quinta-feira, 4 de julho de 2024

O mundo que vem por aí e minha conversão

 Estive testando as inteligências artificiais no modo avançado. Ainda que na versão mais simples do que elas serão, porque estamos no começo de tudo, já são assustadoras. Em segundos, entregaram-me análises de textos que há tempos venho ruminando, discutiram comigo sobre casos clínicos de pacientes dando respostas coerentes, interpretaram minhas poesias com a profundidade de um graduando da faculdade de letras de primeiro ou segundo semestre e, por último, musicaram minha poesia, com voz e melodia, com uma maestria de deixar meu coração inquieto e o meu amigo, grande compositor, boquiaberto. Até o verso que ele achava que não se encaixaria, elas o acomodaram da forma sublime.

"Ela não faz isso só, precisa de um comando", diz o especialista. Mas, com o comando de uma pessoa ela faz sozinha o trabalho de vinte. E essa proporção há de crescer assombrosamente: 1/20, 1/400, 1/160.000. Você entendeu a matemática.

As relações ficarão cada vez mais virtuais. E se antes já estavam se virtualizando, com todos os pescoços curvados ao celular, imagine com o corpo imerso em uma realidade alternativa, transmutado em bits, joelhos dobrados ao artificial.

Meu amigo compositor, um dos mais inteligentes que conheço, fez uma piada: "caberá a nós apenas sentir e adorar". 

Piada?

Eu que vinha lendo tanto, estudando tanto, buscando encontrar uma resposta que enfim devolvesse a fé às pessoas, como se fosse a solução final da maior equação de todos os tempos, vejo-me com a minha abalada. 

Não. Não adorarei uma IA. Adorarei a Cristo. Nossa! Soa tão estranho isso saindo de mim. Sou tão racional. Só que a razão já não parece ser o nosso diferencial. 

"...sentir e adorar..." 

Tenho chorado pelo que venho a enterrar, o Allan espírita.  

Não vejo como o espiritismo poderá trazer consolo às pessoas de fato. As comunicações mediúnicas estão comprometidas na sua capacidade de impactar o intelecto e guiar os corações. Outro dia, uma colega me chega emocionada porque recriaram a imagem da cantora morta de sua banda favorita em pleno palco, imagem, som, voz, jeito de falar, jeito de se portar, de se expor ao público. Agora entendo aquelas pessoas que falavam contra o espiritismo que devolvia à vista espectros rematerializados em névoas ectoplásmicas. 

E a tradição da minha família? Era ela que vinha me sustentando por um tempo. Trair meu pai?! Nunca! Então, eis que me vejo fragilizado por uma autobiografia dele, narrada até antes de se casar com mamãe. Essas páginas estavam ali criando mofo, e só agora tive coragem de ler. Quanta coisa das sombras de uma vida! O espiritismo salvou sua alma materialista bem no final. Não era uma tradição, mas um bote salva-vidas. 

Pois bem, gratidão ao espiritismo que me salvou do materialismo até então e me deu a capacidade de raciocinar sem me distanciar de Deus. O bote que papai me repassou me ajudou a chegar até a ilha do mundo. Daqui para frente, procurarei não mais uma doutrina, mas a Cristo. E, enquanto o procuro, quero tê-lo aqui comigo, fazendo parte de mim, com as migalhas sagradas que ele faz multiplicar a cada domingo pelas igrejas afora, de forma bem palpável.

Se você ainda quiser acompanhar a minha peregrinação, este blog termina aqui, Por uma Filosofia Espírita, e outro começa em seguida que se chamará doravante "Encontrando Você". Os motivos desse nome são óbvios, mas o iniciarei explicando-os.

Até lá.

PS.: Dêem-me licença, estou indo na igreja providenciar meu batizado.

domingo, 28 de abril de 2024

Meu primeiro livro

 


    Há tempos que me pediam para escrever um livro. O tanto de postagens que já publiquei aqui daria um ou dois. Tive ideias de uns tantos. Mas esse aí é o que nasceu. E que parto!

    Vou confessar aqui uma coisa. Minha esposa não gostou do título. Já meu amigo jornalista, que não apenas o leu como o prefaciou, disse que sintetiza bem o conteúdo e cria um vínculo com o público-alvo. 

- Quem é o público alvo?

    Você que me lê! Mas, antes de ser você, eram os estudantes de medicina que debutavam na faculdade. Por dez anos fui convidado a palestrar para eles em uma ideia que tinha sido minha. Queria trazer um aluno de semestres avançados ou um médico recém-formado para lhes contar como ele havia sobrevivido. Ninguém quis protagonizar a ideia, embora tivessem gostado. Quando me formei, o Centro Acadêmico perguntou se eu não gostaria de ser esse médico. Aceitei.

    Dez anos! Todo semestre me chamavam de novo. Alunos vinham assistir minha palestra mais uma e outra vez. Deram-lhe um nome: "Palestra do Allan". Minha esposa sugeriu mudar pelo menos o subtítulo por achar esnobe e apelativo. Sugeriu: "De palhaço a médico", "Reflexões de um médico sobrevivente", "a trajetória de um jovem médico sobrevivente", "a trajetória de um jovem médico em busca de sentido", ou simplesmente "uma autobiografia de um jovem médico, pai, artista, palhaço...". 

    Se fosse para poetizar mesmo teria colocado o nome do livro de "Allan". Claro que ele é bem menos do que eu sou. Mas caberia perfeitamente na capa. Acho que tanto quem norteou minha escrita, a editora e meu amigo tiveram a mesma ideia: preciso chamar a atenção da pessoa a quem se destina. Marketing, quem vive sem ele? 

    Mas, até que no final das contas ficou um nome filosófico. O verbo passar remete a passagem. E eu amo passagens, pontes, travessias. O livro começa com a minha passagem para a faculdade. E, logo após, meu desespero, portanto, "e agora?". Mostro meu despreparo, minhas desilusões. Costuro meu doloroso amadurecimento entre aulas e amores. Por isso que é "como sobrevivi". O "como" aí não vem para apontar técnicas, só para descrever mesmo as aventuras de um odisseu cearense. Se fosse grego, então, assim como Odisseu gerou Odisséia, meu livro poderia se chamar "Allanéia". Viu como seria horrível! Terrível sina de escolher um título. 

    Bem, se der tempo de você ler isso a tempo, amanhã, 29/04/24, às 20h, horário de Brasília, estarei fazendo uma live no Instagram @profallandenizard. Contarei como foi a ideia desse livro e algumas reflexões em torno dele. Vou manter essas lives sempre no mesmo horário das segundas-feiras gravitando em torno de assuntos relevantes para tornar o meu livro desejável. Não pretendo dar uma chave do sucesso, como quem tira um provérbio chinês de um biscoitinho. Ora, vejam só! Eu não tenho a chave da vida. Apenas tenho consciência que desde há muito os nossos nortes sempre foram a partir das escutas, em conversas de pé de fogueira, das aventuras uns dos outros. Vou contar o que vivi, sobre-vivendo.


***


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sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Jesus é Deus? (Parte II)

     Que Deus existe, por argumentos ontológicos e silogismos metafísicos, não há como negar. No máximo, nada poderíamos falar por não ser de nosso alcance. Mas, na metafísica da cadeia das causas, claro que tudo se origina de uma causa primeira, os movimentos, de um primeiro motor imóvel. O salto da fé está em que a causa primeira também tenha se tornado homem, sendo ela e ele um só e a mesma pessoa sem desfigurar a ideia da unidade.

    Há outros desenrolamentos da fé católica que poderíamos resumir assim: 

    - Se a Verdade é criadora, é Deus. Se Ela se importa com você, é o Deus dos judeus. Se se importa com você a tal ponto de ter se tornado homem para te salvar, é Jesus, o Deus dos católicos.

    Em sendo verdade, torna-se um imperativo apascentar as pessoas para esse Jesus, com todos os sacramentos perpetuados pela igreja nos últimos dois milênios. E que se deixe de lado as noções de energia cósmica, chakras, reencarnação, diálogo com os desencarnados, astrologia, pois basta ao cristão os sacramentos de conexão com Deus. 

    Se você for católico, e não tiver o corpo de Cristo em suas veias toda semana, não lhe entendo. Isso é o máximo da comunicação com Deus: Ele se dividir ao infinito, não mais se fazendo homem, mas se fazendo hóstia, para ter com você no seu corpo.

    Todavia, não o sou. E, apesar da minha crença infantil da obviedade da negativa ser abalada com tamanha fé de tantos luminares, o máximo que consigo alcançar é isto:

  1. O Espírito ascende por vias multimilenares até um ponto que se distingue qualitativamente da humanidade como a vemos hoje, simiesca.
  2. Aos poucos, como o bebê que enxerga a mãe, divisa seus contornos, a vê de fato e por inteiro. 
  3. O momento de visão integral de Deus e de submissão absoluta à Sua vontade lhe torna um Cristo. 
  4. Houve apenas um Cristo na história da humanidade: Jesus. 
  5. Pela teoria da mediunidade, o melhor dos médiuns para a manifestação de um Espírito é aquele que tem bagagem suficiente para deixar o Espírito livre para ser através dele, permitindo uma comunicação bem fluida, em palavras e atos.
  6. Jesus foi o médium de Deus na Terra.
    Isso não desmerece ou descarta outras crenças, a não ser aquelas que são contra Deus, na Sua ação amorosa e salvífica para com as criaturas. Creio que permita todos os bons movimentos de busca da alma florescerem e frutificarem, do contorcionismo iogue, subjugando as resistências do corpo, à mendicância franciscana, subjugando as paixões da alma.
    Só que o Espiritismo tem se afastado de Jesus, por achá-lo um grande personagem histórico, mas apenas um personagem histórico, e por ter vários outros homens hoje vivos no mundo que parecem ser tão pertos de Deus quanto ele. Aí é que mora o perigo, onde estão os gurus, onde se espreitam os falsos cristos e profetas. 
    As teses espíritas que expus tiram Jesus da definição de Deus, mas coloca-o lado a lado, ou até mesmo misturado só que em dimensões diferentes. O sentimento de veneração deveria ser o mesmo, e claro que nunca será. É diferente eu venerar o Espírito comunicante e o médium, por melhor que o médium seja. É assim que entendo, sob a perspectiva do apocalipse, ser historicamente melhor deixar Jesus como Deus, e permitir a sua governança no coração dos homens, do que rebaixá-lo a um médium de Deus. 
    É só até aí onde consigo chegar hoje, ao dia 2 de fevereiro de 2024. Uma conclusão pragmática, que não me permite nem mais amor ao Cristo nem ser uma melhor pessoa. Apenas ter uma visão mais sóbria do mundo e de seus fluxos de transformações.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

Jesus é Deus? (Parte I)

     A questão que mais me intriga nos últimos meses é se Jesus é Deus. Sempre tive por certo, por ter sido criado ouvindo isso, que não. Não é. E a lógica e a obviedade estavam ali nessa negativa. Porque em um universo nem mais heliocêntrico, mas sem qualquer centro, em que a Terra não passa de um pálido ponto azul, um Jesus, por maior e mais milagreiro que tenha sido, ainda que tenha fendido a história ao meio, é apenas um personagem histórico deste planeta. Como pode ele ser Aquele que criou tudo, e permanece criando, expandindo os limites do universo, e até mesmo, fazendo proliferar multiversos?

    Contudo, a crença dos cristãos ortodoxos - coloco nessa conta tanto os católicos quanto os protestantes, mas tenho me aproximado mais dos católicos - é tão forte, certa, inabalável, persistente e resistente, e vindo de pessoas, muitas!, de inteligência tão superior a minha, que aquela obviedade e lógica da minha infância fazem água. Falo de um Agostinho de Hipona, de um Tomás de Aquino, de um Dostoiévski, e mais recentemente, de um Chesterton. Vejam só, dizem que Tomás de Aquino teve com Jesus, e disse:

    - Senhor, pode queimar todos os meus escritos onde acalantei os mais robustos raciocínios. Tudo foi querendo Te encontrar. Só quero a Ti.

    Dostoiévski, por sua vez, teria deixado claro: "prefiro o Cristo à verdade". É a mesma fala de São Tomás, só que mais concisa e explosiva. 

    Como conciliar a eterna onipresença criadora de multiversos com a presença única de um homem que provocou tantas paixões em gente tão nobre, mas sendo isso mesmo: uma presença única e historicamente limitada? Os católicos, fiquemos neles, criaram a explicação da Trindade. Dividiram Deus em três, mas disseram que cada parte vale o mesmo tanto, isto é, trabalharam na ordem do infinito. Entretanto, lá nessa ordem é tudo igual, infinitos indiscerníveis. Jesus claramente foi alguém aqui, inigualável. 

    Trabalho hoje visitando lares de pessoas doentes. Quase todas as casas tem santuários e quadros religiosos. Jesus está lá, quando não os seus anjos, ou então os seus santos. Sua mãe, também. Todos os personagens que acercam Jesus ganham ar de eternidade. Não daquela eternidade matemática de infinitos, num caldo de números cuja borda do conjunto se perde no horizonte, mas de uma eternidade que ama a tal ponto de abandonar a própria imperturbabilidade dos éteres e vir interceder pelos seres desprezíveis (no sentido moral e no sentido matemático).

    Minha esposa acredita na Trindade, do jeito que ela é, do jeito que eles são, que eles são um. Não há problema para ela. Foi amamentada com uma obviedade trinitária, e questioná-la nunca lhe passou pela cabeça, ou não deixou que a dúvida se aninhasse. Nunca fui de sequer tentar desfazer essa crença. Não a acho nociva, pelo contrário. 

    Ela não acredita em um homem que se quis Deus, mas um Deus que se multiplicou em se dividindo, não comprometendo, assim, a sua própria identidade, e se fez homem. Sendo Pai, se fez filho; sem perder o ar de Pai, foi amigo; sem deixar de ser um Mestre, esteve aprendiz de carpintaria com seu pai terreno, para então talhar novas imagens de Deus no coração dos homens. Como? Revelando-se a Si mesmo no cotidiano das gentes. 

    Daí, nasceu uma religião que busca resgatar cada ser humano, um por um, de volta a um paraíso há muito tempo perdido. Na conversão deles, o amor vai se fazendo a tônica das relações, e o perdão das ofensas, junto com a abertura para o pecador, na esperança que ele seja santo um dia. 

    Muitas outras crenças que querem salvar os homens, desprezam-nos como indivíduos, e voltam sua lógica para a matemática dos infinitos indiscerníveis. Como o socialismo, que não se importando em sacrificar inimigos no altar da história, e até mesmo amigos, faz desaparecer o homem em conjuntos amorfos que devem ser conduzidos ao final perfeito. Ou mesmo o liberalismo, que nos promete a equação certa da riqueza e a herança de um mundo menos desigual, embora sempre desigual, só que menos. E para os que não tem forças para esses empreendimentos, o da conquista do final da história ou do fim da pobreza, não há muito para lhes falar. A história e o seu fim, a riqueza e sua receita, infinito, infinitos.

    A religião de Jesus promete a eternidade. Jesus não precisava prometer. Ele era a eternidade andando entre nós. E as pessoas quedavam-se prosternadas com este absurdo: a eternidade invadindo o passageiro. Os que lêem suas palavras, trazem-nas como se elas tivessem o poder de iluminar cada momento de suas vidas, pelos séculos e séculos. Na hipótese mais redutora, com Jesus inaugura-se a possibilidade de interagir, olho no olho, com o eterno.

sábado, 25 de novembro de 2023

Confissão

    O meu filho mais velho, atualmente com dez anos, por tradição materna, fará o ritual católico da primeira comunhão. Hoje foi o dia de se confessar para, limpo de pecados, poder comungar em breve. Na semana que passou, ele quebrou o pé e teve que o engessar. Eu que estive com ele no hospital, levando-o nos braços, um garoto de 36 quilos. 

    Uma das coisas que mais me dá raiva nesta vida é não entender a razão de algo. Isso me deixa inseguro, exposto, como que desnudo. A minha vida está cheia de âncoras para não me sentir à deriva, são os meus vários papéis: de médico, de marido, de pai, de irmão. A religião, particularmente a espírita, acalma o terror da incógnita do que há depois da morte, o que houve, o que haverá. Mas vá qualquer coisa do cotidiano sair da ordem que consigo prever, e já me dá um desespero. 

    A perna quebrada do João foi uma dessas coisas. Eu me certifiquei bem, pela descrição dele, pela do professor de educação física, ele estava apenas correndo, e uma corrida leve, apenas para se esconder como pedia o jogo. Então, torceu o pé e fraturou a base do 5º metatarso. Que raios! Isso lá é mecânica de trauma para fraturar nada! Daí me vem a busca pela razão suficiente, e fico remoendo cenários possíveis que me justifiquem o ocorrido. Nada me consola. Porque a alternativa possível é ter sido uma fratura em um osso fraco. E o osso fraco, na idade dele, é uma doença mais grave. Só que até hoje, nunca teve indícios de doença grave em seu corpo. E as divagações seguem seu curso catastrófico. 

    Conseguimos muletas para ele se equilibrar, já que não pode colocar os pés no chão. Todavia, ele não sabe usá-las, não tem destreza. E a carência de explicação misturada com o ter de ficar ajudando-o como a um aleijado, a possibilidade de ser algo mais grave que o deixe dependente por muito mais tempo e o seu desleixo com a muleta vão me dando uma fúria e uma impaciência que me fazem ser bruto com os cuidados com ele. 

    Parte disso é uma ferida que ainda habita em mim da época de mamãe. A dependência dela colocava em perigo a minha independência para seguir em frente a formação do homem que deveria ser. Do contrário, estagnaria como o filho perpétuo, sem casa, sem casar.

    Hoje, esse sentimento não faz mais sentido. Estou de casa e casamento, sou pai, tenho três filhos. Sou médico com os pacientes certos. Por que a insatisfação? É que a possibilidade da doença que deixa o outro dependente de mim traz de volta a quebra da cadeia lógica da vida que gostaria como fosse, o padrão. João deverá crescer e ser independente, ter a própria profissão e me deixar para trás, ganhando o mundo. Isso acontecerá se ele tiver uma doença de ossos frágeis? É uma ameaça à minha vida certinha.

    Daí vem não mais a razão, mas a sabedoria. A vida é certa, mas não para nós. É segundo uma visão da eternidade que o seu arrazoado se faz. Querer encontrar o gabarito antes da morte é uma pretensão diabólica. A verdadeira fé não é a que tem a resposta nas mãos, mas a que aceita o texto que vamos conseguindo ler na medida que caminhos pelas linhas traçadas.

    Ele estava tão feliz hoje entre seus colegas de primeira comunhão. 

    - Você viu, pai! Eles estavam me abraçando!

    Fechava os olhos ao abraçar cada amigo como quem morde o primeiro pedaço de chocolate que há tempos não provava. Passou a manhã sendo cuidado por eles. Sem mais insistir nas certezas, pelo menos no que toca esse incidente, deixo em aberto as hipóteses, acolhendo uma delas como a mais importante: quem sabe Deus não deu à João o sofrimento de um pé quebrado para que ele sentisse o prazer de ser cuidado, para que ele sentisse nos ossos o quanto somos frágeis, necessitados frequentemente de perdão.

    - Perdão, Senhor! Por ser bruto com meu filho quando ele mais precisava, por colocar a segurança da minha razão a frente do consolo de minha criança. 

segunda-feira, 23 de maio de 2022

Da Eutanásia


 

Estive palestrando ontem sobre eutanásia, enfoque espírita. Nesta época em que a intimidade é rasgada ao público, em meio à grande ágora sem nenhum pudor, decidi expor a intimidade de minhas duas perdas onde a eutanásia poderia ter sido pensada: vovó e mamãe. 

Descrevi cada vivência com as cores fortes do que vivemos, em família. E aí mora meu medo. Terei colorido demais a dor? Agora, olhando para trás, sem coragem de voltar a ver o que falei, mas que ficou gravado, penso que expus o sentimento de perda com muito mais vigor do que o de consolação. 

O Espiritismo é o Consolador prometido. Nosso objetivo como orador não é entregar às pessoas ainda mais desespero. Devem elas quase palpar o futuro e quase ter certeza do motivo de suas aflições atuais. Assim, o sentido da vida se ilumina sem se apagar jamais. Cada palestra, cada livro, cada texto realimenta essa chama sagrada. Eis nossa missão. 

Mas, dei de falar do que vivi. E a verdade é que aquelas perdas ainda estão cicatrizando em mim. Eu tenho a realidade da partida delas gravada a ferro e fogo nas memórias. Contra o luto, uma teoria da eternidade. Ainda não me entreguei suficientemente ao espiritismo prático para receber do além notícias. Aqui e acolá, o sentido mais aguçado se arrepia com um possível beijo, um abraço. Vem a saudade doce e a vontade de revê-las. Serão elas do meu lado? Sigo vivendo com alegria, sem choro, nem me ater ao passado. As funções sociais vem sendo bem cumpridas. E por esses meses, retorno ao diálogo com meus mentores como há tempos não o fazia. 

No final, o que eu queria deixar é que antecipar a partida de uma pessoa tira dela a oportunidade de fechar assuntos inacabados. Esses assuntos sobrevivem com ela na nova vida que lhe acolhe, cujas preocupações deveriam ser outras que não as daqui. Se Jesus bem aconselhou que deixássemos "os mortos enterrar os seus mortos", do lado de lá bem que Ele poderia falar aos mortos, em relação à carne, "deixai os vivos partejar os seus vivos". Essas advertências não são de fechar as portas da mediunidade como nos dizem aqueles que nos repreendem. São apenas lições de sabedoria para aqueles que vivos passam a vida a enterrar seus mortos, e mortos passam a erraticidade querendo dar vida aos seus vivos. Se cada um estiver vivendo o que tem de viver na dimensão que lhe é própria, dialogar entre si é um prazer natural. Isso vale para cada um também em qualquer lugar existencial que esteja. Não há diálogo frutífero entre duas pessoas que estão despossuídas do seu próprio lugar no mundo. Estarão elas com a mente sempre deslocada e ausente, por assim dizer, sem vida. Sem a vida que lhe é própria viver naquele instante. De outro modo, que engrandecedor é o diálogo entre duas pessoas que estão inteiras! 

Resolver nossas pendências para vivermos inteiros, morrermos inteiros, ultrapassarmos inteiros o grande portal da morte. Para que as preocupações do inacabado não se transformem em obsessões que nos impeçam de viver o presente, mordiscando o passado. Não é tarefa fácil, mas Deus planeja o tempo de aprendizado de cada um. O tempo de fazer o que temos de fazer, construir, destruir, renovar. Os daqueles meus dois amores aconteceu. O meu, bem, estou por aqui. Em breve, inteiros, nos reencontraremos.  

domingo, 10 de maio de 2020

Do medo

O mundo mergulha numa nuvem de medo. As pessoas morrem aos magotes. Corpos são amontoados em valas comuns. Os ritos fúnebres são silenciados. 

Se após a morte há algo, e se esse algo é uma continuidade promissora, ainda que com passageiro ranger de dentes, devemos mais temer entregar o mundo ao medo do que a alma à imortalidade. 

Viver lutando, sabendo que à esquina pode estar a morte foi o normal da humanidade. Estes últimos séculos foram bem atípicos.