamos valorizando demais nossos desejos imediatos. Mas, todos os desejos seriam destruidores? Não haveria a busca sã que provocaria conquistas do eu fortalecendo-o verdadeiramente?

A crítica dessas espiritualidades de retiro e esvaziamento quer solapar a base de nossa cultura. Buscar desenvolver-se em um trabalho que nos dignifique é tudo o que fazemos desde os modernos, herdeiros do amor ao serviço cultivado nos mosteiros. O bonde desandou quando substituímos os objetivos últimos de nosso trabalho. Os monges oravam e trabalhavam para provocar uma ascese que os fizesse dignos de entrar no reino de Deus, com as vestes adequadas, para a grande festa de núpcias, em que Deus casaria com a igreja num apocalipse magnânimo. O homem moderno aos poucos substituiu esse fim último em Deus pelo de ser um cidadão útil para a Nação. A substituição culminou nos totalitarismos, uma vez que a Nação tomou as vezes de Deus, e o seu condutor o sumo-sacerdote.

Passada a Era dos Totalitarismos, o capitalismo devora o cotidiano e provoca nova subjugação do eu. É essa forma do eu de ser o consumista do imediato que merece crítica. 

Mas, existe um eu imortal, que dá sentido a toda a nossa vida, para além e aquém da extenuação das células. Basta ver as coisas cotidianas. Você sonha algo ridículo, acorda e reconhece elementos seus nos sonhos. Consegue estranhar o que houve. Quando é tomado por ações equivocadas, compelido por pulsões intestinas, um quê de sobriedade te faz se reconhecer no meio do ato, às vezes te dando força para barrar o ato. Ou, quando o erro se consumou, o arrependimento existe em relação a você mesmo que sabe ter praticado aquilo. É o eu que se manifesta no confessionário falando de si. 

Existe um eu que paira transcendente nesta vida, mas que ao mesmo tempo está mergulhado nela, como que costurando todos os lapsos. A falha daquele silogismo de seis pontos é tomar o eu fugidio, que se manifesta cristalizado em ações cotidianas mortais, pelo eu maior que dá sentido e identidade para tudo o que se fez, se faz e se fará. Um eu que se reconhece na história e entende suas projeções futuras. Aquele que olha o álbum e consegue dizer: sou eu. Aquele que olha um mapa astral e diz: faz sentido esse caminho das estrelas que foi reservado para mim. 

Caso não se queira ceder aos argumentos que exponho em linhas gerais contra os esoterismos de aniquilação do eu, dou apenas mais um preventivo contra eles. Os gurus, em grande medida, são eus inchados loucos para tornar subservientes os eus ressequidos por falta de sentido no tumulto da vida.

- Esvazie sua mente e não se iluda nas pegadinhas do eu. 
- Quem me fala isso?
- Sou o guru Shamabanpala. 
- Mas você é você ou você sou eu?
- Já não sou mais. 
- Então você fala de um lugar que não é?
- Nem sou, nem não são. 
- É o nada?
- Nem nada, nem tudo. 
- Então, não você não é da minha dimensão. Pode passar adiante. Não ser pra minha vida.  

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