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Acordar e ver o sol: não consigo, nem ver as múltiplas cores, nem o ultra-violeta nem o infra-vermelho. O sol me cega.
A casa é vazia, onde estão os muitos seres que a habitam? Os invisíveis e os minúsculos? Em meu planeta de origem era uma visão corriqueira.
A boca é ácida e fétida. Bactérias pelejam por destruir meus dentes, preciso matá-las todos os dias.
Encontro o primeiro ser humano: minha esposa. Não me lembro quem ela foi, apenas quem ela está agora. Por que é a ela que amo tanto e não outra pessoa? Outrossim, como entender o móvel profundo de suas ações quando me ferirem sem razão aparente? Às vezes, tragédias relacionais acontecem que passa ao largo da nossa consciência explicar. Fixo em seu olhar para ver se me lembro. Nada, nenhuma lembrança sequer do que fomos em outras vidas.
Segundo ser humano: meu filho. Tem um ano e quatro meses, fala várias palavras incompreensíveis, ainda tenho que trocar sua fralda. Como assim? De onde venho, uma criança nessa idade já estaria bem mais independente.
Terceiro ser humano: A babá. Chama-me de senhor. Que fiz eu para ser seu senhor? Há uma vontade de tecer relações de amizade, mas há choque entre as individualidades, nossos campos fluídicos emanados de nossos pensamentos não se afinam. Eu tenho apenas conhecimento teórico desses fluidos, não os enxergo, estes meus olhos de proteína. E um amigo me diz que nunca se pode ser amigo dos empregados, eles sempre estarão a espera de lhe passar uma rasteira. Minha esposa me mostra uma postagem no facebook e percebo o clima violento que divide o país entre elite e proletários. Que saudade do planeta em que as relações humanas são mais horizontais, não opressivas! Onde reina o carinho e a confiança.
Chego ao trabalho. "Bom dia!" Poucos respondem com a mesma empolgação. Uma pessoa fecha o cenho. Comentários de amigos dizem que certa pessoa é ressentida porque trabalha tanto quanto o médico, fez quase o mesmo tanto de horas na faculdade, mas ganha três vezes menos. Por que ela realmente ganha menos que eu? Um outro amigo me explica a teoria conspiracionista que sou o braço armado da indústria farmacêutica. Braço aramado?! A Terra está em guerra e eu sou um soldado inconsciente?
Um colega me adverte para tomar cuidado porque estão querendo me passar a perna e me tirar o cargo de chefe que ganhei com suor e dedicação: por que homens querem ultrapassar homens e não a si mesmos? Não havia inveja no meu planeta, mas admiração pelos espíritos superiores que nos estimulava a crescer.
Saio do calor de Fortaleza, entro na gélida sala do consultório. Lá fora estava incomodado com o calor, aqui me incomoda o frio. Mas, lá no meu planeta tudo me agradava. Em que estou me transformando? Um ser eternamente insatisfeito.
Começo a atender pessoas doentes: são muitas doenças! O que houve com essas pessoas? Lá todos possuíam corpos em equilíbrio com a natureza.
Volto cansado para casa. O corpo tem o peso triplicado. Adquiri a dor de garganta dos doentes que atendi. Não consigo nem brincar com meu filho, até mesmo porque temo contaminá-lo. Durmo, o Espírito se desprende do corpo e começa a ver as coisa mais claras: os sentidos se espalham por todo o corpo. Percorro o sistema solar conduzido pelo meu anjo da guarda.
Agora é a hora de ver todos os planetas em contemplação espiritual! E entender a grande escola que é o sistema solar: o grande encadeamento evolutivo universal.