quarta-feira, 20 de março de 2019

Somos totalmente diferentes!

"Somos totalmente diferentes". - Disse a colega de trabalho a respeito de uma opinião que tentei expressar a respeito do falecimento de uma paciente. 

Era acerca de uma idosa que já não tinha mais como investirmos com terapia com fins curativos. Estávamos tentando conduzir sua passagem em uma boa morte, o que na medicina se intitula ortotanásia. Eu falei de forma inocente: "Como ela resistiu!". E a colega, evangélica, replicou: "Não, ela foi na hora certa, a que Deus determinou. O senhor diz isso porque somos de posições bem diferentes. Eu sou cristã e o senhor é espírita." Nunca havia conversado com ela sobre minha crença, mas ela deve ter visto nas redes sociais. 

Como sempre, os adeptos das igrejas reformadas nos consideram não-cristãos. Pouco importa a discussão que originou aquela frase, haja vista, se uma pessoa pode resistir ao seu desenlace ou se é uma determinação absoluta de Deus. Vou desconsiderar também a disputa de conceitos e falar mais o que me vem ao peito quanto escuto essa acusação. Parece apenas uma lucidez de predicado: existem as denominações cristãs e as não-cristãs. Mas, para o espírita sincero, velador da moral fundamental da doutrina, soa como acusação. Acredito que muitos que despejam essa negativa é como se nos impedissem de entrar no templo. 

Calo-me, a discussão não me agrada, nem é frutífera. Ainda mais com pessoas de fé gritante. Gosto de discutir com amigos, mais por brincadeira do que por vontade de conversão. Contudo, sempre, no fundo, quando me impedem de entrar no templo, sinto como se eles pudessem ter razão. Quem respeita mais o Cristo, aquele que o considera o Deus encarnado, ou o que o entende apenas como um Irmão Maior (pouco importam as maiúsculas)? Sei que a resposta que sai na ponta da língua dos ecumênicos é: aquele que o segue, que o imita dia-a-dia, que se esforça para se aprimorar. Seria suficiente mesmo? Não seriam igualmente necessárias as pompas, os ritos, as prostrações? Não por ele, mas por nós mesmos. O corpo entende mais a linguagem do corpo do que das construções do intelecto. Ajoelhar-se, louvar com fervor, deixar o corpo tremer com o seu nome talvez fizesse chegar nosso coração mais forte ao seu lado, porque taquicárdico, porque suados, porque ciosos de olhar em seu rosto. 

O fato é que minha crença é esta. Jesus é o Irmão Maior, com maiúsculas, mas irmão, e não Pai. Dá vontade de chamá-lo de Deus, mas não é preciso. Seria precioso, mas não exato. Temos uma ideia de que é manso, e que teve seus momentos de fúria e de lágrima, das de sofrer por um amigo, e das de verter sangue de medo. Nossa forma de pensar Jesus o fez descer do símbolo sofrido e colocá-lo entre nós, conduzindo o destino da Terra, mas não do universo, nem mesmo do Sistema Solar. Mas, a Terra já é tanto! Falamos com ele a qualquer momento, de qualquer jeito. Falamos, nem rezamos, nem oramos. É quase conversa de pé de orelha. Profanação suprema! Tiramos quase toda a divindade dele, tornamo-lo humano, um humano divino, mas, por Deus, um humano. Daqueles que nos faz ter esperança na humanidade, porque se ele conseguiu, quem sabe, uma vida dessas, conseguiremos. 

sábado, 16 de março de 2019

Raskolnikov: o assassino ordinário



Falo, neste vídeo, sobre o protagonista do romance "Crime e Castigo" de Dostoiévski. Como era sua personalidade, o que o levou a cometer o crime, como ele entendia a sociedade, o que seria sua teoria dos homens extraordinários, como é a estrutura do romance que conta o calvário desse jovem pedante e perdido. Esse vídeo faz parte de uma coletânea de exposições que busca dissecar o universo dostoievskiano. 

sexta-feira, 15 de março de 2019

Nova Era

Quase todas as semanas, as famílias nossas amigas se reúnem em torno de O Evangelho segundo o Espiritismo  para discutir os temas suscitados por esse livro que nos é quase sagrado.

Ontem o encontro se iniciou com a exaltação das crianças alegres, pulando, inventando brincadeiras, que é a forma de umas dizerem às outras: que bom lhes rever. 

Conversei um pouco com meu amigo relatando meus últimos esforços para entrar na vida saudável. Parabenizei-o pela entrevista que deu a respeito das precauções que a comunidade deve ter na época de chuvas com relâmpagos.

Ele tomou o violão que estava em seu carro, tocou uma música para nos elevar. O meu menor subiu à mesa e ficou olhando aqueles dedos darem vida às cordas do violão. Abrimos o Evangelho, que agora vínhamos lendo item por item, na sequência proposta por Kardec. Era a vez da "Nova Era": 

"Deus é único e Moisés é o Espírito que Ele enviou em missão para torná-lo conhecido não só dos hebreus, como também dos povos pagãos..."

Ao final da leitura, tomou a palavra o violeiro:

- Me veio em mente, por algum motivo, que o problema da nossa era vem sendo os cristãos moralistas. Eles se esmeram ativa e bitoladamente para censurar comportamentos que eles consideram impróprios, mas cuja impropriedade pode ser apenas da cabeça deles. Eles se comportam como essa religião mosaica para a massa dos hebreus antigos, que eram tocados mais por sinais exteriores do que pelo espírito da mensagem. 

- Entendo. Veja, por exemplo, aquele diálogo que tive com nosso amigo de orientação sexual homoafetiva. De certo modo, para ter aquele diálogo, que foi um de muito respeito, precisei sair do meu lugar para estar aberto àquela forma de amar um parceiro. É um diálogo que pede flexibilidade da sua forma própria de ver as relações, olhar com o espírito. E olhar o Espírito! Enxergar que aquele ser é um que vem passando por múltiplas experiências, das quais esta aqui não é senão a amostra de uma construção arquimilenar. A reencarnação é a salvação da intolerância!  

- E apesar disso, desse alargamento de consciência que a reencarnação nos propõe, até mesmo espíritas renomados escorregam na intolerância. 

- Por outro lado, fico pensando se podemos ser tão críticos assim com esses que defendem sua fé com fervor. Sempre me ressenti dos jovens ao meu redor que não tinham uma bandeira na vida, e seguiam pusilânimes, quase feito zumbis, preocupados com movimentos pequenos, quase imediatos na vida. O objetivo do agora é ir só até mais ali adiante, quando muito, quando não se desfaziam ensimesmados, sem brilho, sem causa para lutar. 

- Mas, o que vejo é o contrário disso. Bandeiras e idolatrias de toda sorte foi o que (des)animou o Brasil nesses tempos. Há um ex-presidente preso, deus da esquerda. Há os que estão unidos, mãos dadas com força e desespero, através do ódio contra aquele que fazem questão de dizer ser um presidiário.

- De fato, hoje não é mais a frouxidão dos ideais que me preocupa, mas daqueles erroneamente abraçados. Então, a discussão toma outro rumo. Para não cair naquela frouxidão que, de certa forma caracteriza esses ecumenismos piegas, que, na gana de unir os diversos, reduz as singularidades das crenças a alguns dogmas possíveis de serem pacíficos, para não cair nisso, não deveríamos respeitar esses ativismos?

- O problema dos ativismos que evoco está em outra ordem. Ele se aprofunda e se torna abominável porque toca nos critérios de salvação da alma. Não se vê homens de times de futebol diferentes entendendo que o outro pode ir para o inferno em virtude de ser adversário. Mas, no caso por exemplo da homoafetividade, é essa a crença. 

- De fato! Todavia, se eu tenho a ideia de que os gentios podem ser salvos, e que meu Deus é o único Deus possível, e que a partir dele uma única concepção do homem passível de salvação surge, estarei sendo um criminoso se não tentar a conversão. O próprio Bento XVI, em sua época, havia evocado que a questão da homoafetividade estava na concepção do homem segundo a Bíblia, segundo a natureza, que é aquela que Deus criou, na qual reside Sua vontade. Defendia ele, e é mesmo assim na teologia católica, que o homem possui uma natureza, uma essência, que Deus o criou com uma forma, e essa forma traz um propósito a ser maturado. O exercício ruim da liberdade afastou o homem de Deus e o conduziu à danação. A primeira consequência dessa visão de mundo é que o homem é livre até certo ponto, mas é um ponto que chega a poder desobedecer a vontade de Deus. O mal, em grande parte, vem dessa desobediência. A segunda conseqüência é a possibilidade de o homem ser convencido do contrário do que ele imagina ser o certo, isso deixa margem para seu retorno ao bem, caso ele esteja em pecado. Daí a possibilidade, e até mesmo a necessidade, do ativismo apostólico de espalhar a boa nova para a humanidade.

Minha esposa, que até então revezava a atenção entre nós e as crianças, argumentou:

- O problema é forçar essa salvação através de imposições exteriores que mais castigam do que elevam. A conversão verdadeira se faz através do próprio exemplo que ilumina os demais naturalmente. 

Então, lembrei-me do romance "Crime e Castigo" de Dostoiéviski, onde a personagem Sônia era um símbolo dessa fala. A mulher mais fraca de todas, menos convincente, menos pura - se apenas olharmos o exterior. Ela era meretriz, mas para sustentar toda uma família. Era fraca, porque acreditava na força de todos os indivíduos. Não conseguia olhar ninguém no olho, porque considerava cada alma, por trás dos olhares, como um milagre maior do que sua própria vida. Ao final do romance, visitando presos na Sibéria, todos os presos a amavam. Quantas vezes ela pregou Cristo para aqueles criminosos? Nunca! E, ao mesmo tempo, a todo instante, através de cada célula de seu corpo, de cada movimento da sua alma. 

Entendemos, então, que o que a Nova Era, inaugurada pelo Espiritismo, vinha passar era a assunção de Cristo em uma espiritualidade sutil que enfim nos faça ser sua imitação, sem ter que ficar alardeando nossa conversão e a necessidade de conversão dos outros com tanto mais vigor e rigor quanto menos nosso coração estivesse mergulhado naquilo. 

domingo, 10 de março de 2019

Introdução à Dostoiévski



Por que importa estudar Dostoiévski em um canal de filosofia? Não foi ele apenas um romancista? Não, não foi apenas. Foi o romancista. E ele influenciou grande parte do movimento de desconstrucionismo que veio logo após. Detalhe, é que muitos aproveitaram dele apenas a parte depressiva, quando em sua obra ele trouxe o debate com perspectivas de solução para a desconstrução tão grandiosas quanto a fenda que ele gerou na razão que se queria salvadora do mundo. Mais ainda, ele colocou em personagens reais, assentados na vida mais palpável, com atos próximos a qualquer um de nós, a metafísica mais densa. Esse vídeo tenta mostrar conceitos fundamentais para começarmos a entrar no mundo dostoievskiano.

sexta-feira, 8 de março de 2019

Amiga diz que sua filha nasceu com múltiplas deficiências



AMIGA: Allan! Como vc está? Quanto tempo! Sabe, esses dias eu me vi pensando sobre nossas conversas sobre religião e o sentido de muita coisa, sobre os problemas da minha avó que não sei se vc lembra. Allan, quanta dificuldade a vida tem, e quanta força temos que ter para continuarmos felizes! Minha filha nasceu com múltiplas deficiências. E eu tenho muita fé em Deus e penso que deve ter sentido tudo tão intenso acontecer na vida. Não sei pq estou falando isso, talvez porque sempre te vi com tanta fé. Rezo para a minha aumentar todo dia. Espero que esteja tudo bem com sua linda família! Um grande Abraço!

ALLAN: Que saudade das nossas conversas! Não sabia sobre as deficiências da sua filha. Meu núcleo familiar mais próximo (eu, Mia e as crianças) está bem, mas quando começa a se afastar desse circulozinho as coisas estão desmoronando. Não cabe eu detalhar pra você. Às vezes dá uma trégua, e eu penso, deve se estar dando um fôlego porque vem chumbo grosso pela frente. Daquela nossa conversa (2006) para cá, vi tantas dores nos seres humanos. A profissão me fez ficar próximo de tantas mazelas humanas, que a fé chegava a estremecer. Dia desses me vi sendo interpelado por um amigo que queria entender porque o ano de 2019 estava começando com tantas bombas (incêndio, morte, destruição). Ele tinha perguntado porque sabia que eu era espírita e gostaria que eu conversasse com ele como naqueles dias que conversei com você, mostrando caminhos de consolo e, apesar de tudo, grandeza na Criação. Veja só: eu titubeei em falar, minha fala falhou. 

Ainda sou espírita, e muito, mas tenho abraçado um certo espiritismo sombrio, um que entende a onipresença do sofrimento no mundo e aceita o mistério de Deus. Faz tempo que não converso com Deus, com devoção e carinho. Tenho passado a ideia de Deus para meus filhos, em pequenas preces noturnas antes de eles dormirem, em frente a uma vela que queima lentamente enquanto rezamos preces decoradas. Sempre tive críticas sobre preces decoradas. Sempre fazia questão de improvisar as palavras. Hoje não mais. É como se o espírito estivesse cansado do meu próprio verbo e cedesse às palavras sagradas da boca de santos, que puderam mais do que eu na passagem pela Terra. Quatro principais embalam o sono das minhas crianças: Pai Nosso, Avé Maria, Oração ao Anjo da Guarda e Oração ao Divino Menino Jesus. Houve uma época até que tentei rezar o terço. Não suportei a repetição. E certamente isso fala menos contra o terço do que contra minha disciplina diante de Deus. 

Vou te falar um pouco sobre duas faces da vida. Tem uma que é bem lógica e é o que aprendemos insistentemente no espiritismo mais prosaico: tudo tem um porque. Lemos os romances psicografados por Chico Xavier, e lá as revelações das conexões dos nosso sofrimentos são bem claras com ações que fizemos no passado. O mundo há muito é quebrado, e sempre esteve nas nossas mãos deixar de quebrar e passar a consertar. Sua avó, sua filha, meus parentes que sofrem são reflexos de todo esse movimento. Ajudamos se não quebramos ainda mais o que já vem trincado. Tem outra face que é a do amor de Deus, infinito porém obscuro. Se Ele tem todo o poder, como Ele deixou tudo isso acontecer? Obscuro. Parece racional aceitarmos as teses propostas pelos romances espíritas de uma lei que nos chama a responsabilidade do mundo, mas às vezes parece pouco consoladora essa visão matemática. Sabe o que me consola mais nesse amor infinito e obscuro de Deus? É que é direcionado especialmente para mim, para você, para cada pessoa em particular. A imagem mais forte desse amor é a do Jesus abandonado. Ele era Deus, ou para os espíritas, um deus, e sua dedicação era tal que deu sua própria vida para ajudar cada pessoa que nele confiou (fé=fides=confiança). A imagem de Jesus é a de um deus quebradiço, mas que foi até a última gota alguém que esteve conosco, do lado. Essa imagem ressurgiu do sepulcro como um amigo que mostra as chagas e continua dizendo: vou ao Pai, mas estamos juntos. 

A encarnação do Cristo na Terra fala mais ou menos assim: "Eu sei de todo o sofrimento pelo qual você passa! (Veja que ele não fala para uma comunidade, mas para cada pessoa em particular, direto ao coração). Eu passei por algo assim também. Decidi sair das mais altas esferas da felicidade incorruptível para ser junto de você. Ao morrer e ressuscitar, eu quis dizer, não tema. Lute, continue, persevere, e em breve, parece um infinito, mas em breve, você estará comigo, em paz, do meu lado, no meu abraço." Ele se dirige a você e a sua filha. Fala ao ouvido de cada uma de vocês. E vendo Jesus falar assim, dá um ânimo que, para além de qualquer lógica, nos faz querer ser pelo ser amado que sofre o que ele foi por cada um de nós: alguém que abdica da própria felicidade, que se quer incorruptível, para apaziguar uma dor.