sexta-feira, 6 de março de 2015

Entrevista para Associação Brasileira de Artistas Espíritas




1. Como você se envolveu com a atividade artística espírita?
Sou cria de espíritas. Frequento os centros desde a infância. Na juventude, me encantaram duas coisas: a evangelização de crianças e a arte como instrumento de evangelização. Desde então, venho associando esses dois elementos como norteadores do meu momento encarnatório: evangelizar as crianças, que todos nós somos, através da arte. Tenho fortes laços com o teatro, mas também, e a quase todo instante, com a poesia.

2. Como você define a arte espírita?
Eu gosto muito da definição clássica de arte: a manifestação do inteligível na matéria do sensível. Essa definição não vem de nenhum espírita, mas vejo o Espiritismo todo nela. O que é o inteligível do Espiritismo? O Bem, o Justo, o Belo e, coroando todos eles, o Amor. Manifestar estes elementos eternos na matéria sensível é a que se destina qualquer arte espírita, qualquer vida espírita, apontando a grandeza do Criador e revelando o otimismo da existência para qualquer um que se depare com nossas obras.

3. Você já escreveu várias peças espíritas, algumas delas inclusive já montadas por grupos, como o LEMA. Poderia comentar como é o seu processo de criação?
As ideias se me apresentam pelos motivos mais cotidianos. Dia desses me encantei com uma ciranda, e nos meus olhos uma trama de amor, preconceito e luta por reencontros se desenrola em um átimo. A ciranda crescia em espiral e cindia a realidade em duas dimensões por onde flutuaria a história. Quando, dou por mim, o espetáculo termina, mas meu espírito ainda vaga pelas lembranças para onde a atenção foi deslocada. A esposa chama a atenção para o meu retorno à realidade. É quando, eufórico, começo a contar para ela a ideia que tive. Digo “que tive”, porque geralmente quando eu digo “que me disseram” ela acha que estou fazendo charme, fingindo desprezar uma pretensa genialidade. Acho, de fato e com muita intensidade, que somos seres interexistenciais. O problema é que estamos de tal forma enredados em uma cultura material que acabou por nos convencer que o existente é apenas o palpável. Mas, como diz um sociólogo de que gosto muito, Boaventura de Sousa Santos, estamos dominados por uma monocultura de saberes que produziram a inexistência de outros muitos saberes e formas de ver o mundo. Um verdadeiro desperdício de experiências. A última poesia que escrevi para um amigo melodiar surgiu em minha mente minutos antes de eu dormir em um plantão médico. A peça que considero até agora de minha maior maturidade medianímica, “O Auto da Terra do Pé Rachado”, foi construída em ciclos sucessivos de vontade angustiante por escrever. Três desses ciclos me deixaram insone até que o que tinha de ser escrito o fosse de fato. A peça mais gostosa que fiz para a juventude de que participava, “Ser ou não Ser-tão médium” se enganchou no meio da trama. Fui dar um passeio para desanuviar a mente quando sinto a presença arrepiante do personagem a quem eu não sabia dar um desfecho. Junto com a presença, o resto da peça.

4. Além de dramaturgo, você também atua, e um trabalho a ser destacado é o de doutores da alegria. Poderia nos contar sua experiência nessa área?
O mais certo de se falar seria doutor palhaço ou palhaço visitador de hospital, porque Doutores da Alegria já é uma marca registrada de um grupo que admiro muito. O trabalho deles é tão bom e reconhecido que vale como metonímia pra todo esse fazer. Não tenho formação de ator profissional. Toda a virtude que venho aprimorando nesse sentido deve ter vindo comigo e permitido se mostrar desde vidas passadas, estimuladas pelas atividades de mocidade espírita, incrementadas pelos grupos de teatro não-espíritas e espíritas de que já participei. Na faculdade de medicina, tive um receio forte de estar gastando energias com outros labores. Abandonei teatro e evangelização infantil, mas logo percebi que eram energias diferentes. Então, surgiu a oportunidade de fundar um grupo de palhaçoterapia na faculdade. Hesitei inicialmente, mas aceitei. Hoje o grupo, que se chama Projeto Y de Riso, Sorriso e Saúde, está para completar dez anos de serviço profícuo, com vários trabalhos apresentados em congressos, cursos para os desejosos de criarem grupos de palhaçoterapeutas em suas faculdades, e mesmo prêmios pela iniciativa. Estou imerso nos últimos meses na confecção da dissertação de mestrado sobre esse projeto, intitulado: “O espírito do Doutor palhaço: palhaçoterapia e produção de saber em espiritualidade e humanização em saúde.” Tento aí mostrar a descoberta que tive do quanto o elemento espiritual se enreda com a vontade de humanização.

5. Você também desenvolve oficinas voltadas a estudantes da área da saúde. O que se pretende nestas oficinas?
Despertar dimensões do espírito adormecidas pela mecanização da profissão. Faço isso em linguagem completamente não-espírita, mas que acaba espiritualizando para além do que aconteceria se abusasse de nossos jargões. Um dia, um dos jovens participantes das oficinas me falou: “O que acho mais incrível é o quanto você só fala de palhaço, mas serve para a vida inteira!”. Abordamos o tempo especial do gesto, a necessidade de encontrar o ritmo do outro, a atenção dilatada para captar os menores movimentos da vida, a máxima energia para gerar o mínimo, mas denso, momento de beleza, a afinidade da ordem do riso com a da graça, da leveza, com a ordem de tudo o que demos para chamar de espírito em oposição à gravidade, ao peso da matéria, esta grande seriedade. A partir daí, puxar os conceitos de humanização da assistência em saúde, o jogo das relações, a importância do rito e da máscara, da inteireza das interações e, uma particularidade do doutor palhaço mais do que do palhaço propriamente dito, o amor pelo outro como motivo humanitário deste fazer.

6. É fácil conciliar sua atividade profissional, como médico, com o trabalho que desenvolve na área da arte espírita?

Nunca foi. Hoje, menos ainda. Mas, não desisto de tentar. O mestrado, por exemplo, vem consumindo muito tempo. As ideias para a arte me assaltam de vez em quando e tenho que rejeitá-las. Em breve, começarei uma especialização em homeopatia. Pelo o que ando conhecendo desse ramo da medicina, é onde poderei exercer em larga escala o Espiritismo como que reconciliado com a arte de cuidar das pessoas, porque a medicina oficial que hoje praticamos passa por uma séria crise de cegueira sobre as coisas que realmente importam na vida humana. Possuo uma válvula de escape em meu blog sobre filosofia espírita e nas poesias que fico jogando por aí, feito as migalhas de João e Maria para saber como voltar para casa. É como digo na descrição da minha identidade virtual: “A medicina me alimenta, mas é a arte que me nutre. A filosofia me mantém vivo, mas é a espiritualidade que me arrebata.” Seria muito bom se essas frases não tivessem o “mas”, porém o “e”. Todavia, não sinto assim.

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