terça-feira, 23 de abril de 2013

Contra Nietzsche





O texto pode ser longo, porque aqui vou estirar meu repúdio. 

Ontem, de madrugada, estava exultante ao ouvir uma palestra sobre Nietzsche da filósofa  sua fã Viviane Mosé no You Tube. Uma fala que meus colegas haviam dito que todos deveriam assistir independente da posição filosófica. E entre as coisas do que ela disse que me encantaram foi o seguinte, bem no estilo da genealogia do seu ídolo (aos 37min e 09s):

Se você quer respirar ar puro, precisa parar de frequentar as igrejas [citação de Nietzsche]”, ao que ela comenta que “a construção dos valores niilistas é, antes de tudo, produção do judaico-cristianismo. A ideia de culpa é fundamentalmente judaica. Obviamente passou para o cristianismo. Essa combinação judaico-cristianismo produziu uma coisa impressionante que é ‘dos fracos e oprimidos é o reino dos céus, dos aleijados, dos pobres de espírito é o reino dos céus’. Se é mais fácil um camelo passar por um buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus, nós devemos ser pobres, fracos, tristes e aleijados. (...) Se eu sei fazer uma palestra, eu não posso dizer para vocês... [ela começa a falar clichês de falsa modéstia], isso é lindo, não é? Agora se eu disser, eu faço isso, adoro fazer isso, faço da melhor forma que eu posso e sinto que faço bem, sinto que vocês reagem, isso é prepotente, é arrogante, é feio. Se o valor-alvo que nos move é a fraqueza - eu posso até ser forte, mas Deus não vai gostar de mim - isso é extremamente nefasto. A nossa coisa é ‘bom ser fraco’: - Ah! Eu tô tão arrasada!, dizer isso parece que Deus tá ouvindo e Ele vai lá de cima te dar uma solução. Então, nós temos o hábito da reclamação e da autocomiseração, porque parece que alguém vai tá ouvindo.” 

Saí, então, feliz daquele encontro. Entendendo o quanto eu deveria me amar como sou em meus dons. Sem querer escondê-los por parecer soberba, mas os querendo exibir, como se mostra um corpo musculoso. 

Falava ao amanhecer, então, junto a minha esposa, do resgate da felicidade da arte na cultura grega antiga e da cena maravilhosa de uma senhora idosa - eis o que narra o mito - que mostra a bunda para Deméter (a deusa que dá origem às estações), no intuito de tirá-la do inconsolável estado de espírito em que caíra pelo rapto da sua filha por Hades. Deméter faz sorri as flores junto consigo, por breve instante. 

Foi quando passei, no trânsito, ao lado de uma senhora estendida no chão, talvez bêbada ao extremo e talvez, por isso mesmo, com grave risco de morte. Marília me chamou a atenção, ficando com peso na consciência por termos passado direto. Eu havia murmurado apenas alguma coisa sobre o estado de embriaguez deplorável e nada sobre o imperativo da ajuda. Dois médicos em um carro. Duas negligências: a minha tanto pior quanto mais calada. O silêncio nos apoderou até eu chegar no centro de saúde destino dela. As casas passaram, os outros carros correram, as muitas pessoas ficaram para trás, mas aquela mulher não saiu do espírito. 

- Maldita! Tirou todo o brilho dos meus olhos para um mundo que florescia junto ao sorriso dos deuses. Anátema! Ocupou todo o espaço do meu peito onde só deveria haver amor por quem ao meu lado estava e pelos meus familiares que logo me esperavam em casa ao voltar. Idiota! Uma chuva aconchegante para nela se agasalhar e preferiu se queimar com aguardente vomitando em minha consciência até há pouco límpida. Eu quero viver a vida! E não sofrê-la...

- Quem perder a vida por amor a mim, ganha-la-á.
- Quem é você?
- Sou a bêbada lá atrás!

As estações de Deméter foram acontecendo no meu peito. Esse sol foi me queimando as folhas e não deu muito para tornar gelada a alma. Novas flores despontavam enquanto eu seguia o caminho de volta para encontrar a enferma. Pensava em todos os atrasos que ela me daria, que me tiraria do fluxo normal, me arrancaria do cotidiano. Fui ficando feliz. Alegrando-me em pensar que poderia carregá-la nos braços, desacordada, e entregá-la ao hospital para lhe devolver a vida. Fui ficando ainda mais feliz ao imaginar que quando ela acordasse, sem saber a identidade do benfeitor, bendiziria aos céus e poderia querer se regenerar. O contrário, e o mais provável, deveria acontecer, isto é, ela se maldizer porque preferia ter morrido. Mas, pelo menos, meu coração bateria mais calmo por ter diminuído a desgraça do mundo.

Ela já não estava mais lá. Nenhum sinal. Vi uma ambulância se escondendo ao longe. Vi uma ânsia grudada em mim de contra-argumentar Viviane Mosé:

- Não devemos ser pobres, fracos, tristes e aleijados para o Reino dos Céus. Devemos ser ricos, fortes, felizes e cheios de braços para conseguir entrar na festa (Mt 22:11-13). São outras riquezas, fortalezas, felicidades. São outros dons. Amar a vida, sim! E como há pobres na vida, amar os pobres, não a pobreza, os aleijados, não a doença. Amar o próximo, não a proximidade, pois mesmo distantes, não deixam de ser irmãos. Sorver o gosto amargo da negligência, não para se perder na escuridão da culpa, mas para sentir a exuberância da luz quando a ela se entregar no arrependimento e na reparação. É uma alegria mais de ação que de esperança. Pois é querer, inadiavelmente, fazer do hoje um lugar melhor para mim e para você. 

Pobre, fraco, triste e amputado fui quando não ajudei quem precisava. A festa está no oposto. Como querer dançar nela sem ouvidos para ouvir o seu ritmo? A música deste mundo aqui, cheio de injustiças, ainda toca os tons da caridade material. Uma festa excludente? Não! É preciso chamar a todos. 

No Evangelho há mensagens para todos os estados da alma. Por que privilegiar apenas os que estão de bem consigo? Estar longe dos sãos! Eis o que nubla as falas do mestre, e o que as torna sol.  

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