domingo, 22 de março de 2015

Mundos Superiores e Inferiores


Palestra sobre a temática de vida em outros planetas baseada no item Mundos Superiores e Inferiores de O Evangelho Segundo o Espiritismo. Como recurso didático narro um dia meu, fictício, corriqueiro no planeta Terra como se eu fosse um Espírito de outro planeta bem mais evoluído que me dei conta, neste dia, que vim de outro planeta.

***

Como me levanto da cama: tenho que contrair o abdomen para levantar a cabeça pesada sobre os ombros, por vezes me valer dos braços para agarrar em algo que ajude. O que há? Por que não consigo voar?

Acordar e ver o sol: não consigo, nem ver as múltiplas cores, nem o ultra-violeta nem o infra-vermelho. O sol me cega.

A casa é vazia, onde estão os muitos seres que a habitam? Os invisíveis e os minúsculos? Em meu planeta de origem era uma visão corriqueira.

A boca é ácida e fétida. Bactérias pelejam por destruir meus dentes, preciso matá-las todos os dias.

Encontro o primeiro ser humano: minha esposa. Não me lembro quem ela foi, apenas quem ela está agora. Por que é a ela que amo tanto e não outra pessoa? Outrossim, como entender o móvel profundo de suas ações quando me ferirem sem razão aparente? Às vezes, tragédias relacionais acontecem que passa ao largo da nossa consciência explicar. Fixo em seu olhar para ver se me lembro. Nada, nenhuma lembrança sequer do que fomos em outras vidas.

Segundo ser humano: meu filho. Tem um ano e quatro meses, fala várias palavras incompreensíveis, ainda tenho que trocar sua fralda. Como assim? De onde venho, uma criança nessa idade já estaria bem mais independente.

Terceiro ser humano: A babá. Chama-me de senhor. Que fiz eu para ser seu senhor? Há uma vontade de tecer relações de amizade, mas há choque entre as individualidades, nossos campos fluídicos emanados de nossos pensamentos não se afinam. Eu tenho apenas conhecimento teórico desses fluidos, não os enxergo, estes meus olhos de proteína. E um amigo me diz que nunca se pode ser amigo dos empregados, eles sempre estarão a espera de lhe passar uma rasteira. Minha esposa me mostra uma postagem no facebook e percebo o clima violento que divide o país entre elite e proletários. Que saudade do planeta em que as relações humanas são mais horizontais, não opressivas! Onde reina o carinho e a confiança.

Chego ao trabalho. "Bom dia!" Poucos respondem com a mesma empolgação. Uma pessoa fecha o cenho. Comentários de amigos dizem que certa pessoa é ressentida porque trabalha tanto quanto o médico, fez quase o mesmo tanto de horas na faculdade, mas ganha três vezes menos. Por que ela realmente ganha menos que eu? Um outro amigo me explica a teoria conspiracionista que sou o braço armado da indústria farmacêutica. Braço aramado?! A Terra está em guerra e eu sou um soldado inconsciente?

Um colega me adverte para tomar cuidado porque estão querendo me passar a perna e me tirar o cargo de chefe que ganhei com suor e dedicação: por que homens querem ultrapassar homens e não a si mesmos? Não havia inveja no meu planeta, mas admiração pelos espíritos superiores que nos estimulava a crescer.

Saio do calor de Fortaleza, entro na gélida sala do consultório. Lá fora estava incomodado com o calor, aqui me incomoda o frio. Mas, lá no meu planeta tudo me agradava. Em que estou me transformando? Um ser eternamente insatisfeito.

Começo a atender pessoas doentes: são muitas doenças! O que houve com essas pessoas? Lá todos possuíam corpos em equilíbrio com a natureza.

Volto cansado para casa. O corpo tem o peso triplicado. Adquiri a dor de garganta dos doentes que atendi. Não consigo nem brincar com meu filho, até mesmo porque temo contaminá-lo. Durmo, o Espírito se desprende do corpo e começa a ver as coisa mais claras: os sentidos se espalham por todo o corpo. Percorro o sistema solar conduzido pelo meu anjo da guarda.

Agora é a hora de ver todos os planetas em contemplação espiritual! E entender a grande escola que é o sistema solar: o grande encadeamento evolutivo universal.

sábado, 21 de março de 2015

Inquisição de Curandeiros em pleno Iluminismo



O historiador Thimothy Walker, da Universidade de Massachusetts-Dartmouth, andou pelas terras de Portugal coletando dados para o seu doutorado sobre a caça aos bruxos curandeiros à época da inquisição portuguesa no auge do século XVIII. 

O século XVIII, pessoal, foi o século do Iluminismo, da Enciclopédia, de Voltaire que dizia defender até a morte o direito do outro falar embora não concordando com ele. Havia visto há pouco Descartes separar igreja e laicos no pensamento do método, Newton com um galo na cabeça pela maçã que o fez ter a intuição da gravidade. Mas, claro que isso se deu para além da península Ibérica, porque nesta, a cauda da inquisição ainda deixava escombros. 

É isso que vai mostrar Walker em seu livro Médicos, medicina popular e Inquisição: a repressão das curas mágicas em Portugal durante o Iluminismo. Tendo passado oito (!) anos lendo processos de inquisição, descobre o forte conluio que a medicina oficial firmou junto à igreja a fim de desacreditar as práticas e punir os praticantes da medicina popular. Diz-nos o pesquisador:

"Acreditava-se que algumas pessoas nasciam com um dom, uma capacidade divina de curar pelo toque das mãos. Eram os chamados saludadores. Eles usavam suas mãos para ‘extrair’ a doença ou o que quer que fosse que estivesse a causar sofrimento ao paciente. Por isso, os saludadores preocupavam muito a Inquisição. Pois, teologicamente, havia um entrave: ou essas pessoas estavam sob forças demoníacas; ou Deus poderia, quem sabe, estar mesmo atuando por meio delas. Isso seria um problema e tanto para a Igreja, pois naquela época ensinava-se que a era dos milagres já havia terminado. E a existência de pessoas comuns com capacidade de cura era algo que contradizia a ortodoxia da Igreja." (em entrevista ao Ciência Hoje)

Vamos aprofundar um pouco a questão de "Deus poderia, quem sabe, estar mesmo atuando por meio delas". 

A base do cristianismo oficial é que Deus se manifestou em Jesus e, por isso, ele conseguiu curar e, o que estava constantemente associado ao ato de cura, perdoar pecados. Se um qualquer pudesse fazer esse mesmo ato, Jesus poderia não ser mais que um simples mortal, portador de uma brecha para divindade como qualquer outra pessoa. Claro que sua superioridade moral ainda valia demasiadamente, mas eram os milagres que deram à sua palavra a força de Deus. Se Jesus fosse apenas o mais bem dotado de todos os seres humanos que já passaram pela Terra, diferindo-se de nós apenas de forma quantitativa e não qualitativa, isso seria o fim de uma autoridade que descolava a Igreja do mundo secular, deixando seu poder fragilizado. 

As conseqüências para essa fragilização do poder espiritual não se daria apenas em termos de política e economia, mas dentro dos próprios valores morais que sustentavam as pessoas, bem como na dissipação das angústias sobre o destino último da vida que, rezava o catecismo, seria ao lado daquele que, tendo vencido a morte, era o dono do Céu em que se findavam todas as misérias que o mundo material outorgara. 

Todavia, é exatamente esse desfecho que o Iluminismo vai lograr alcançar na secularização do mundo. Destruindo o poder intemporal da igreja e dos nobres, as pessoas terão o terrível desafio de encontrar o sentido da vida em outro lugar que não no Céu ao lado de Jesus. Terão de fundar o Reino dos Céus na Terra, pelas próprias mãos. É essa a proposta da democracia. Será a luta dos socialistas. Será a busca dos liberais. Com que armas? Nada que escape do humano. Nada que lembre os sacerdotes ou a natureza hierarquizada da realeza. Tudo que seja próprio do homem: a luta, o trabalho, o debate, o diálogo, a razão. Nada de dádiva, nada de dom, nada de messianato. 

É nessas últimas negações (contra a dádiva, o dom e o messianato, acresça-se a esta lista o mediunato) que o Iluminismo será também um inquisidor da medicina popular. É essa obra que eu ainda estou para encontrar. Precisamos de alguém de fôlego e coragem para construí-la. Sobre isso falarei em outro post. 

***

Ficam mais alguns lugares em que você pode ver mais sobre o estudo que citei:

  • Entrevista concedida à Agência Fiocruz de Notícia: aqui.

  • Entrevista concedida ao Ciência e Letras:




quarta-feira, 18 de março de 2015

Meu filho quer ser evangélico




- Pai, quero ser evangélico!

Isso me faz lembrar de vários amigos queridos que tenho, particularmente dois. Desculpem-me os outros. Mas, há pessoas que nos marcam mais profundamente. Inevitável. 

À adolescência, próximo de mim morava um amigo de escola a quem dei para brincar de chamar irmão, tamanha era nossa parecença, mas também porque compartilhávamos um sobrenome. Muito espirituoso. 

Quando estava estressado, corria para sua casa para desopilar. Chegava a passar horas conversando. Vez ou outra caíamos em assunto de religião, onde eu buscava mais conhecer seu ponto de vista do que o dissuadir. Em sua fala vi, pela primeira vez, longe dos preconceitos de antes, preparados meus ouvidos pela amizade, a intensidade com que alguém poderia viver a crença em Deus. 

Falávamos sobre a prece, e ele me perguntou como meu corpo ficava ao orar. Eu disse que dependia. De noite, antes de dormir, deitado. No meio do dia, indiferente era a posição, apenas elevava o pensamento e começava um diálogo com o Pai de todas as coisas. Ele me disse que não conseguia falar com Deus sem dobrar os joelhos. 

Foi com esse rapaz que aprendi a orar antes de comer. Baixar a fronte por alguns segundos, agradecer, em silêncio, por aquele alimento ter conseguido chegar à mesa. Com ele vi a alegria de ser cristão. Não olhar dolorosamente a cruz onde Jesus se foi, mas os dias felizes de tê-lo ao lado. Acredito que tenham sido eles que, seguindo as monções franciscanas, espalharam no cristianismo os cultos mais joviais, longe dos gregorianos, misturados com os ritmos da terra. Foi quem me estimulou também a ler a bíblia, a conhecê-la mais intimamente, retirar o pó do Antigo Testamento, enxergar Jesus como um descendente do povo da Escritura. 

Outro amigo, ajudou-me a fundar um projeto de palhaços no meio da batalha da faculdade de medicina. Enquanto eu me desnorteava, abandonando tudo que não dizia respeito à ciência médica, pela incapacidade em que me via de conciliar os mundos, ele me mostrou de novo a forma despojada de ser cristão, ou mesmo, como se diz aqui no Ceará, a frescura e a gaiatice de ser humano sem perder a identidade de ser de Deus: esse frescor do Espírito. 

Embora construíssemos um projeto de caridade, nunca falávamos de que crenças partíamos. Um dia, ousei perguntar:

- Cara, sei que nunca tivemos qualquer atrito sobre isso, o que me admira muito. A maioria dos evangélicos nos olham, os espíritas, com desprezo, porque praticamos ações que eles consideram abomináveis aos olhos de Deus: falar com espíritos, etc. Mas, você nunca demonstrou isso, pelo contrário. A amizade mais sincera foi sempre a nossa marca. 

Ele fez algum gracejo e depois obtemperou (queria falar tal e qual disse, mas aqui vão os resquícios da memória):

- Eu não sou Deus para julgar ninguém. 
- Mas, existe aquela polêmica clássica de se o que nos salva é a fé ou as obras. Fizemos juntos este projeto, nossa obra. A fé nos diverge.
- Olha! Sou alguém bem objetivo, não fico me perdendo muito nessas discussões, não. A gente tem que fazer boas coisas no mundo, não podemos deixar que ele fique como está. É verdade que a fé me sustenta, minha família, meus amigos, mas a fé muito e muito. Isso é verdade para mim, e é importante para mim. Não sei bem como isso vai ser para você mais na frente, na frente de Deus. Acho que ele te ama mesmo assim. O julgamento Dele, filhão, é Dele! 

Os evangélicos, filho, são um povo que não concordou com o catolicismo - à época uma religião séria e com graves problemas de julgamento das coisas do mundo - e ganharam espaço para poder existir com alegria a sua adesão a Cristo. Mais leitores da bíblia, mais afeitos para sentir o que chamam de Encontro. Graças a Deus, as guerras entre um e outro aqui no Brasil se dissiparam no nosso grande caldo cultural. Muitos choques fizeram com que os dois credos aprendessem mais um com o outro. E mesmo, no mundo, vemos falas como essa do Papa emérito dos católicos que poderia perfeitamente ser dita por mim falando sobre esses dois amigos:


"Outro motivo de alegria para mim é o fato de nesse ínterim o livro [Jesus de Nazaré] ter ganhado, na volumosa obra Jesus (2008), do teólogo protestante Joachim Ringleben, por assim dizer um "irmão" ecumênico. Quem ler os dois livros notará, por um lado, a grande diferença no modo de pensar e nas orientações teológicas determinantes, em que se exprime concretamente a diversa proveniência confessional dos dois autores; mas, por outro lado e ao mesmo tempo, manifesta-se a profunda unidade na compreensão essencial da pessoa de Jesus e da sua mensagem." (Ratzinger in Jesus de Nazaré: da entrada em Jerusalém até a Ressurreição)

Minha paródia:


- Um motivo de alegria para mim é o fato de minha vida ter ganhado, nestes volumosos dias que se sucederam, irmãos ecumênicos (sem "por assim dizer" e sem aspas). Quem ler as três vidas notará, por um lado, a grande diferença no modo de pensar e nas orientações teológicas determinantes, em que se exprime concretamente a diversa proveniência confessional dos três viventes; mas, por outro lado e ao mesmo tempo, manifesta-se a profunda unidade na compreensão essencial da pessoa de Jesus e da sua mensagem. Irmãos. 


sábado, 14 de março de 2015

Uma síntese da cosmovisão católica



Estávamos discutindo em um grupo de médicos sobre a oficialização ou não do uso de drogas recreativas. Muitas falas coerentes e importantes, algumas contra, outras a favor. Mas, eis que chega um colega católico que expõe sua posição que considerei um belo e inteligente resumo da concepção de mundo católica numa perspectiva tomista. Decido transcrever aqui para o blog a fim de deixar registrado no marcador Outros Credos essa visão de mundo para os que tem vontade de melhor entender:

Médico Católico: Só uma contribuição para o debate, que, concordo, não dever ser erístico e polêmico. Quanto à questão das "leis de Deus", devemos entender que não se trata de imposição ou proibição. Trata-se mais de amor. Uma resposta de amor a um Deus que nos amou primeiro. E que, ao mesmo tempo, concedeu-nos o livre-arbítrio, sem o qual não se poderia amar. Veja que ninguém pode amar verdadeiramente se não for livre (basta imaginar alguém com uma arma na sua cabeça ordenando: "Ama-me!")... Nunca vai funcionar. Ou melhor, pode até haver amor de um lado, mas como não há livre resposta/reciprocidade nunca se obterá amizade. Foi para isso que Deus nos criou, para uma amizade com Ele, para participar de sua beatitude, da vida divina. Assim, os mandamentos constituem não um legalismo de "faça isso ou aquilo e não faça isto ou aquilo". São, antes de tudo, "um manual de instruções" que indica o uso apropriado do "equipamento" a ser manuseado, no caso, a vida humana. Como um inventor, que antes de construir seu invento, concebe sua finalidade, também Deus tem seus desígnios e concebeu o homem dentro de uma ordem e uma finalidade. Igualmente, se cremos tão facilmente que enzimas e proteínas outras agem conforme uma lógica, porque não se pode intuir que haja uma ordem na vida humana do ponto de vista ontológico? Sei que Kant fez o desserviço de acabar com a metafísica (e olha que era um "cristão piedoso"...) dizendo, em linhas gerais, que nada do que não puder ser verificado empiricamente, não pode ser conhecido ou intuído... Problema é que ele não deixou claro baseado em qual experiência ou dado empírico ele afirmou essa restrição. Pura paralaxe cognitiva*. Bom, sem mais delongas, as tais "leis de Deus" seriam um caminho de cumprimento da finalidade para a qual o homem foi originalmente concebido. São recomendações, que não se tornam um fardo pesado para quem ama. Ninguém precisa obrigar alguém a amar a sua própria mãe. Simplesmente se ama e, sem muito questionamento, sabe-se que suas orientações são dignas de crédito. O Criador deu balizas seguras para que a criatura se realize dentro do plano para o qual foi concebida. Mal comparando: o inventor da cadeira (se é que existe um!) pensou nela para assentar o traseiro e não para pôr na cabeça como chapéu; igualmente, o ser humano tem um desígnio para o qual o Criador o criou, e muito logicamente não foi para algo tão pequeno como o prazer fugaz de um entorpecente. 

Allan: Parece-me, Amigo, que a posição de Kant é bem coerente com a de cristãos piedosos. O que ele basicamente fez foi tirar do capítulo da lógica a "prova da existência de Deus" e devolver ao campo da fé. Nossa lógica não funciona para defender a existência de Deus - nem defender nem refutar, ela dá tilt em certo momento. Devemos nos valer de outros parâmetros, outros sentidos, outras sensibilidades. Falar de como deve ser a lei de Deus é complicado para alguém que não é Deus. Podemos, sim, confiar que, por exemplo, uma pessoa fantástica como Jesus e um povo respeitado como o judeu estejam falando verdades extremamente válidas. Confiar, crer, ser fiel, formular um discurso coerente que as sustente na razão esquematicamente. Provar que é assim? Complicado. Daí que, nessa perspectiva kantiana, longe da teocracia, em plena ebulição democrática, a discussão levantada pelo nosso colega é (infelizmente para alguns) mais do que pertinente. E o cristianismo é UMA fala possível e merecedora de respeito tanto quanto...

Médico católico (após ter digitado minutos seguidos, entendo que tecendo uma resposta tão clara quanto sintética, sem perder a profundidade): Deus não precisa ser provado mesmo, caro Allan, mas razão e fé jamais serão incompatíveis. Não se trata de querer provar com argumentos ou fórmulas a existência de Deus. Mas, o que Kant legou à humanidade foi a impossibilidade total de que Deus pudesse ser, ao menos às apalpadelas, buscado através da razão natural e da filosofia. O homem é sim "capaz de Deus" (capax Dei), e esse legítimo esforço, empreendido por homens como Aristóteles, que se aproximou bastante de uma contemplação da existência de Deus (embora a plenitude da revelação cristã tenha se dado com Jesus), passou de repente a "não ser algo possível" após a Crítica da Razão Pura, pelo menos o homem moderno/racional/empírico/científico, etc. E outra coisa importantíssima a se pontuar é que o pressuposto básico do Cristianismo é que Jesus é Deus que se "fez carne e habitou entre nós". Então, se isso não estiver bem claro, aí realmente Jesus vira apenas mais uma personalidade elevada ou um líder religioso. Quando digo que o homem é capaz de Deus, não estou dizendo que a razão natural desvenda todos os mistérios de Deus. Mas, que é possível, por exemplo, enxergar na criação muitos vestígios de Deus, tal como alguém que contempla uma obra de arte e percebe/intui, ainda que de modo imperfeito e limitado, algumas características do autor da obra, sem ter a pretensão de esgotar toda a grandeza do autor. Isso é possível. Mas, para além disso, Deus mesmo se encarnou e nos deu a conhecer muito mais do que só a razão poderia alcançar. O Autor fala de si mesmo. Ninguém melhor, claro. E se Ele é Deus, como crêem os cristão desde o princípio, Ele não se engana nem engana ninguém (nas origens do cristianismo foi necessário inclusive enfatizar a natureza humana da pessoa de Cristo, pois ninguém duvidava da divina...). Mas, nem por isso ele impediu o homem de, através da inteligência, e da razão, meditar sobre as verdades que se conseguem enxergar com esse dom que Ele deu: a inteligência. Não uma sensibilidade extraordinária, que Ele pode também conceder, mas essa razão universal e comum a todos nós, que nos dá inclusive o nome de Homo sapiens. Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo. [essa última frase, o nosso debatedor retira ipsis litteris da encíclica papal de Bento XVI, como você pode constatar aqui]



*Paralaxe cognitiva (esclarecimento feito por outro médico do grupo): é um conceito estudado por Olavo de Carvalho. De acordo com o jornalista brasileiro, a paralaxe cognitiva é "o afastamento entre o eixo da construção teórica e o eixo da experiência real anunciado pelo indivíduo". Se trata de um fenômeno de autoengano coletivo, que surgiu na modernidade e que se encontra patente em várias obras de pensadores e cientistas.

REFERÊNCIAS de leituras sugeridas pelo nosso amigo:
1. Este site: padrepauloricardo.org
2. Encíclica de João Paulo II: Fides et Ratio

sexta-feira, 13 de março de 2015

Por uma ciência mais complexa

Aqui temos a imagem de uma jovem E de uma velha. Não é porque se vê a jovem que a velha não existe. Importa agregar olhares mais do que os colocar em conflito.



Postagem passada critiquei o chamado pensamento científico que é espalhado como senso comum pelas pessoas mais notáveis, por exemplo, um aluno meu de medicina com quem tive calorosa e instigante conversa.

Nessa postagem aqui, respondo à provocação de um dos leitores deste blog que entendeu que eu estava querendo destruir o pensamento científico a fim de provar sofismaticamente que a doutrina espírita, não científica, era verdade. Como se, destruir a ciência, que é, por natureza, aniquiladora de superstições, fosse um ardil para que a minha superstição espírita pudesse crescer em paz. O opositor ironiza: "Eu devo entender que se eu não posso provar que existe: então existe."

Não. Não era aí onde eu queria chegar. Mas, que a ciência é insuficiente para captar a realidade em sua totalidade e, por isso, devemos nos munir de muitos métodos para entender o que está ao redor de nós.

Quando a ciência se arvora como a detentora do poder de considerar existente determinada coisa, a tal ponto de dizer provar que esse ou aquele fato não existe, ela entra em um terreno muito movediço e - a história dá exemplos cruéis disso - por vezes se entrega como discurso político para extinguir determinadas culturas e formas de existir de pessoas. Daí a necessidade imperiosa que surgiu nos últimos séculos de relativizar o pensamento científico ou, pelo menos, encontrar o seu lugar de atuação.

É do pensamento científico afirmar categoricamente que Deus inexiste? Não. Sobre Deus, a questão é quase ponto pacífico. A ciência nada pode dizer nem contra nem a favor. A ideia de Deus escapa dos métodos científicos. A ideia dos Espíritos, por outro lado, nós espíritas defendemos que a ciência, ao contrário do que diz o discurso oficial, não só pode provar como provou a existência deles. As experiências de Kardec, León Denis, William Crookes, Gabriel Dellane, Albert de Rochas, Cesare Lombroso, Ernesto Bozzano, Joseph Banks Rhine (fenômenos teta), para citar os mais clássicos, fazem a festa nesse sentido.

Importa saber, lembrando a teoria de Thomas Khun sobre os saltos paradigmáticos, que a ciência não vive apenas de encontrar a verdade, mas de defender um tipo de verdade que obedece a fortes disposições sócio-históricas, até que as mesmas caduquem. Não somos sempre isentos de emoção quando fazemos ciência. Muitas vezes defendemos apaixonadamente a teoria a qual nos filiamos para deixar os fenômenos claros em um tecido explicativo, o que impede, por muito tempo, de ver os furos da teoria. Há também as thematas, que são crenças que servem como panos de fundos para as grandes cabeças pensantes direcionarem as próprias suspeitas. Por exemplo, esclare Edgar Morin: "Max Born diz que Einstein acreditava no poder da razão de captar, por intuição, as leis pelas quais Deus criou o mundo, isto quer dizer que, na mente de Einstein, Deus não é totalmente metafórico." E essa themata tem uma característica "obsessiva, pulsional que estimula a curiosidade e a investigação do pesquisador."

Isso é ruim? Coisas não-científicas estarem no bojo da criação científica? Isso é a realidade! Ainda Morin:

"A ciência é impura. A vontade de encontrar uma demarcação nítida e clara da ciência pura, de fazer uma decantação, digamos, do científico e do não-científico, é uma idéia errônea e diria também uma idéia maníaca. (...) O notável é que a ciência não só contém postulados e themata não-científicos, mas que estes são necessários para a constituição do próprio saber científico, isto é, que é preciso a não-cientificidade para produzir a cientificidade, do mesmo modo que, sem cessar, produzimos vida com a não-vida." (in Ciência com Consciência)

No Espiritismo, por exemplo, Kardec começou sem nem acreditar em Espíritos, como mostram textos de sua juventude e diálogos entre amigos revelados postumamente. Mas, as evidências saltaram aos olhos com as brincadeiras das mesas girantes. Depois, associou o Espiritismo à filosofia moral, conseqüência da sua visão de mundo forjada na escola de Pestalozzi, e ainda ao Cristianismo purificado de dogmas, fruto de uma vontade que buscava acabar com os conflitos protestantes. Direcionou-o para uma vivência íntima das máximas morais, traços de um mundo laico nascente. Kardec ainda utilizava como sinal de que estava indo no caminho certo o fato de povos tradicionais terem crenças muito semelhantes com o que o Espiritismo estava sugerindo em suas revelações. Por causa disso foi chamado de faquirismo ocidental ou denunciado como querendo resgatar superstições. Todavia, ele simplesmente entendia que, se uma verdade estava presente em tantos povos por muitas épocas não haveria de ser uma lenda vazia, mas possuir uma réstia de verdade importante de ser investigada.


Em uma época que o homem tentava ser como "mestre e senhor" do objeto cognoscível, submetendo-o aos instrumentos de observação, Kardec dialoga com o objeto de estudo de igual para igual, pedindo mesmo a opinião dos sujeitos estudados sobre as conclusões por ele alcançadas. Os diálogos com os Espíritos poderiam ser considerados como um precursor das Ciências Humanas e seu método investigativo. Muito intrigante o título da clássica obra do Sr. Dilthey: "Introdução às ciências do espírito". Alguns traduzem: "Introduçãos às ciências humanas". Falo menos do objeto do que do método: as dicas para se investigar o espírito humano.

Percebe? Então, o Espiritismo tira suas conclusões não apenas baseado nas observações empíricas, mas no contexto sócio-histórico da época, na força da filosofia moral cristã, em um certo estudo de culturas comparadas, nos resultados pedagógicos das experiências de Pestalozzi, no debate entre diferentes centros espíritas dinamizado por periódicos de circulação mensal, etc.

Por fim, veja o Amor! Que ciência há de provar a sua existência e seus efeitos? A nossa medicina biologiciza o sentimento até reduzi-lo a pó de hormônios. A concepção de Amor que temos na Doutrina Espírita foi tirada das atitudes e palavras da vida de Jesus, que aliás é a base do nosso sistema de pensamento ocidental, quer queiramos ou não. E que bom é Amar! 

sexta-feira, 6 de março de 2015

Ilusões da ciência ou Discurso do método ao avesso



Quero falar, na verdade, das ilusões da maioria das pessoas que dizem pautar seus julgamentos pelo pensamento científico. Passam longe de fazê-lo. 

Um aluno de medicina abordou-me, sabendo que eu era espírita, sobre o significado e a pertinência real dos processos obsessivos e, no geral, da influência que os Espíritos exercem sobre nós. 

Expliquei tão bem quanto podia. Ao final, falou que era interessante, mas não acreditava. Balizava-se pela ciência que tinha uma visão mais enxuta, porém mais sólida da realidade. O Espiritismo se valia de premissas demais (Espíritos ao nosso redor, oceano fluídico em que estamos imersos e de que nosso corpo é feito, possibilidade de manipulação desses fluidos pela força do pensamento) para ser credível. 

Vou analisando os argumentos dele em termos de falácias, isto é, as concepções truncadas que ele tem do que é o pensamento científico. 

Falácia 1: A ciência é um pensamento que enxuga a realidade, deixando-a mais sólida. 

Tese: Por uma herança matemática, as hipóteses científicas são formuladas pelo quesito da elegância. Supõe-se que, entre duas hipóteses, se ambas explicam igualmente a realidade, deve corresponder à verdade a que se vale de menos subterfúgios para chegar ao mesmo fim. 

Refutação: Isso é válido para a elegância não para a verdade, não para a realidade. Esta é complexa, cheia de meandros, circunvoluções, sombras. Poderia se argumentar como Leibniz: foi a forma mais econômica de se dispor as coisas. Contra-argumento imediato: não temos nenhuma outra forma para comparar. O universo que há aí é o que é. É pegar ou largar. Se ele precisa de muito mais premissas do que as que as hipóteses tradicionais aventam para ser compreendido, que nos resta fazer senão abraçar? Fórmulas enxutas só tem um mérito além do da elegância: o de enxugar a realidade.  

Depois, me pergunta se há alguma máquina que tenha capturado a imagem desse universo fluídico. Eu desconheço (sabia das máquinas Kirlian, mas vejo mil vieses nos experimentos as envolvendo, achando melhor dar por ignorado esse assunto). 

Falácia 2: Para ser científico é preciso ter o objeto estudado, de alguma forma, tangível. 

Tese: Por uma herança da física clássica, os objetos que não podemos tocar para os submeter aos instrumentos de experimentação devem ser ignorados como objeto de ciência. Quase que os astros ficavam de fora da abordagem científica, mas, embora intocáveis, eram passíveis de observação por instrumentos científicos de forma "direta"*. Os espíritos e os fluidos não. 

Refutação: E o átomo, cuja existência foi pressuposta por feixes catódicos? E o elétron, cuja posição já não pode ser medida ao mesmo tempo que sua velocidade - ou se toca em um dado ou no outro? Não, não é pelo toque que se faz a ciência. Aliás, essa concepção originou as experiências mais cruéis da história da medicina. 

Então, tentando melhor me explicar em que se baseia o pensamento científico, assevera:

- Quando vou passar uma dipirona para um paciente, tenho em mente que aquele remédio é válido porque baseado em experimentos que revelam uma resposta terapêutica 30% superior ao placebo, por exemplo. 
- Que experimentos? - replico.
- Experimentos sobre pacientes.
- Que pacientes?
- Os que participaram do estudo.
- De onde eles eram e quantos eram?
- Não sei bem estes por menores da pesquisa científica...

Falácia 3: O experimento científico nos confere uma resposta universal para nossas perguntas. 

Tese: Ainda por uma herança da física clássica, tomando a gravidade como modelo, as leis que ela sugere tem o mérito de valer para todas as pessoas do mundo, senão pela eternidade, pelo menos por um bom tempo. 

Refutação: É válido para todas as pessoas do mundo, mas na ordem de fenômenos do cotidiano. Os pilares da física clássica perdem precisão no infinitamente pequeno, no infinitamente grande e... no íntimo do ser humano. Não se pode, quando se trata de ser humano, desconsiderar as particularidades locais e vivenciais dos indivíduos e dizer que tal experimento feito no Japão com um punhado de pessoas pode ser válido para os brasileiros. Se for, muito bem. Se não for, era de se esperar. Claro que mais vale se basear em algo que tenha algum fundamento para ser extrapolado do que no achismo de um iluminado. Não podemos é elevar esse fundamento experimental à categoria de verdade transcendental da humanidade.  

Quando devolvi estas refutações ao rapaz, não tinha a pretensão de fazê-lo desacreditar na ciência que ainda acho um dos métodos mais grandiosos para se "aumentar de forma gradativa o conhecimento, e de elevá-lo, pouco a pouco, ao mais alto nível, a que a mediocridade do [nosso] espírito e a breve duração da [nossa] vida nos permitam alcançar."

Acabei de citar o homem que criou a nossa moderna forma de pensar ciência. O que as pessoas esquecem é dessa ressalva dele, não menos valiosa que o método que engendrou:

"Contudo, pode ocorrer que me engane, e talvez não seja mais do que um pouco de cobre e vidro o que eu tomo por ouro e diamantes. Sei como estamos sujeitos a nos enganar no que nos diz respeito, e como também nos devem ser suspeitos os juízos de nossos amigos, quando são a nosso favor."

Daí, todo bom cientista sempre olhar cabreiro para as teorias que duram demais.  


* O fato de haver uma lente entre mim e o objeto estudado já mostra o quanto é indireta a observação. Se levarmos ao extremo esse pensamento, o fato de eu só ter acesso à realidade exterior pelos órgão do sentido já mostra o quanto a minha forma de ver a realidade é uma filtragem. Conclusão: a realidade em si é uma pretensão intangível para mim.

Entrevista para Associação Brasileira de Artistas Espíritas




1. Como você se envolveu com a atividade artística espírita?
Sou cria de espíritas. Frequento os centros desde a infância. Na juventude, me encantaram duas coisas: a evangelização de crianças e a arte como instrumento de evangelização. Desde então, venho associando esses dois elementos como norteadores do meu momento encarnatório: evangelizar as crianças, que todos nós somos, através da arte. Tenho fortes laços com o teatro, mas também, e a quase todo instante, com a poesia.

2. Como você define a arte espírita?
Eu gosto muito da definição clássica de arte: a manifestação do inteligível na matéria do sensível. Essa definição não vem de nenhum espírita, mas vejo o Espiritismo todo nela. O que é o inteligível do Espiritismo? O Bem, o Justo, o Belo e, coroando todos eles, o Amor. Manifestar estes elementos eternos na matéria sensível é a que se destina qualquer arte espírita, qualquer vida espírita, apontando a grandeza do Criador e revelando o otimismo da existência para qualquer um que se depare com nossas obras.

3. Você já escreveu várias peças espíritas, algumas delas inclusive já montadas por grupos, como o LEMA. Poderia comentar como é o seu processo de criação?
As ideias se me apresentam pelos motivos mais cotidianos. Dia desses me encantei com uma ciranda, e nos meus olhos uma trama de amor, preconceito e luta por reencontros se desenrola em um átimo. A ciranda crescia em espiral e cindia a realidade em duas dimensões por onde flutuaria a história. Quando, dou por mim, o espetáculo termina, mas meu espírito ainda vaga pelas lembranças para onde a atenção foi deslocada. A esposa chama a atenção para o meu retorno à realidade. É quando, eufórico, começo a contar para ela a ideia que tive. Digo “que tive”, porque geralmente quando eu digo “que me disseram” ela acha que estou fazendo charme, fingindo desprezar uma pretensa genialidade. Acho, de fato e com muita intensidade, que somos seres interexistenciais. O problema é que estamos de tal forma enredados em uma cultura material que acabou por nos convencer que o existente é apenas o palpável. Mas, como diz um sociólogo de que gosto muito, Boaventura de Sousa Santos, estamos dominados por uma monocultura de saberes que produziram a inexistência de outros muitos saberes e formas de ver o mundo. Um verdadeiro desperdício de experiências. A última poesia que escrevi para um amigo melodiar surgiu em minha mente minutos antes de eu dormir em um plantão médico. A peça que considero até agora de minha maior maturidade medianímica, “O Auto da Terra do Pé Rachado”, foi construída em ciclos sucessivos de vontade angustiante por escrever. Três desses ciclos me deixaram insone até que o que tinha de ser escrito o fosse de fato. A peça mais gostosa que fiz para a juventude de que participava, “Ser ou não Ser-tão médium” se enganchou no meio da trama. Fui dar um passeio para desanuviar a mente quando sinto a presença arrepiante do personagem a quem eu não sabia dar um desfecho. Junto com a presença, o resto da peça.

4. Além de dramaturgo, você também atua, e um trabalho a ser destacado é o de doutores da alegria. Poderia nos contar sua experiência nessa área?
O mais certo de se falar seria doutor palhaço ou palhaço visitador de hospital, porque Doutores da Alegria já é uma marca registrada de um grupo que admiro muito. O trabalho deles é tão bom e reconhecido que vale como metonímia pra todo esse fazer. Não tenho formação de ator profissional. Toda a virtude que venho aprimorando nesse sentido deve ter vindo comigo e permitido se mostrar desde vidas passadas, estimuladas pelas atividades de mocidade espírita, incrementadas pelos grupos de teatro não-espíritas e espíritas de que já participei. Na faculdade de medicina, tive um receio forte de estar gastando energias com outros labores. Abandonei teatro e evangelização infantil, mas logo percebi que eram energias diferentes. Então, surgiu a oportunidade de fundar um grupo de palhaçoterapia na faculdade. Hesitei inicialmente, mas aceitei. Hoje o grupo, que se chama Projeto Y de Riso, Sorriso e Saúde, está para completar dez anos de serviço profícuo, com vários trabalhos apresentados em congressos, cursos para os desejosos de criarem grupos de palhaçoterapeutas em suas faculdades, e mesmo prêmios pela iniciativa. Estou imerso nos últimos meses na confecção da dissertação de mestrado sobre esse projeto, intitulado: “O espírito do Doutor palhaço: palhaçoterapia e produção de saber em espiritualidade e humanização em saúde.” Tento aí mostrar a descoberta que tive do quanto o elemento espiritual se enreda com a vontade de humanização.

5. Você também desenvolve oficinas voltadas a estudantes da área da saúde. O que se pretende nestas oficinas?
Despertar dimensões do espírito adormecidas pela mecanização da profissão. Faço isso em linguagem completamente não-espírita, mas que acaba espiritualizando para além do que aconteceria se abusasse de nossos jargões. Um dia, um dos jovens participantes das oficinas me falou: “O que acho mais incrível é o quanto você só fala de palhaço, mas serve para a vida inteira!”. Abordamos o tempo especial do gesto, a necessidade de encontrar o ritmo do outro, a atenção dilatada para captar os menores movimentos da vida, a máxima energia para gerar o mínimo, mas denso, momento de beleza, a afinidade da ordem do riso com a da graça, da leveza, com a ordem de tudo o que demos para chamar de espírito em oposição à gravidade, ao peso da matéria, esta grande seriedade. A partir daí, puxar os conceitos de humanização da assistência em saúde, o jogo das relações, a importância do rito e da máscara, da inteireza das interações e, uma particularidade do doutor palhaço mais do que do palhaço propriamente dito, o amor pelo outro como motivo humanitário deste fazer.

6. É fácil conciliar sua atividade profissional, como médico, com o trabalho que desenvolve na área da arte espírita?

Nunca foi. Hoje, menos ainda. Mas, não desisto de tentar. O mestrado, por exemplo, vem consumindo muito tempo. As ideias para a arte me assaltam de vez em quando e tenho que rejeitá-las. Em breve, começarei uma especialização em homeopatia. Pelo o que ando conhecendo desse ramo da medicina, é onde poderei exercer em larga escala o Espiritismo como que reconciliado com a arte de cuidar das pessoas, porque a medicina oficial que hoje praticamos passa por uma séria crise de cegueira sobre as coisas que realmente importam na vida humana. Possuo uma válvula de escape em meu blog sobre filosofia espírita e nas poesias que fico jogando por aí, feito as migalhas de João e Maria para saber como voltar para casa. É como digo na descrição da minha identidade virtual: “A medicina me alimenta, mas é a arte que me nutre. A filosofia me mantém vivo, mas é a espiritualidade que me arrebata.” Seria muito bom se essas frases não tivessem o “mas”, porém o “e”. Todavia, não sinto assim.

quarta-feira, 4 de março de 2015

Saber orar



Papai não sabia. Pelo menos estas orações que os espíritas estimulam ser de improviso. Não sei se, na verdade, ele não sabia ou não queria fazer por outro motivo. O velho nunca me revelava o que o Espírito dizia para ele no escuro do coração. 

Quando fazíamos a leitura e a interpretação do Evangelho em nosso lar, e, no rodízio, caía nele para conduzir a oração, simplesmente baixava a cabeça, fechava os olhos e dizia:

- Prece de Cáritas...

Começava a recitá-la com uma voz grossa, introspectiva, baixinho, mas que soava forte no corpo da gente. 

- Deus nosso Pai, que Sois todo poder e bondade, dai força àqueles que passam pela provação, dai luz àqueles que procuram a verdade, e ponde no coração do homem a compaixão e a caridade.

Certa feita, esqueceu a prece no meio. Achou graça de si. Havia recitado aquela prece tantas e tantas vezes. Era, talvez, o poema mais curto que já havia decorado. Quando jovem, recitava "Navio Negreiro" de cor. Então, pele manchada pelo tempo, ressequida pela vida, deu para esquecer aquela pouca coisa. 

- Vou recomeçar. 

E ainda que falasse um balbucio quase inaudível, por causa do amor ficávamos em paz.