quinta-feira, 1 de maio de 2014

Noé, o filme, e os eternos conflitos do dilúvio em nós - Parte I



Não vou me ater aqui à análise bíblica da história de Noé segundo o original. Vou escarafunchar a história do cinema e suas conexões com grandes temas filosóficos. Vamos dividi-la em alguns itens:

O dilúvio não é um privilégio dos hebreus. Você deve saber que as grandes civilizações do mundo antigo tendiam a se instalar e crescer próximo a um grande rio, dentro de um vale. Quando havia época de muita chuva, aquele transbordava e provacava dilúvios trágicos. A relação do homem com Deus era questionada e elaborada não só pelos sacerdotes, mas também pelos grandes contadores de história, que, frequentemente, se valiam dos recursos de consulta aos deuses (ou os deuses se revelavam espontaneamente para eles) para melhor narrar o fato, a fim de ficar claro o motivo de tanto sofrimento e a solução para o resgate, o que é uma espécie de prevenção para a tragédia não se repetir. 

É comum, entre os antigos, a visão de mundo que conecta os grandes males à relação do homem com as divindades, já que só elas poderiam provocar tão vultosas calamidades. Há grandes lendas diluvianas entre os Sumérios (Gilgamesh, o grande rei, em busca de imortalidade, procura Utanapishtim, aquele que sobreviveu ao dilúvio), entre os indianos (Brama se transforma em peixe e vai falar com o monarca Vaivaswata sobre o dilúvio próximo), entre os gregos (Deucalião e Pirra, únicos salvos por Zeus - nem mesmo os animais se safaram).  

No filme, vejo muitos traços gregos. Os homens da idade de bronze, segundo a mitologia desse povo, eram uma geração posterior aos da idade de ouro que, diferentemente destes últimos, viviam em conflitos entre si e com o cosmos. Tenderiam a se destruir sem precisar da ajuda divina se não houvessem atiçado Zeus contra si. Perceba que os homens da descendência de Caim são artesãos do ferro e muito belicosos. Adão e Eva, os seres que viviam em harmonia com o paraíso, são representados no filme por entidades de pele dourada!

A história do dilúvio fala sobre reconciliação: do sensível com o inteligível, do homem com Deus. A geração dos homens inicia em completa harmonia com o meio e com Deus, o Criador. A desobediência é o ato primeiro de ruptura. Este ato é o que perpetua e multiplica a separação entre o homem e a natureza. É exatamente o que não encontramos com a geração de Set, particularmente em Noé. Logo de início, encontramo-lo colhendo espécimes de vida que, bravamente, ainda sobrevivem na terra devastada, bem como se compadecendo da morte de um animal caçado pelos filhos de Caim.

Entre os gregos, Aristóteles representou uma das primeiras grandes escolas de pensamento que buscou reconciliar o inteligível com o sensível, as ciências da natureza com as ciências do espírito. Não à toa, suas lições de biologia buscavam enxergar a grandeza do cosmos na engenhosidade dos animais. Por onde chegar à identidade com o cosmos? Não é pela libertação das armadilhas do sensível, mas pela descoberta intelectual das maravilhas do sensível em sua forma. É na forma que está encarnada a ideia nobre, mais que isso, ideia e forma se misturam indistinguivelmente.

A solução dos gregos em seu período filosófico rumou para essa resposta. E a dos hebreus? Seguir a vontade do Criador. Se, desde o início dos tempos, a humanidade tivesse se mantido obediente ao Criador, mal algum teria caído sobre ela. Veja que a estrutura dessa resposta está em perfeita conformidade com a estrutura social dos hebreus, bem como a de Aristóteles com a democracia Ateniense. Na Grécia antiga, era importante que o homem atingisse a maioridade de se guiar e ajudar a guiar a Pólis através do exercício da própria razão em fazendo sua cidade ser um reflexo do Cosmos, ou, em Aristóteles, não um reflexo, mas uma identidade. Entre os hebreus, sociedade eminentemente patriarcal, a obediência à vontade do Pai era o valor por excelência.

O mito estrutura a tradição de aprendizados em cada sociedade. Quando fazemos algo errado à revelia das orientações de nossos pais, o que eles dizem? "Viu, menino, não te falei?". Seguir as orientações do mais velho e experiente elemento da família é o grande ideal de sabedoria. E a sabedoria, em muitas culturas, sempre foi uma espécie de reconciliação do homem com a estrutura que lhe transcende e lhe contém.

Já me estendi demais. Vou deixar para próximos posts as outras questões que encontrei nessa história: a definição de homem, isto é, de maturidade espiritual, a obediência perfeita das plantas e dos bichos em contraste com os excessos dos filhos de Caim, os anjos decaídos por razões (ao nosso ver) mais nobres, o caminho da libertação, a voz de Deus que fala segundo a capacidade de apreensão de cada homem, o Deus de fora e o Deus de dentro, e, por fim, o caminho do amor para a verdadeira salvação (ou, é preciso destruir para salvar?).

Aproveite para assistir ao filme, porque vou revelar o final nos próximos posts. E quem for querendo encontrar a bíblia intocável lá, acho melhor mudar de ideia, se não a decepção pode lhe afogar.

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