Fui convidado para falar sobre o que seria o Espiritismo segundo o próprio Allan Kardec, isto é, aquele que é considerado o fundador ou codificador do Espiritismo.
Geralmente quando nos dão esse tema, querem que mostremos o quanto estamos distante do que Kardec praticava como Espiritismo. Mas, é uma maldade comparar aqueles tempos de plantação de vigas mestras com esses tempos em que tudo está andando, bem ou mal.
Constantemente, vemos o que os mais criteriosos entendem ser a deturpação da vontade de Kardec, mas é preciso olhar com olhos menos rigorosos, eu entendo, para que não findemos por afundar todos juntos em um grande cisma que, a bem da verdade, vive acontecendo no movimento espírita. Todos, citando o codificador, puxam a corda para o seu lado. Estes acham que deveria ser mais científico, aqueles querem fazer evoluir a proposta e harmonizar-se com as temáticas sociológicas mais atuais, aqueles outros querem que a religião impere.
Resgatar o Espiritismo de Kardec nos faz ver que ele mesmo passou por fases de enxergar a doutrina com um óculos de cada vez. No início era o homem do critério científico. Depois foi adocicando a fala e aproximando-nos da religião cristã. Ainda assim, dizia que era necessário se abster de dogmas. Os ensinamentos morais eram tudo. Mas, eis que, lá pelas tantas, Kardec já vai confessando que deve haver algum ato de fé espírita e, com pesar, percebe que a doutrina não poderia, naquele momento, fazer irmanarem-se todas as religiões sob a égide da imortalidade da alma. Haviam dogmas duros demais para ceder a tal ponto.
O que tentei resgatar, por fim, era o quanto o lado religioso do Espiritismo de agora não estava longe do horizonte de Kardec. Em 1865, explicando sobre o que fazia com o dinheiro que conseguia arrecadar com a divulgação da doutrina, prova de forma cabal o quanto não havia dinheiro suficiente, e que ele tinha, sempre, de prover do próprio bolso, por exemplo, emprestando a mobília de sua casa para preencher os espaços da Sociedade Espírita Parisiense que fundara, centro aglutinador de toda a produção do saber espírita da época. Por fim, responde a pergunta: "O que o senhor faria com 1 milhão, se realmente o tivesse?". Eis a resposta:
"Hoje, que o horizonte se ampliou, sobretudo que o futuro se desdobrou, fazem-se sentir necessidades de ordem completamente diversa. Um capital como o que supondes receberia um emprego mais útil. Sem entrar em detalhes, que seriam prematuros, direi simplesmente que uma parte serviria para converter minha propriedade numa casa especial de retiro espírita, cujos habitantes recolheriam os benefícios de nossa doutrina moral; a outra constituiria uma renda inalienável, destinada: 1o – a manter o estabelecimento; 2o – a assegurar uma existência a quem me suceder e aos que o ajudarem em sua missão; 3o – a prover às necessidades correntes do Espiritismo, sem recorrer aos produtos eventuais, como sou obrigado a fazer, já que a maior parte dos recursos assenta-se em meu trabalho, que terá um termo." [Revista Espírita, junho de 1865, grifo meu] (Clique aqui para ler o texto na íntegra)
Eis ali uma passagem perdida nas mais de 4.800 páginas que Kardec escreveu só de revistas para divulgação da doutrina. Uma passagem que fala sobre o quanto tinha vontade de transformar sua casa em um abrigo acolhedor para o consolo de muitos que procurassem o lugar. Bem, acredito que foi esse o caminho que o Brasil escolheu como modelo. É isso que nossos centros espíritas tentam seguir, o maior ou o menor sucesso não desmerece a tentativa.
O áudio da palestra encontra-se temporariamente disponível para download neste link: