domingo, 13 de novembro de 2016

Ágape: o amor sublimado



Falar sobre ágape é dos mais difíceis temas que se pode falar, porque ele não nos pertence, não de forma fácil. Os imperativos cristãos de amar talvez sejam o que melhor apontam para o ágape. Tão distante de nós que precisa alguém nos mandar (imperativo) vivê-lo. Contudo, de fato ele existe como possibilidade do nosso peito. 


Comecemos por Deus 


Parto do absoluto para depois relativizá-lo. A melhor forma de pensar a ideia de ágape é a da criação do homem segundo a concepção judaico-cristã. Deus era tudo, porque precisava criar algo? Não precisava, mas criou. Primeiro ponto: ágape é um tipo de amor que ama sem motivo, sem necessidade. 

Deus cria do nada (ex nihilo). Sua palavra gera o universo, e o homem no centro dele. Importa lembrarmos que o homem, na tradição judaico-cristão, é a criatura a que Deus reservou o destino de viver conSigo. É o Grande Pai cuidando do filho: lhe concede terras, animais e até uma bela esposa. A visão do Gênese é de uma comunidade patriarcal, claro, mas depois entendemos que o destino de estar ao lado de Deus é para todos, homem e mulher. Então, Deus cria do nada. Segundo ponto tirado da palavra nada: ágape é um tipo de amor incondicional. Não há algo anterior ou um interesse prévio que justifique amar o outro. Terceiro ponto tirado da palavra criar: não é preciso mesmo que o outro exista para ser amado, ágape é um amor que concede existência ao outro. Se Deus era o único existente, e criar o homem foi um ato de amor, ágape é um amor que gera (concede existência) amando. 

Há uma visão judaica da criação de Deus que nos dá uma pista ainda mais preciosa sobre o ágape. Chama-se Tzin-tzum. Chama-nos a atenção que o Tudo não pode criar mais qualquer coisa, pois já é tudo. Portanto, para Deus (o Tudo) criar algo teve de se esvaziar (nadificar-se) um pouco para dar lugar à criação. Quarto ponto: ágape é um tipo de amor que está aberto ao sacrifício de si. O que vemos na tragédia de Jesus, o homem-Deus que desceu à Terra para dar sua vida para a redenção do homem adâmico, é a materialização do tzin-tzum


O que tudo isso tem a ver com nossa forma de amar?


Vamos para a relativização do absoluto, ou melhor, a secularização dele. Como podemos enxergar ágape entre nós?

Primeiro ponto: amar sem motivo. Eros tem motivo para amar, embora muitas vezes pareça imotivadamente visceral. Ou é a forma, ou o cheiro, ou o jeito, o andar, o sorriso, algo que afeta os sentidos. Amar sem motivo é algo gratuito. No nosso cotidiano pode aparecer a posteriori: amar o companheiro quando já não temos mais motivo para amá-lo. Amava-o porque era jovem, mas envelheceu; porque era forte, mas enfraqueceu; porque era sadio, mas adoeceu; porque era rico, mas empobreceu; porque era belo, mas tornou-se feio. E, provavelmente, o amor mais difícil: porque era amável, mas tornou-se um bruto. 

Segundo ponto: amor incondicional. Dialoga com o primeiro ponto. É a extensão do amor gratuito. Poderíamos nos ver dizendo: "Amo-o contanto que ele cuide de mim ou dos meus filhos". Dizer simplesmente "Amo-o" é o que esse segundo ponto nos convida a fazer. Veja este exemplo de minha vida. Quando meu primeiro filho nasceu, papai estava morto já iam cinco anos. Desejei por um minuto que o pequeno fosse papai de volta à carne. Minha esposa me chamou a atenção: "Você não pode colocar esse peso sobre ele. Deve amá-lo pelo que é agora, não pelo o que possa ter sido." Vê? "Amo-o contanto que seja meu pai". Não. "Amo-o". 

Terceiro ponto: amor que concede existência ao outro. Acontece quando amamos mesmo sem retorno, mesmo que no outro não haja possibilidade aparente de amar de volta. Quando o companheiro se acidenta e entra em demência grave. Quando, perde a sanidade mental e o olhar perde o brilho. Mas também, e talvez é a forma mais fácil de ver este amor, quando se ama o filho recém-nascido que pode morrer amanhã sem ter chegado na idade de demonstrar seu amor. 

Quarto ponto: o amor que está aberto ao sacrifício. Dialoga com o terceiro ponto, mas esclarece a natureza de amar um outro que não nos ama: é sacrifício. Todas as situações que citei são vivências dolorosas, caminho de espinhos, crucificação. O desafio está em conseguir viver esse amor sem perder a alegria. Cair na tristeza e na desesperança é o mais fácil, o mais lógico. Aliás, não amar dessa forma que expus aqui é o mais natural, o mais humano. Esse amor é de Deus, por isso comecei falando Dele. Todavia, é o desafio que Jesus nos propôs já vão dois milênios, assumindo a condição de sermos filhotes de Deus

No post anterior, eu disse que esse é um tipo de amor que pode salvar os outros dois quando tudo parecer perdido. Quando se vê que o outro está impossibilitado de dar algo de volta (quebra do eros), quando se vê que o outro te traiu (quebra da filia), ágape surge como possibilidade de o amor ainda dar certo. Para isso, ágape pede paciência, resignação, concede força, perseverança. 

Sobre o tempo dele. Lembram? Eros era instante que se dilatava. Filia, tempo que se contraía. Ágape vive na dimensão do eterno (o tempo anulado). É o tempo que Deus espera pelo nosso amor. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário