quarta-feira, 29 de abril de 2015

Meu filho está fazendo birra



"... a educação, não a educação intelectual, mas a educação moral. Não nos referimos, porém, à educação moral pelos livros e sim à que consiste na arte de formar os caracteres, à que incute hábitos, porquanto a educação é o conjunto dos hábitos adquiridos. Considerando-se a aluvião de indivíduos que todos os dias são lançados na torrente da população, sem princípios, sem freio e entregues a seus próprios instintos, serão de espantar as conseqüências desastrosas que daí decorrem? Quando essa arte for conhecida, compreendida e praticada, o homem terá no mundo hábitos de ordem e de previdência para consigo mesmo e para com os seus, de respeito a tudo o que é respeitável, hábitos que lhe permitirão atravessar menos penosamente os maus dias inevitáveis." (L.E. 685a)

 A partir da minha adolescência não tirei essa frase de Kardec da cabeça. 

- Então, os males do mundo se devem muito a como fomos educados?! - admirava.

Dizem que Freud falou que se o método de Maria Montessori fosse vivenciado com todas as crianças, não se precisaria mais de psicanalistas. 

Então, vim alimentando que precisávamos investir na educação. Fui evangelizador de crianças e quase desisti de medicina para ser professor. Idealista! 

Hoje vejo o quanto essa "arte de formar os caracteres" é difícil. Meu filho começou a fazer birra. Compreendeu que calar o choro dele é das mais importantes coisas para as pessoas ao redor. Estávamos nos curvando para isso incoscientemente, e a pediatra hoje nos advertiu sobre o erro que é ceder a esse tipo de comunicação. É um garoto muito esperto, no mais. Contudo, vem utilizando o nosso amor de forma antagônica ao seu crescimento, à sua independência. 

Ninguém poderia ter muita crítica sobre nós. Primeiro filho, fazemos o possível para dar o melhor para o garoto. Não apenas brinquedo, mas presença, carinho. Nesses últimos dias, porque me vi livre do mestrado que me consumia, estive sempre brincando horas seguidas com ele. Desde sempre revezo o banho, o ninar e escrevo poesias para ele. Mas, eis que ele resvala nessa fase da birra, do choro imotivado, mas também e principalmente, do choro tirânico ao invés da comunicação civilizada. 

A pediatra disse que teremos de ser pacientes e firmes, sem perder o carinho. Convidar sempre para a conversa olho no olho, estimular ao aprendizado de nomear as próprias vontades. Nós e todos ao redor. 

Quando a coisa depende da gente, a mudança poderia ser mais simples, porém ao envolver todo o ambiente relacional, complica um pouco. Como mudar as outras pessoas? Vigiar seu atos? De outro modo, precisamos tanto delas. Venho precisando de horas de sono além do comum, pois desenvolvi enxaqueca com esta profissão que me priva do sono em estudos e plantões. Minha esposa também anda cansada, motivos semelhantes. 

Vamos tentar, claro! E continuar tentando. 

Mas, fica aqui, de novo, a reflexão do quanto nossos caracteres são complexos e a sua educação penosa. Somos tão pequenos diante da quantidade de interações que se misturam no Espírito de nossos filhos. Mais lá na frente, chegarão a apontar o dedo e nos culpar por isso ou aquilo. Terão razão e não terão. Terão razão porque realmente fizemos ou deixamos de fazer algo que se tivesse sido o contrário talvez (!) tivesse mudado o que ele chamará, então, presente. Não terá razão porque somos apenas uma causa entre mil outras. 

- Lembra-se da vez em que choveu tanto em nossa cidade que o céu ficou negro por dias seguidos, mirrando o feijãozinho que você tentava cultivar no algodão plantado no pires à sua janela? Você amava tanto aquele experimento, e ele feneceu. Sua culpa? Não. Nossa culpa? Não. Do sol? Da chuva?

Mãos a obra! Mais vale pegar outro feijãozinho e tentar de novo, e de novo, e de novo... 

segunda-feira, 13 de abril de 2015

Sobre como amo o catolicismo



Já falei sobre isso nesta postagem aqui, mas de outra forma, mais sutil. Nesta vou escancarar.

Vou escancarar porque em duas últimas postagens que toquei em pontos católicos exaltando-os recebi reprimenda de espíritas radicais (é verdade, essa categoria existe). Acho que é um deslize, uma invigilância deles. Mas, aconteceu. 

Então, queria deixar aqui bem registrado meu profundo carinho por essa igreja da qual a civilização ocidental nasceu. A gente, convictamente não católicos, geralmente só olha para ela lembrando da queimação de carne e das cruzadas. Esquece da luta contra o aborto (uma das gratidões mais profundas que tenho), da devoção para com os pobres, dos missionários que espalharam a boa nova da passagem do Cristo circundando a Terra. Lembro-me de vovó que era uma daquelas senhorinhas que, pela conduta nobre em meio à comunidade, havia recebido a missão de ajudar o padre a distribuir as hóstias. Que saudade!

Toda e qualquer doutrina que crescer muito vai ter que enfrentar as incorreções que o catolicismo enfrentou, este irmão mais velho. 

De vez em quando vejo textos ácidos e desrespeitosos sobre o "espiritolicismo" brasileiro. Entendem, os que criaram esse neologismo, que significa a corrupção do espiritismo com conceitos católicos. Não percebem que, assim como Jesus era judeu, Kardec era católico. Assim como Jesus não pode se abster de falar sobre sua doutrina com categorias judaicas, Kardec fez o mesmo com o espiritismo. Talvez, seja isso que tenha provocado o ódio dos cientistas da época, pois achavam nossa doutrina religiosa demais. E, enfim, a irmandade destas doutrinas é tamanha que é extremamente válido estudarmos mais judaísmo e mais catolicismo para entendermos o espiritismo.

Acho que nós espíritas reagimos impensadamente, quase de forma medular, contra o catolicismo, porque podemos ter tido um ou outro representante desta religião que nos feriu por palavras. Eu mesmo tive alguns exemplos que definitivamente não suplantam a maravilha do amor de amigos que enriqueceram indelevelmente a vida. 

Se pensamos mesmo estar entrando em um mundo de regeneração, saindo de uma Terra de doenças e guerras, não o faremos desprezando uns aos outros, mas fundando um clima de diálogo amoroso entre todas as diferenças. 

Hoje, depois de muito estudar e discutir, entendo a grandeza do dogma da ressurreição e da divindade de Cristo. Não acreditar até as últimas conseqüências nisso não me leva, de forma alguma, a não respeitar. E, se, neste blog, alguma discordância com essa doutrina expressei de forma pejorativa, denuncie que vou correndo corrigir. 

P.S.: A amiga Caroline fez um adendo que merece figurar como complemento imprescindível. Quando eu falo sobre SER algo (nossa civilização é filha da igreja católica, Kardec era católico), escondo o grande movimento que se processou por baixo dessa identidade a fim de que ela emergisse. Nossa civilização é filha dos encontros, desencontros e confrontos que originou essa hegemônica identidade de cristã. Kardec, se fosse católico, provavelmente não o era de forma pura, pois seus dois grandes pais Rousseau e Pestalozzi eram profundamente protestantes de uma forma toda singular. Salve a impureza das coisa! Somos mistura.

domingo, 12 de abril de 2015

Coração do mundo, Pátria do evangelho

Fui convidado para recitar uma poesia na abertura de um evento. Deram-me liberdade para criar. O tema era esse aí do livro psicografado por Chico Xavier.

Então, tive a ideia de ser um dos anjos que trabalha para o Grande Arcanjo Ismael. Quem leu o livro vai entender o que significa ser um anjo da falange de Ismael. Mas, eu era um anjo desastrado, meio arredio, indisciplinado, inquieto. Ismael me mandou para o evento para ver se interagindo com os encarnados e fazendo algo de útil amadurecia mais um pouco. 

Saí de uma sala lá de dentro logo depois da prece, todo sujo de pó. Dizia ser ectoplasma e espirrava muito. Um anjo com rinite alérgica por causa do ectoplasma! Contava para a platéia sobre a minha resistência em descer. Contudo, Ismael é persuasivo. A missão era ser um mensageiro, como todo bom anjo é, de uma poesia sobre o Brasil. Depois de muito tergiversar, declamo:



A hora já não tarda
Pois, então, vista a sua farda
E arda no trabalho

Árdua é a labuta
Tá doido?! Não escuta
A batuta do Grande Mestre
No concerto universal?

É chegada a hora
Sem demora,
Meu senhor e minha senhora,
De o Brasil assumir o leme
Sem mais creme (cuidado com o diabetes!)
Com confetes (a festa vai ser grande)

E o gigante há de se acordar
Com a aurora da caridade
Não a morna, mas a que arde
E há de triunfar
Ser coração do mundo
E, lá no fundo,
Pátria do Evangelho
Para moços e para velhos
Para todos. 

quarta-feira, 8 de abril de 2015

O conceito de inércia de três mundos diferentes



O que temos por inércia hoje como axioma da física clássica é um que tiramos do pensamento de Descartes, haja vista, que um corpo deverá modificar seu movimento se e somente um agente externo agindo sobre ele for motivo suficiente para isso. Se estiver em movimento e nada atuar sobre ele, continuará assim. Se parado, idem. 

Quando estamos no ensino fundamental e nos deparamos com isso achamos óbvio e nem entendemos o contexto em que isso foi criado nem, muito menos, as conseqüências político-religiosas de tal fato. 

Olha a tradução disso para a vida cotidiana: O que acontecer na sua vida continuará acontecendo a não ser que algo ou alguém de fora modifique esse estado. Mas, esse alguém de fora pode ser você! Porque você é um espírito, coisa pensante, que atua sobre a própria vida, coisa extensa. Isso dá uma importância fundamental para a força de sua vontade mudar o que parecia fatídico, sua depressão, por exemplo.  

Olha a tradução disso para a vida política: O que está acontecendo no contexto sócio-político ao seu redor continuará do jeito que está a não ser que algo ou alguém de fora modifique esse estado de coisas. Mas, de novo, esse alguém de fora pode ser você! Basta que você eleve sua capacidade de análise para além desse estado de coisas e, como se olhasse de outro ponto de vista, entendesse o que se passa e a necessidade de mudança. E, continuando nesse movimento de estranho no ninho, angariasse forças externas ao sistema em que está enredado para modificá-lo. Do contrário, você, confundido com tudo o que está aqui e agora, não passaria de mais uma das coisas que estão aqui e agora. Isso deu força para o mais diversos movimentos de libertação nacional das amarras monárquicas. 

Esse conceito de inércia, todavia, nem sempre foi assim. A mentalidade do mundo grego clássico, elucidado pelo raciocínio aristotélico, dizia que um corpo tenderia a seguir sua rota independente das outras forças que atuassem sobre ele, porque estava sob a atração de outra força insuperável, a do Grande Motor. Tradução para o cotidiano: tanto mais feliz você será quanto menos resistir a atração natural que o conduz para o seu lugar no cosmos, isto é, busque ser aquilo que você foi destinado para ser sob pena de ter trágicos sofrimentos. Tradução para a política: o melhor governo é o que tem uma forma de ser mais parecida possível com a natureza bruta. Olhem como ela governa seu grande ecossistema! Perfeito. Imite-a.  

Na Idade Medieval, a ideia do Grande Motor foi substituída por Deus, Ele é a grande força que nos atrai, o que nos gera carência e falta, o que nos move para Ele e nos faz felizes quando estamos no caminho certo. Uma diferença capital: a liberdade do ser humano. A atração para Deus não é insuperável. O homem pode vir a rejeitá-la e, assim sendo, conduzir a própria vida para o inferno, que é a distância infinita de Deus. 

Ainda hoje, essas três visões de inércia dialogam no nosso cotidiano sem percebermos. O Espiritismo é uma síntese entre a inércia de Aristóteles e a dos Cristãos. A liberdade do homem para atuar sobre o próprio movimento não vai até as últimas conseqüências de impedir definitivamente a união com Deus. Se houver insistência, um dia ele pára, inibidos todos os órgãos que o faziam resistir contra a atração divina, para que esta exerça sua força sobre um espírito mais dócil. Mas, há (certa) liberdade! Ao homem são dadas muitas oportunidades para que ele siga o caminho certo. E, no contexto político, a democracia tem suas chances de escolha das próprias trajetórias, embora conduzida por luzes que a direciona para a sociedade perfeita. 

Bem, os críticos do determinismo podem odiar essa visão de mundo, mas é assim que o Espiritismo vê as coisas. O melhor governo seria um governado pelos mais sábios e bons, aristocratas intelecto-morais que conseguem divisar as grandes leis universais, conduzindo seu povo para bem segui-las. A diferença da aristocracia intelecto-moral para uma oligarquia capitalista são os métodos de ascensão ao poder: os primeiros sobem pela magnitude do caráter e tem o apoio amoroso das massas, os segundos sobem pela grandeza das riquezas e negociam o próprio apoio.

Eu acho muito legal acreditar em uma inércia que me dá o direito de modificar os movimentos da vida, embora destine o que há de melhor para mim ao final, não permitindo que eu me perca para sempre. Os sartreanos replicariam: "Você acha legal ser criança!".  

- Acho!


segunda-feira, 6 de abril de 2015

Para meu amigo ateu: A gratidão




Fui interpelado hoje para atender a uma conhecida de uma amiga. Ao final, ela me agradeceu. Eu disse que estava fazendo a obrigação que o livro me preconizava: a garota apresentava uma dor de cabeça com sinais de alarme. Ela disse que entendia, mas que mesmo assim agradecia. Fiquei sem jeito e feliz. 

Gratidão não é um sentimento que precisa de um favor para acontecer, basta uma troca. Nem precisa que seja entre pessoas. Podemos agradecer ao Sol depois de um longo período de chuvas. Às chuvas depois de um longo período de sol. E isso não é adoração à um deus. É adoração. 

Não digo que aquela amiga me adorou. Bem, não nesse sentido religioso. Adorou o que fiz por ela. Minha abertura. E a vontade de extravasar a leveza que sentiu quando me propus a assumir aquele peso de preocupação que carregava gerou gratidão, graça, o contrário de gravidade. 

É uma paixão alegre. Diz mais a respeito de quem agradece do que de quem é alvo dessa gratidão. Mostra um coração aberto para fora que permite ser tocado por o que vem de lá. Amor: uma alegria que tem sua causa em um ato exterior que lhe acompanha.

- Obrigado por você existir!

Que responsabilidade temos pela nossa existência? Nenhuma. E essa frase não deixa de ser uma das mais tocantes que conheço. 

Meu amigo, o ato de agradecer é um triunfo do "sim, para a vida!", no que ela tem de enriquecedora da nossa potência de existir.  Saltar de cima de uma tábua no meio de uma lagoa, os três irmãos juntos sendo cristalizados numa foto que lhes deixa voando para sempre! 

Sei que já compartilhei com você este poema, mas aqui cabe a sua volta gratamente:

Passagem da noite


É noite. Sinto que é noite
não porque a sombra descesse
(bem me importa a face negra)
mas porque dentro de mim,
no fundo de mim, o grito
se calou, fez-se desânimo.
Sinto que nós somos noite,
que palpitamos no escuro
e em noite nos dissolvemos.
Sinto que é noite no vento,
noite nas águas, na pedra.
E que adianta uma lâmpada?
E que adianta uma voz?
É noite no meu amigo.
É noite no submarino.
É noite na roça grande.
É noite, não é morte, é noite
de sono espesso e sem praia.
Não é dor, nem paz, é noite,
é perfeitamente a noite.

Mas salve, olhar de alegria!
E salve, dia que surge!
Os corpos saltam do sono,
o mundo se recompõe.
Que gozo na bicicleta!
Existir: seja como for.
A fraterna entrega do pão.
Amar: mesmo nas canções.
De novo andar: as distâncias,
as cores, posse das ruas.
Tudo que à noite perdemos
se nos confia outra vez.
Obrigado, coisas fiéis!
Saber que ainda há florestas,
sinos, palavras; que a terra
prossegue seu giro, e o tempo
não murchou; não nos diluímos.
Chupar o gosto do dia!
Clara manhã, obrigado,
o essencial é viver!



(Boa noite! Dorme em paz que amanhã... salve!)

domingo, 22 de março de 2015

Mundos Superiores e Inferiores


Palestra sobre a temática de vida em outros planetas baseada no item Mundos Superiores e Inferiores de O Evangelho Segundo o Espiritismo. Como recurso didático narro um dia meu, fictício, corriqueiro no planeta Terra como se eu fosse um Espírito de outro planeta bem mais evoluído que me dei conta, neste dia, que vim de outro planeta.

***

Como me levanto da cama: tenho que contrair o abdomen para levantar a cabeça pesada sobre os ombros, por vezes me valer dos braços para agarrar em algo que ajude. O que há? Por que não consigo voar?

Acordar e ver o sol: não consigo, nem ver as múltiplas cores, nem o ultra-violeta nem o infra-vermelho. O sol me cega.

A casa é vazia, onde estão os muitos seres que a habitam? Os invisíveis e os minúsculos? Em meu planeta de origem era uma visão corriqueira.

A boca é ácida e fétida. Bactérias pelejam por destruir meus dentes, preciso matá-las todos os dias.

Encontro o primeiro ser humano: minha esposa. Não me lembro quem ela foi, apenas quem ela está agora. Por que é a ela que amo tanto e não outra pessoa? Outrossim, como entender o móvel profundo de suas ações quando me ferirem sem razão aparente? Às vezes, tragédias relacionais acontecem que passa ao largo da nossa consciência explicar. Fixo em seu olhar para ver se me lembro. Nada, nenhuma lembrança sequer do que fomos em outras vidas.

Segundo ser humano: meu filho. Tem um ano e quatro meses, fala várias palavras incompreensíveis, ainda tenho que trocar sua fralda. Como assim? De onde venho, uma criança nessa idade já estaria bem mais independente.

Terceiro ser humano: A babá. Chama-me de senhor. Que fiz eu para ser seu senhor? Há uma vontade de tecer relações de amizade, mas há choque entre as individualidades, nossos campos fluídicos emanados de nossos pensamentos não se afinam. Eu tenho apenas conhecimento teórico desses fluidos, não os enxergo, estes meus olhos de proteína. E um amigo me diz que nunca se pode ser amigo dos empregados, eles sempre estarão a espera de lhe passar uma rasteira. Minha esposa me mostra uma postagem no facebook e percebo o clima violento que divide o país entre elite e proletários. Que saudade do planeta em que as relações humanas são mais horizontais, não opressivas! Onde reina o carinho e a confiança.

Chego ao trabalho. "Bom dia!" Poucos respondem com a mesma empolgação. Uma pessoa fecha o cenho. Comentários de amigos dizem que certa pessoa é ressentida porque trabalha tanto quanto o médico, fez quase o mesmo tanto de horas na faculdade, mas ganha três vezes menos. Por que ela realmente ganha menos que eu? Um outro amigo me explica a teoria conspiracionista que sou o braço armado da indústria farmacêutica. Braço aramado?! A Terra está em guerra e eu sou um soldado inconsciente?

Um colega me adverte para tomar cuidado porque estão querendo me passar a perna e me tirar o cargo de chefe que ganhei com suor e dedicação: por que homens querem ultrapassar homens e não a si mesmos? Não havia inveja no meu planeta, mas admiração pelos espíritos superiores que nos estimulava a crescer.

Saio do calor de Fortaleza, entro na gélida sala do consultório. Lá fora estava incomodado com o calor, aqui me incomoda o frio. Mas, lá no meu planeta tudo me agradava. Em que estou me transformando? Um ser eternamente insatisfeito.

Começo a atender pessoas doentes: são muitas doenças! O que houve com essas pessoas? Lá todos possuíam corpos em equilíbrio com a natureza.

Volto cansado para casa. O corpo tem o peso triplicado. Adquiri a dor de garganta dos doentes que atendi. Não consigo nem brincar com meu filho, até mesmo porque temo contaminá-lo. Durmo, o Espírito se desprende do corpo e começa a ver as coisa mais claras: os sentidos se espalham por todo o corpo. Percorro o sistema solar conduzido pelo meu anjo da guarda.

Agora é a hora de ver todos os planetas em contemplação espiritual! E entender a grande escola que é o sistema solar: o grande encadeamento evolutivo universal.

sábado, 21 de março de 2015

Inquisição de Curandeiros em pleno Iluminismo



O historiador Thimothy Walker, da Universidade de Massachusetts-Dartmouth, andou pelas terras de Portugal coletando dados para o seu doutorado sobre a caça aos bruxos curandeiros à época da inquisição portuguesa no auge do século XVIII. 

O século XVIII, pessoal, foi o século do Iluminismo, da Enciclopédia, de Voltaire que dizia defender até a morte o direito do outro falar embora não concordando com ele. Havia visto há pouco Descartes separar igreja e laicos no pensamento do método, Newton com um galo na cabeça pela maçã que o fez ter a intuição da gravidade. Mas, claro que isso se deu para além da península Ibérica, porque nesta, a cauda da inquisição ainda deixava escombros. 

É isso que vai mostrar Walker em seu livro Médicos, medicina popular e Inquisição: a repressão das curas mágicas em Portugal durante o Iluminismo. Tendo passado oito (!) anos lendo processos de inquisição, descobre o forte conluio que a medicina oficial firmou junto à igreja a fim de desacreditar as práticas e punir os praticantes da medicina popular. Diz-nos o pesquisador:

"Acreditava-se que algumas pessoas nasciam com um dom, uma capacidade divina de curar pelo toque das mãos. Eram os chamados saludadores. Eles usavam suas mãos para ‘extrair’ a doença ou o que quer que fosse que estivesse a causar sofrimento ao paciente. Por isso, os saludadores preocupavam muito a Inquisição. Pois, teologicamente, havia um entrave: ou essas pessoas estavam sob forças demoníacas; ou Deus poderia, quem sabe, estar mesmo atuando por meio delas. Isso seria um problema e tanto para a Igreja, pois naquela época ensinava-se que a era dos milagres já havia terminado. E a existência de pessoas comuns com capacidade de cura era algo que contradizia a ortodoxia da Igreja." (em entrevista ao Ciência Hoje)

Vamos aprofundar um pouco a questão de "Deus poderia, quem sabe, estar mesmo atuando por meio delas". 

A base do cristianismo oficial é que Deus se manifestou em Jesus e, por isso, ele conseguiu curar e, o que estava constantemente associado ao ato de cura, perdoar pecados. Se um qualquer pudesse fazer esse mesmo ato, Jesus poderia não ser mais que um simples mortal, portador de uma brecha para divindade como qualquer outra pessoa. Claro que sua superioridade moral ainda valia demasiadamente, mas eram os milagres que deram à sua palavra a força de Deus. Se Jesus fosse apenas o mais bem dotado de todos os seres humanos que já passaram pela Terra, diferindo-se de nós apenas de forma quantitativa e não qualitativa, isso seria o fim de uma autoridade que descolava a Igreja do mundo secular, deixando seu poder fragilizado. 

As conseqüências para essa fragilização do poder espiritual não se daria apenas em termos de política e economia, mas dentro dos próprios valores morais que sustentavam as pessoas, bem como na dissipação das angústias sobre o destino último da vida que, rezava o catecismo, seria ao lado daquele que, tendo vencido a morte, era o dono do Céu em que se findavam todas as misérias que o mundo material outorgara. 

Todavia, é exatamente esse desfecho que o Iluminismo vai lograr alcançar na secularização do mundo. Destruindo o poder intemporal da igreja e dos nobres, as pessoas terão o terrível desafio de encontrar o sentido da vida em outro lugar que não no Céu ao lado de Jesus. Terão de fundar o Reino dos Céus na Terra, pelas próprias mãos. É essa a proposta da democracia. Será a luta dos socialistas. Será a busca dos liberais. Com que armas? Nada que escape do humano. Nada que lembre os sacerdotes ou a natureza hierarquizada da realeza. Tudo que seja próprio do homem: a luta, o trabalho, o debate, o diálogo, a razão. Nada de dádiva, nada de dom, nada de messianato. 

É nessas últimas negações (contra a dádiva, o dom e o messianato, acresça-se a esta lista o mediunato) que o Iluminismo será também um inquisidor da medicina popular. É essa obra que eu ainda estou para encontrar. Precisamos de alguém de fôlego e coragem para construí-la. Sobre isso falarei em outro post. 

***

Ficam mais alguns lugares em que você pode ver mais sobre o estudo que citei:

  • Entrevista concedida à Agência Fiocruz de Notícia: aqui.

  • Entrevista concedida ao Ciência e Letras: