domingo, 10 de maio de 2020

Do medo

O mundo mergulha numa nuvem de medo. As pessoas morrem aos magotes. Corpos são amontoados em valas comuns. Os ritos fúnebres são silenciados. 

Se após a morte há algo, e se esse algo é uma continuidade promissora, ainda que com passageiro ranger de dentes, devemos mais temer entregar o mundo ao medo do que a alma à imortalidade. 

Viver lutando, sabendo que à esquina pode estar a morte foi o normal da humanidade. Estes últimos séculos foram bem atípicos. 

Do Pecado

Não é de se livrar do pecado que se faz a salvação. O pecado a espreita faz parte de nossa natureza. Ir contra ele com todas as forças só nos faz dele escravos. Viver, sabendo que ele está ali, nos faz humanos e preparados. A vigilância é o que devemos procurar e não a santidade. 

quinta-feira, 7 de maio de 2020

A face não consoladora do Espiritismo

Depois de viver uma vida de trabalho e decepções entrecortadas por momentos de alegria sempre passageiros, não raro se pode desejar a morte como um fim para o mal que é a vida. Então, ao saber que ela continua quase igual, que nossas inclinações e paixões não mudam, mas apenas se faz uma passagem para outros tipos de vivências que são outras formas de nos aperfeiçoar, preferiria-se ir para o nada. 

Espiritismo, assim, é consolador para quem tem outros desejos: o de alçar voo para as grandezas que relativizem os sofrimentos humanos, o de atingir conhecimentos que nos façam entender o mistério da dor e a justiça do Criador, e, por fim, de alcançar uma força moral que nos torne imunes à perfídia dos maus. 

Para os que querem repouso eterno, as promessas espíritas são a visão do inferno. 

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Apenas o Redimido pode vencer o Mal

Há algumas sutilezas simbólicas na reflexão que vou construir aqui. Apenas o Redimido pode vencer o Mal. Redimido e Mal se encontram em iniciais maiúsculas. Isso significa que são dois arquétipos da natureza. Quem são?

O Redimido é aquele que passou pelo mal, experimentou-o, lambuzou-se dele, mas saiu do seu domínio. Deve-se ter em mente que no universo judaico-cristão não há bem um inferno como apenas um depositário das almas dos nossos mortos, como o é na Grécia antiga. Há, sem exceções, uma vida eterna de sofrimentos para aquele que se afastou de Deus. O inferno é o mal. Dizer que o Redimido é aquele que passou pelo mal é equivalente a dizer que ele entrou no inferno e dele saiu. 

Todavia, semelhante a todos os que fazem essa passagem na mitologia grega, isto é, os que, vivos, entram no mundo dos mortos e conseguem sair, trazem consigo o segredo da eternidade, cultuado em torno de mistérios. 

O Redimido, assim, é o que, vivo, experimentou o Mal em suas veias e conseguiu se purificar dele. Esse personagem carrega em si os mistérios da sobrevivência. Não a sobrevivência física, que nada é, mas a sobrevivência moral. Ele traz a marca do Bem imortal. Não é conhecer o Bem. É alcançar a pureza. 

Sendo assim, pelo exposto no texto, minha tese de "apenas o Redimido pode vencer o Mal" se torna outra forma de conceituar o próprio Redimido. 

O que separa católicos e espíritas é: a Redenção não é conquistada mas dada de graça pelo único que foi verdadeiramente capaz dela, assim acreditam os católicos. O espírita entende que cada um de nós pode ser tornar um Redimido. 

Se colocarmos a crença católica em mente, o Redimido passou pelos infernos, mas nunca foi do inferno. Ele entrou na carne humana corrompida pela discórdia da serpente, mas venceu cada tentação do mundo. Ele foi a passagem de Deus iluminando as experiências humanas, redimindo-nos. Para o espiritismo, Jesus é um Espírito antiquíssimo que já passou por várias provações, chegando no ápice da escalada humana, sendo modelo e guia para todos nós. 

O que nos convida à lucidez, dando o braço a torcer para a noção católica, é que ninguém em sã consciência pode conquistar a redenção nesta única vida. Somos de fato cheios de falhas e senões, seres lacunares, quando não vazios mesmo, e pequenos para mais não poder. Precisamos de Jesus como exemplo norteador. E, no momento em que nos encontramos, e por muito tempo além, precisaremos da figura do Rabi iluminando nossas consciências e nossos corações. Se focássemos apenas em uma vida, a única forma de sair daqui, concordo, é via Jesus, o Redimido por excelência. 

terça-feira, 5 de maio de 2020

Eu importo

Eis o desafio do século entre as correntes espiritualistas: defender o Eu das pessoas.

O tema do Eu me apareceu com mais força quando um amigo me falou estar seguindo certo guru cuja crítica principal era sobre o apego às questões mundanas, que são passageiras. Essa temática é recorrente entre os gurus de linha oriental e pousaram sobre a filosofia pós-moderna criando raízes malignas. Veja em que ideias ela está assentada:



  1. O eu é nossa manifestação no mundo
  2. Essa manifestação é uma de apego ao que o mundo é
  3. O mundo não é, pois não passa de passagem
  4. O eu, pelas premissas 1 e 2, se apega, necessariamente, ao que não é
  5. Esse apego ao que não é gera existência sem sentido
  6. Existência sem sentido gera sofrimento

Qual a solução proposta pelo guru? Desapegue-se do eu, portanto, colocando em xeque a premissa 1. Em favor de que? De escapar do sofrimento, que é a conseqüência 6.

As pessoas se encantam demais com o murmúrio dessa sereia. Mas, temos de ir com calma. As premissas estão certas? O eu é nossa manifestação no mundo. Sim, mas é só isso? Não existe algo em nós que veio antes do mundo e sobreviverá a ele mantendo individualidade? O que haveria de se manifestar no mundo se não houvesse nada a priori? Se quiséssemos ser radicais na premissa destrutiva do eu, deveríamos dizer, o eu não é mais que a própria vida manifestando-se a si mesma no desenvolvimento de um movimento cego cujas origens estão guardadas no abismo da história. Mas, se o eu é a própria vida, por Deus!, o eu é tudo o que temos. Como escapar dele? Se o eu é algo mais que consegue inclusive enxergar o movimento cego da vida, este eu é alguma coisa a mais. Como poderíamos magnificar esse movimento de superação da mundanidade passageira sem recorrer ao próprio eu de onde o artifício de superação provém?

Colocam como demonstração a posteriori, então, a hipervalorização do eu provocada pela cultura do consumo de tudo, representada pela fala: eu quero ou eu desejo. A ânsia do consumo em um mundo onde nem tudo pode ser consumido geraria um paradoxo de insatisfação constante destruidora do próprio ser que deseja. Certo, a crítica procede. Estamos valorizando demais nossos desejos imediatos. Mas, todos os desejos seriam destruidores? Não haveria a busca sã que provocaria conquistas do eu fortalecendo-o verdadeiramente?

A crítica dessas espiritualidades de retiro e esvaziamento quer solapar a base de nossa cultura. Buscar desenvolver-se em um trabalho que nos dignifique é tudo o que fazemos desde os modernos, herdeiros do amor ao serviço cultivado nos mosteiros. O bonde desandou quando substituímos os objetivos últimos de nosso trabalho. Os monges oravam e trabalhavam para provocar uma ascese que os fizesse dignos de entrar no reino de Deus, com as vestes adequadas, para a grande festa de núpcias, em que Deus casaria com a igreja num apocalipse magnânimo. O homem moderno aos poucos substituiu esse fim último em Deus pelo de ser um cidadão útil para a Nação. A substituição culminou nos totalitarismos, uma vez que a Nação tomou as vezes de Deus, e o seu condutor o sumo-sacerdote.

Passada a Era dos Totalitarismos, o capitalismo devora o cotidiano e provoca nova subjugação do eu. É essa forma do eu de ser o consumista do imediato que merece crítica. 

Mas, existe um eu imortal, que dá sentido a toda a nossa vida, para além e aquém da extenuação das células. Basta ver as coisas cotidianas. Você sonha algo ridículo, acorda e reconhece elementos seus nos sonhos. Consegue estranhar o que houve. Quando é tomado por ações equivocadas, compelido por pulsões intestinas, um quê de sobriedade te faz se reconhecer no meio do ato, às vezes te dando força para barrar o ato. Ou, quando o erro se consumou, o arrependimento existe em relação a você mesmo que sabe ter praticado aquilo. É o eu que se manifesta no confessionário falando de si. 

Existe um eu que paira transcendente nesta vida, mas que ao mesmo tempo está mergulhado nela, como que costurando todos os lapsos. A falha daquele silogismo de seis pontos é tomar o eu fugidio, que se manifesta cristalizado em ações cotidianas mortais, pelo eu maior que dá sentido e identidade para tudo o que se fez, se faz e se fará. Um eu que se reconhece na história e entende suas projeções futuras. Aquele que olha o álbum e consegue dizer: sou eu. Aquele que olha um mapa astral e diz: faz sentido esse caminho das estrelas que foi reservado para mim. 

Caso não se queira ceder aos argumentos que exponho em linhas gerais contra os esoterismos de aniquilação do eu, dou apenas mais um preventivo contra eles. Os gurus, em grande medida, são eus inchados loucos para tornar subservientes os eus ressequidos por falta de sentido no tumulto da vida.

- Esvazie sua mente e não se iluda nas pegadinhas do eu. 
- Quem me fala isso?
- Sou o guru Shamabanpala. 
- Mas você é você ou você sou eu?
- Já não sou mais. 
- Então você fala de um lugar que não é?
- Nem sou, nem não são. 
- É o nada?
- Nem nada, nem tudo. 
- Então, não você não é da minha dimensão. Pode passar adiante. Não ser pra minha vida.  

Novidadeiros

Ontem um companheiro espírita nos expôs que o grupo do qual faz parte está com um projeto de disponibilizar as comunicações mediúnicas do grupo sobre temas evangélicos específicos ao público em geral, por meio de plataforma da internet, a fim de promover um diálogo dos encarnados com os desencarnados como no tempo de Kardec. 

Não será como no tempo de Kardec. 

Ele disse que não se abrirá à crítica, mas apenas a perguntas que serão respondidas pelos espíritas. 

Como eu disse, não será como Kardec. 

Kardec questionava às vezes até a encurralar o espírito manifestante em um diálogo de pé de orelha. Fazia isso porque sabia que o médium mais bem dotado poderia se mistificar e ser vítima de embusteiros do além que venderiam gato por lebre. 

Mas, nós espíritas nunca aprendemos esse tipo de diálogo. Todos nós, carregando atavismos de quando éramos rebanho de sacerdotes e profetas, baixamos a cabeça para ouvir o indivíduo mediunizado. 

Bezerra de Menezes se manifesta pelo palestrante. A fala do pretenso Dr. Bezerra não acrescenta em nada qualquer discussão, mas a platéia se comove, e aquilo é tido como que uma bula papal fechando pontos soltos.

Nos meados do século XIX, Kardec ainda teve que enfrentar a morosidade dos correios e a exiguidade de ajudantes. Nesta época agora de comunicação instantânea e inteligência artificial, o risco de encher nossas caixas de mensagens com textos desprezíveis cresceu exponencialmente. As novidades viralizam e adoecem. 

Talvez nosso cérebro esteja passando por uma transição para conseguir suportar essa intoxicação de informações. Mas daqui que atinjamos novo patamar de equilíbrio, só os clássicos que sobreviveram ao tempo nos defendam dos novidadeiros.