quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Mitologia e Morte

Convidado para palestrar acerca das concepções de morte nos diferentes contextos históricos, filosóficos, morais e religiosos, entendi que a melhor forma de abordar este tema seria falando sobre mitologia. 

Deixo ao final o link do áudio da palestra, que acabei tendo que complementar em um segundo momento, em casa, porque não consegui finalizar a contento o tema, cortando partes que considerava fundamental expor. 

Por que a mitologia para falar da morte?

A questão não é só por que a mitologia, mas sim por que o objetivo era que abordasse esses múltiplos contextos que praticamente tocam quase todas as dimensões da forma de nós humanos conhecermos o mundo. 

A mitologia, contrariamente do que se entende no senso comum, não é superstição, mas a matéria-prima simbólica da qual extraímos a nossa grade de compreensão do mundo. 

Se não tivéssemos nos aventurado em qualquer narrativa mitológica, embora seja inconcebível essa hipótese pela irrealidade histórica dela, não teríamos tido força cognitiva suficiente para formular qualquer outro discurso. 

As imagens que nascem da mitologia povoam nossa mente. As imagens que povoam nossa mente nos fazem reconhecer a mitologia. Mas, apenas o casamento entre a narração e as imagens da nossa mente que dá certo é que sobrevivem no tempo. Gilgamesh, mitologia babilônica, tem cinco mil anos!

Os mitos tem história. Vê-se que são retalhos ou superposições de histórias, com várias edições. Tratam de teologia, pois descrevem nossa relação com divindades; de filosofia, já que apontam ações organizadoras da nossa forma de ver o mundo; de moral, uma vez que norteiam condutas práticas de relação entre os seres humanos, e às vezes de povos, no cotidiano. 

Kardec decidiu não se aprofundar nestes assuntos, preferindo sempre as construções racionais dos modernos, embora tenha feito ensaios em O céu e o inferno e em A Gênese. Mas, hoje e cada vez mais, estamos vendo o quando precisamos reler as mitologias, as resistentes à corrosão do tempo, para nos entender. 

Assim, seguem minhas falas:




sábado, 24 de fevereiro de 2018

Diálogo com um Espírito enfrentando o medo da morte



Por que você não quer partir?

Por tudo que eu construí aqui e por tudo que eu ainda tenho para construir. 

Mas, do outro lado ainda há vida. 

Uma vida completamente nova. Eu queria ficar com os meus. 

Há seus também por lá. 

Pode ser consoladora a ideia de que há uma família que ultrapassa essas nossas vivências na carne, mas as experiências na carne nos marcam de uma forma que parece a ferro e fogo. Você já tentou fazer feliz uma mulher? É a coisa mais difícil que se pode tentar. Nunca se sabe ao certo o acerto. É um jogo de surpresas. Mas, quando se consegue, é prazeroso para os dois. Tanto mais quanto mais difícil. E criar uma criança? Querer o bem dela diuturnamente. Se enfurecer de tanto que ela não segue suas ordens, mas se felicitar por vê-la crescer exatamente nesse processo de te desobedecer, por estar encontrando o espaço dela no mundo. Pois bem, esses esforços que fazemos não dão apenas sentido a nossa vida, dão cor, sabor, textura, substância, nos fazem, necessariamente ter raízes. Depois de todo esse processo trabalhoso, oneroso, vem a morte e quer nos arrancar. 

Mas, você poderá continuar tendo contato com seus amores, mas de um outro modo. 

Que modo você fala? Com a invisibilidade e a intangibilidade próprias dos Espíritos errantes. Teve uma vez que fiquei afastado de meus filhos por causa de um exame que tive de fazer. Haviam me dado uma substância radioativa e orientado para se afastar deles.  Decidi mudar para a casa de minha mãe, para nem correr o risco desse irradiação os fazer qualquer mal. Olhava-os pela câmera do celular. Cheguei até a ir de carro lá, vê-los de longe. O menorzinho só ficava olhando o carro, sem entender porque não estacionava. O maior queria ir para o carro brincar. Para o menor, eu estava invisível, para o maior, intangível. Sabe o quanto isso me feriu?

Esse apego é o que mata!

Esse apego é o que salva, meu amigo. Se não fosse por ele, eu seria mais um perdido nesse mundão. Todo esse esforço por sair de mim, amando, me tornou um ser tão singular, com sentimentos tão próprios, na mesma medida em que ia vendo a singularidade daqueles seres amados para mim. Um dia fiquei com uma menina que se enamorou por certa beleza que enxergou em mim e admirava certa força que via em minha fala. Dias depois ela já estava com outra pessoa. O que eu fui para ela? Mais um com certa beleza e certa força. Todos os dias eu conheço cada vez mais a beleza da minha esposa e a força de meus filhos. Todos os dias eles se tornam cada vez mais especiais para mim, insubstituíveis. Sempre amei meus pequenos com toda a devoção, e se eles tivessem morrido recém-nascidos, eu teria sofrido, como sofri com o aborto espontâneo que sofremos na primeira tentativa. Mas, quando os temos nos braços, vemos saindo de nossos braços, andando, correndo, depois pulando, enfrentando as águas, cada conquista dessa vai tornando-os tão mais especiais que a possibilidade da perda só sinaliza a profundidade da dor que seria.

Melhor seria não os ter. 

Bobagem! Deixa que eu os tenha e que sofra a possibilidade de não mais os ter. Essa é a nossa sabedoria, irmão. 

Sabedoria da dor. 

Sabedoria da vida. A vida que vem com o que tem de bom e de finito. 

Voltando, então, para a tentativa de lhe esclarecer: não é finito. 

Voltando para a tentativa de lhe fazer enxergar: a noção de infinito tem gosto de teoria para quem ainda sente o peso da carne, não consola tanto quanto o cheiro das pessoas que amamos. Consola? Tem lá o seu consolo. E não repreendo você por estar me conduzindo nessa teoria. Devemos nos esforçar para amplificar o amor, mostrar o quanto o túmulo pode não ser o fim. Só a eternidade para dar um sentido para o finito. Só não devemos nos enganar e achar que esse sentimento poderá ser enfiado na consciência de quem vive intensamente a carne. E eu não estou falando de concupiscência ou luxúria, mas apenas de seres sencientes. Ah! Saborear o outro! Quem nunca teve isso no corpo, pouco poderá entender o que falo. Quem se escondeu no deserto para não sofrer me vê falando uma língua estranha. O peso dos corpos sobre o seu noites a fio, até o dia em que você está tão leve e quebradiço que o próprio filho pode te carregar. 

Sua tristeza lhe corrói. 

Deixe de ser criança. Isto é o próprio processo de morrer. Ser corroído até não sobrar mais nada, apenas este Espírito desencarnado que você prega. É doloroso? Sim. É angustiante? Sim. Mas, é também a vida. Todos esses sentimentos que lhe falei fazem parte do corpo do qual vou sendo expulso. Não me arrependo de nada, eis tudo o que é bom! Se as lembranças forem comigo, menos mal. Se eu puder voltar para vê-los, tanto melhor. Mas, faz parte do corpo o apego.  Corpo do pai nos braços do filho: que o pai voe enfim, e o filho o assimile. Eis nossa sina de ser adubo e horizonte, os dois, para os que ficam. 

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

O Incal






O Incal é uma história em quadrinhos de 1980, idealizada pelo cineasta e psicólogo chileno Alejandro Jodorowsky e ilustrada por Moebius que devorei em três dias.

Conta a história da salvação da humanidade a partir de um único ser humano tosco, menor, sensual, fraco, inquieto, impuro, porém sem maldade. Sedento de amor carnal e de sentir a realidade. Esse é Jonh Difool.


Sua profissão era detetive, porém era medíocre nela. Em nenhum momento é mostrado Jonh Difool exercendo seu ofício de investigador. Contudo, é ele, e ninguém mais, que chega ao fundo dos mistérios do universo, mesmo se esquivando o tempo todo dessa busca.

Tudo começa com uma mini-pirâmide que termina em suas mãos por caminhos misteriosos. Um monstro extra-terrestre a entrega - para Jonh Difool especificamente - antes de morrer. Esta mini-pirâmide é o Incal luminoso.

O Incal é portador de dons divinatórios e curadores. Todos o querem para domínio do universo, mas o próprio Incal vai forjando estratagemas para vencer o principal e verdadeiro inimigo que se aproxima: a Escuridão. 

A outra metade da pirâmide, o Incal negro, foi dominada pelos humanos que se devotaram à Escuridão. Mas, logo é resgatado, e não apenas a fusão da luz com a sombra, mas também a sua melhor possibilidade de expressão através do andrógino perfeito permite, em sucessivas descobertas místicas, a batalha final. 

Assim, Jonh Difool sem querer e sem saber vai conhecendo a existência da mais pura beleza e verdade semeada no íntimo da feiura, do grotesco, do asqueroso, do pútrido. Cada batalha que a história narra é a busca do equilíbrio das contradições, mas sempre, isso é imperioso explicitar, a partir da humanidade demasiadamente humana de Difool.

O andrógino perfeito, Solune, por exemplo, que em certo momento passa a ser a manifestação perfeita da consciência do Incal, é filho de Jonh Difool com uma espécie  de semi-deusa, Animah. Mas, esse amor não é sublime. Ela havia se disfarçado em uma prostituta para poder gerar Solune. O desejo por Animah, todavia, passa a animar a motivação mais forte no coração de Jonh Difool e sempre retorna como o único argumento possível para que este enfrente os desafios da jornada. 

Ao final de toda a história, quando morte e destruição já haviam se espalhado por grande parte do universo, e a Escuridão prosseguia seu domínio com fúria, o andrógino perfeito, médium do Incal unificado, é elevado ao lugar do imperador/triz do universo, profetizando o único jeito de derrotar a escuridão: que a galáxia sonhasse. Todos os habitantes do cosmos deveriam entrar em sono profundo a fim de fornecer a energia psíquica para o enfrentamento final com a escuridão. Um comandante solitário de um planeta qualquer reclama dessa loucura:

- Justo quando o inimigo está mais perto, ele vem pedindo para dormir. Está louco!

- Mas, chefe, desta vez, talvez sonhar é que seja revolucionário.

O planeta que deu o maior exemplo de que isso seria possível era aquele onde viviam crianças, há muito recebendo as lições de sábios, os Arath, que um dia tiveram a missão de guardar a entrada para os mistérios do sol interior, em meio à floresta de cristais, destruída pela encarnação maligna da tecnociência.


Aqui é preciso um aparte. Já não dá para vislumbrar a solução final? Quando todos os sóis tiverem desaparecido, que luz restará?

Jonh Difool, que irremediavelmente não se entregava para a saga da salvação da humanidade, é, de novo e mais uma vez, colocado como único possível de finalizar a missão de adormecer o universo. Faltavam 78 bilhões de seres para cair no sono, e quem eram eles? Seus filhos. Explico.

Há não muito tempo, Jonh Difool havia se entregue em uma experiência idílica com uma entidade chamada Protogenitora. A cada cinco mil anos ela acasalava com um grande guerreiro. O Incal fez com que Difool vencesse a competição e fecundasse a Protogenitora. Contudo, de fato apaixonada por Difool, ela se desfaz em ódio e rancor quando este a deixa por Animah. Todos os filhos da protogenitora, 78 bilhões!, neste planeta distante que Difool estava fadado a converter para o sono salvador, representavam o que havia de pior em Difool e numa mulher traída. O penúltimo desafio de Difool para sua autoiluminação é ter que ver os filhos do rancor e do amor traído que gerou, a imagem e semelhança de sua sombra.

Faltando pouco tempo para o ocaso, iluminada pela verdade que soprou ao seu ouvido através de um pássaro, Deepo, aquele que sempre mergulhou para salvar Difool nas horas mais drásticas, a Protogenitora entende que o que ela amou em Difool nunca foi o próprio homem, mas a luz que havia nele: o Incal. 

Quero que você perceba o quanto o Incal vai parecendo um pretexto material para ir abastando todas as arestas e dissipando todas as discórdias. Sua força inicial, gerada da união do luminoso e do sombrio, continua, ininterruptamente provocando uniões. 

A Protogenitora sai do ninho em todo seu esplendor, apazigua seus filhos, pede-lhes que escutem ao pai, e este os adormece. Até mesmo as raças que foram subjugadas como escória nesse planeta, por terem perdido a batalha do acasalamento, são reintegradas no chamado da Grande Mãe. 

Tudo está pronto para a batalha final. Os grandes sábios Arath conduzem as mentes dos setes escolhidos (Difool e seus amigos que lutaram bravamente até aqui) para o embate último com a Escuridão. Ela desperta o pior pesadelo deles. O único que não foi dominado por esse encanto foi nosso detetive medíocre. Explica o Incal que a experiência de acasalamento com a Protogenitora havia deixado o detetive Jonh imune. Mas, talvez é que o pobre já vivesse no pesadelo, no pior inferno do giro da vida, aquele que o fazia ser escravo da sensualidade perpetuamente. De todo modo, expulso o Incal do corpo de Solune, o andrógino perfeito, assume o ser místico o corpo de Difool, o homem insaciável. A partir dele as últimas rebeldias das almas da pessoas se apaziguam:

- Parem de lutar contra os monstros dos pesadelos. Aceitem-nos, eles são apenas as partes de si mesmos que vocês tem medo de enfrentar. Transformem-nos. Cada horror contém uma semente positiva. Um pesadelo não passa de um dom disfarçado.

E assim, Difool, possuído pelo Incal, faz perceber, a harmonia por trás da tecnociência, as energias criativas por trás da violência, o correto domínio da realidade por trás da morte, a interminável totalidade por trás da individualidade, o efêmero rumo ao eterno pelas vias do que parece um corpo decadente, enfim, o assassinato do amigo que entrega seu pescoço ao lobo voraz como a doação suprema em prol dos outros. 

Após estas reconciliações, o Incal luminoso é dominado pelo negro. Cada um se entrega à sombra, em chamas. Menos o ego de Difool, que se torna a eterna Testemunha do Ser supremo, da Luz Imortal, Orh, de onde tudo provinha: o Incal, a Escuridão e a aventura épica de toda a reconciliação.

- Não sabia? O núcleo da Escuridão é feito de Luz. (...) Translucidez é minha última mutação. 

O Ser supremo transfigurado na face de um velho áureo se torna infante de novo e permite Difool voltar no tempo, lembrando de tudo o que viveu.

Como viver essa nova velha vida, então? Eis algo que realmente deveríamos investigar, detetives medíocres que somos da existência.

sábado, 20 de janeiro de 2018

Psiquiatria e Espiritismo



Fui convidado para falar sobre esse tema. Decidi partir das minhas experiências pessoais de encontro com a psiquiatria. 

Antes disso é preciso deixar explícito o que acho que devemos ter em mente ao tentar o diálogo com estes assuntos. 


  1.  Não julgar; 
  2.  Amparar sempre;
  3.  Não querer ser o salvador das pessoas; 
  4.  Respeitar o momento de cura de cada um; 
  5.  Os remédios são importantes, mas não suficientes; 
  6.  A cultura influencia, mas não devemos culpá-la de todo; 
  7.  Somos seres imortais e responsáveis pelos nossos movimentos de cura e adoecimento
  8.  Uma vida não basta para pensarmos sobre estas questões;
  9.  Jesus está bem ali para o milagre, mas espera nosso despertar.

Dito isto, minha fala se constrói em torno de três momentos, que são minhas próprias aproximações com os transtornos psíquicos. 

No primeiro narro as imagens que guardo de certo homem com retardo mental motivo de chacota e insultos das crianças da cidade pequena onde me criei. Dele surgiram minhas dúvidas sobre "como é possível doenças da mente que nascem com as pessoas?". A reencarnação me ajudou a formular repostas. Essa aproximação teve um caráter apenas intelectual, e distante.  

A segunda aproximação refere-se ao meu encontro com certa menina que foi do meu círculo de colegas na escola e que, então, estava devastada pelo sofrimento psíquico, internada em um hospital. Pela proximidade e semelhança, ela me fez pensar que poderia ser eu em seu lugar. A pergunta que nasce então é "o que aconteceu para que não fosse?". A reencarnação surge ajudando a explicar a questão em termos espirituais, mas também expliquei as companhias que podemos trazer de outras vidas, vingadores de outrora. Não que eu tenha um passado ilibado ou isento de desafetos, mas aparentemente meus desvios não incidiram no império da mente, não mais, não por ora. Essa aproximação teve um caráter um pouco mais emocional, tocou algo de mim, mas ainda não o que me é central. 

A terceira é quando definitivamente o transtorno psíquico me bate à porta, tomando pessoas que amo de assalto. Assim, passo a testemunhar a luta, a angústia, o desespero de quem vive com as doenças contra as quais os psiquiatras se esforçam. Ainda mais quando os remédios são vãos, e a escuta terapêutica, impotente. Essa última aproximação toca no íntimo, permitindo que eu tenha uma noção mais justa do que é o sofrimento mental. 

Essa espiral de aproximações entendo ser mais fiel do que simplesmente tentar a pureza do conceito e a adequação das palavras: do int-electo ao ínt-imo. 

Da última aproximação, conduzo a reflexão cristã de tentar fazer ressuscitar a esperança apesar de qualquer escuridão, já que esse foi o caminho do próprio Cristo. Talvez essa seja, na verdade, a condição humana de aquisição de sabedoria, ou do Reino dos Céus. Ninguém que almeje a cura, que é outro modo de dizer a salvação da alma, pode se eximir de enfrentar seus próprios abismos. 


   

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

As palavras de Jesus: nosso critério de verdade


"Singulares parecem algumas palavras de Jesus, por contrastarem com a sua bondade e a sua inalterável benevolência para com todos. Os incrédulos não deixaram de tirar daí uma arma, pretendendo que Ele se contradizia. Fato, porém, irrecusável é que sua doutrina tem por base principal, por pedra angular, a lei de amor e de caridade. Ora, não é possível que Ele destruísse de um lado o que do outro estabelecia, donde esta consequência rigorosa: se certas proposições suas se acham em contradição com aquele princípio básico, é que as palavras que se lhe atribuem foram ou mal reproduzidas, ou mal compreendidas, ou não são suas." (Allan kardec: Evangelho s. Espiritismo, cap. 14, item 6)

Na postagem passada mostrei como Kardec em A Gênese reveste o Espiritismo de um caráter muito dinâmico. A princípio pensaríamos que ele, então, seria isento de âncoras, flutuando no espaço das verdades, leviano, escolhendo a que mais brilhasse. Não é bem assim. 

Mesmo a ciência moderna não pode se dizer completamente isenta de fundamentos metafísicos que possibilitem sua forma de existir. Ela tem como pano de fundo que a realidade é cognoscível e que o homem possui estruturas mentais para conhecê-la. 

O Espiritismo, além do mesmo pressuposto da ciência moderna, apresenta um fundamento que Kardec deixa claro nesse excerto: Jesus diz a verdade e não se contradiz. O Evangelho segundo o Espiritismo todo é fundado nessa premissa, e o resto do Espiritismo por consequência. 

De fato, não poderia sermos uma doutrina consoladora se tivéssemos deixado a fé das pessoas à deriva nas descobertas científicas. O tempo mostrou o quanto a ciência moderna é volúvel. Hoje anatematiza o que amanhã idolatrará. 

O método rigoroso, o crivo racional, a seleção criteriosa das comunicações mediúnicas, tudo o que Kardec usou, pretendendo-se científico, acabou não sendo o carro-chefe do Espiritismo, mas Jesus. Foi o Cristo que tornou sólida nossa perspectiva. Todo o movimento de Kardec foi para deixar, novamente, o ressurgido do Calvário palpável para os homens. 

O Espiritismo se tornou, assim, nossa eucaristia. Abriram-se as lápides não apenas do túmulo de Jesus mas de toda a humanidade, revelando nossa imortalidade, apesar das chagas. Não apenas o corpo de Jesus se mostrava redivivo, mas os de todos os entes que amamos, com quem compartilhamos o pão e o vinho diários. 

Outro aspecto importante dessa perspectiva kardeciana de considerar o verbo de Jesus uma necessária verdade não-contraditória é de esta ser a definição cartesiana, por excelência, da ação de Deus no mundo. Como nos vai revelar postumamente, Kardec entendia Jesus como o médium de Deus, cuja fala, pois, estava em sintonia perfeita com o Autor de todas as coisas

A ciência oficial menospreza o Espiritismo, entre outras coisas, por esse deslize, por essa adesão despudorada. Mas, como diz Kardec, a ciência espírita prossegue a partir do ponto em que a materialista estaciona. 

O que significa a ausência de dogmas no Espiritismo?



"O Espiritismo, pois, estabelece como princípio absoluto somente  o que se acha evidentemente demonstrado, ou o que ressalta logicamente da observação. Entendendo-se com todos os ramos da economia social,  aos quais dá o apoio das suas próprias descobertas, assimilará sempre  todas as doutrinas progressivas, de qualquer ordem que sejam, desde que  hajam assumido o estado de  verdades práticas e abandonado o domínio da utopia, sem o que o Espiritismo se suicidaria. Deixando de ser o que é mentiria à sua origem e ao seu fim providencial. Caminhando de par com o progresso, o Espiritismo jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrassem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificaria nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará." (A Gênese, cap. 1, item 55, parágrafo 2)

Considero esse excerto o mais intrigante, angustiante, assombroso de todas as obras básicas escritas por Allan Kardec. 

Quem me fez enxergá-lo assim foi minha esposa. Vinda de uma cultura católica que tinha a missa dominical como a única forma de se entrar no reino dos Céus, quando ela se encantou com o Espiritismo, achou estranho uma religião ser tão flexível a este ponto. 

Esse excerto deixa claro nosso desapego a dogmas, ritos, símbolos. O Espiritismo é o que for certo ser, o que se verificar certo. Pelo menos é o que Kardec sugere. 

Para uma religião isso é deveras problemático. Nunca uma religião se comportou assim. Não é culpa delas. Toda religião flerta com a eternidade. Seus fundadores sempre foram considerados emissários de Deus ou de algum grande deus, quando não o próprio Deus ou deus encarnado. Como sua fala poderia estar errada? A tradição primordial do Hindu, Krishna, Buda, Lao-Tsé, Moisés, Cristo, Maomé, todos tiveram suas palavras e gestos sacralizados.

Por que a missa dominical (ou a de qualquer outro dia da semana) do catolicismo é o caminho da salvação? Porque nela o adepto atualiza sua comunhão com Cristo através da eucaristia. Qualquer coisa pode mudar no mundo, mas enquanto a eucaristia estiver sendo realizada, ainda há a ligação com a eternidade, isto é, salvação. 

Nesse excerto Kardec diz que a eternidade do Espiritismo está na sua capacidade de mudar. Devemos entender que não é uma questão de tudo ser impermanência e, portanto, quem se adaptar melhor à passagem de tudo sobreviverá. Mas sim, que a verdade é revelada progressivamente. 

Kardec acreditava e defendia uma verdade última em vários outros momentos. Contudo, esclarece que ela nunca foi revelada em todo seu esplendor sob pena de cegar os homens. O que ele quer dizer, dessa forma, é que o Espiritismo deve estar disposto a caminhar com a progressão da revelação da verdade. 

O espírita assim carrega essa angústia no peito: não se apegar muito a qualquer certeza, porque ela pode passar. Todavia, ter como pano de fundo que a realidade é boa, justa, bela, que há uma Inteligência Suprema a nos governar, e que as mudanças rumam para Ela. Seria esta tríade a nossa pedra angular. 


Não é mais um dogma ou um gesto primordial que sustenta nossa fé, mas uma busca dialética.

Importa enfatizar, todavia, que Kardec nunca deixou de acreditar que Jesus era um norte seguro, cujo discurso real não deveria apresentar contradições, sendo o mestre perfeito da humanidade. A revelação progressiva da verdade, então, seria a compreensão perfeita do verbo de Jesus. Falo melhor sobre isso na próxima postagem. 

Conversando com amiga psiquiatra



Uma amiga psiquiatra, que anda rondando o Espiritismo, me disse assim: "o Evangelho segundo o Espiritismo é lindo. Gostei mais dele do que do Livro dos Espíritos. Ele traz mais esperança".


Desde a primeira vez que ela me abordou, não imaginava que ela iria mergulhar tanto. As pessoas vêm a mim, pedem dicas, passam de raspão e seguem. Mas, algumas param, leem, se encantam. O conhecimento passa por três grandes vias: o estranhamento, o encantamento e o encontro. Por elas, entendo ter passado essa moça.

Venho construindo um ambulatório de saúde mental na atenção primária, e já havia me esquecido o quanto os pacientes de lá são intrigantes. Abstração feita da ansiedade e depressão – mal do século, que nos conduzem à busca de uma escola de pensamento que dê mais alento do que apenas medicalização – as ditas alucinações de alguns pacientes nos intrigam sobremaneira, tamanha a “elaboração” e, em certos casos, a inocência. Por que medicalizar essas visões de convivência pacífica? Muito pano para manga para estranhar. Foi o que disse a ela: 

“Por mais escolas de pensamento que a psiquiatria tenha engolido, sentimos que ainda falta explicação para a estranheza dos fenômenos mergulhados nas profundezas das pessoas.” A amiga aquiesceu.

Admirei, então, que ela, tão mergulhada em ciência, tenha se encantado mais com o Evangelho Segundo Espiritismo do que com o Livro dos Espíritos. Não que o Livro dos Espíritos seja científico, mas é mais a fim da produção de saber da ciência, pois são diálogos, argumentos, contra-argumentos e comentários, do que mensagens de consolo e direcionamentos morais, como o é aquele primeiro livro.

Quando entramos no universo da psiquiatria, um véu de explicações é posto sobre nossos olhos a fim de apaziguar a angústia de ver todas aquelas personalidades desestruturadas vagando nos corredores dos ainda manicômios. Algumas pessoas se apegam ao discurso estritamente racional para elevar a visão aos píncaros cerebrais, e afastar-se do coração. Todavia, o que vejo se espalhar por aí, como dizia Chico Xavier, é uma “saudade de Jesus”. Nesta personalidade, era menos ciência e mais acolhida, mais amparo, mais nortes, mais amor.

Como que uma projeção laica do que foi aquele encontro histórico da humanidade com o que demos de denominar salvador, parece ser isso que procuramos hoje em dia: menos ciência, mais acolhida, mais amparo, mais nortes, mais amor. Não que a ciência deva inexistir. Isso nos devolveria à selvageria. Por isso o Livro dos Espíritos, o Livro dos Médiuns e, de certa forma, a Gênese. Todavia, quando Kardec ousou atrelar, indelevelmente, o Espiritismo ao Cristianismo com a sua “Imitação do Evangelho”, acrescentou entre nós o (re)encontro com o Cristo, buscando tocar o sentimento que é grande parte de nós, sem prescindir da razão, essa ponta de iceberg. A isso ele chamou de “fé raciocinada”, o que, para os detratores da religião, parece um absurdo, mas que para mim, criado nesses moldes, é uma doce razão – aquilo que adoça a razão.

Sinto que, feito meu amigo ateu, terei muito o que falar sobre essa visita mansa de minha amiga.