Convidado para palestrar acerca das concepções de morte nos diferentes contextos históricos, filosóficos, morais e religiosos, entendi que a melhor forma de abordar este tema seria falando sobre mitologia.
Deixo ao final o link do áudio da palestra, que acabei tendo que complementar em um segundo momento, em casa, porque não consegui finalizar a contento o tema, cortando partes que considerava fundamental expor.
Por que a mitologia para falar da morte?
A questão não é só por que a mitologia, mas sim por que o objetivo era que abordasse esses múltiplos contextos que praticamente tocam quase todas as dimensões da forma de nós humanos conhecermos o mundo. A mitologia, contrariamente do que se entende no senso comum, não é superstição, mas a matéria-prima simbólica da qual extraímos a nossa grade de compreensão do mundo. Se não tivéssemos nos aventurado em qualquer narrativa mitológica, embora seja inconcebível essa hipótese pela irrealidade histórica dela, não teríamos tido força cognitiva suficiente para formular qualquer outro discurso. As imagens que nascem da mitologia povoam nossa mente. As imagens que povoam nossa mente nos fazem reconhecer a mitologia. Mas, apenas o casamento entre a narração e as imagens da nossa mente que dá certo é que sobrevivem no tempo. Gilgamesh, mitologia babilônica, tem cinco mil anos! Os mitos tem história. Vê-se que são retalhos ou superposições de histórias, com várias edições. Tratam de teologia, pois descrevem nossa relação com divindades; de filosofia, já que apontam ações organizadoras da nossa forma de ver o mundo; de moral, uma vez que norteiam condutas práticas de relação entre os seres humanos, e às vezes de povos, no cotidiano. Kardec decidiu não se aprofundar nestes assuntos, preferindo sempre as construções racionais dos modernos, embora tenha feito ensaios em O céu e o inferno e em A Gênese. Mas, hoje e cada vez mais, estamos vendo o quando precisamos reler as mitologias, as resistentes à corrosão do tempo, para nos entender. Assim, seguem minhas falas:
Por que você não quer partir? Por tudo que eu construí aqui e por tudo que eu ainda tenho para construir. Mas, do outro lado ainda há vida. Uma vida completamente nova. Eu queria ficar com os meus. Há seus também por lá. Pode ser consoladora a ideia de que há uma família que ultrapassa essas nossas vivências na carne, mas as experiências na carne nos marcam de uma forma que parece a ferro e fogo. Você já tentou fazer feliz uma mulher? É a coisa mais difícil que se pode tentar. Nunca se sabe ao certo o acerto. É um jogo de surpresas. Mas, quando se consegue, é prazeroso para os dois. Tanto mais quanto mais difícil. E criar uma criança? Querer o bem dela diuturnamente. Se enfurecer de tanto que ela não segue suas ordens, mas se felicitar por vê-la crescer exatamente nesse processo de te desobedecer, por estar encontrando o espaço dela no mundo. Pois bem, esses esforços que fazemos não dão apenas sentido a nossa vida, dão cor, sabor, textura, substância, nos fazem, necessariamente ter raízes. Depois de todo esse processo trabalhoso, oneroso, vem a morte e quer nos arrancar. Mas, você poderá continuar tendo contato com seus amores, mas de um outro modo. Que modo você fala? Com a invisibilidade e a intangibilidade próprias dos Espíritos errantes. Teve uma vez que fiquei afastado de meus filhos por causa de um exame que tive de fazer. Haviam me dado uma substância radioativa e orientado para se afastar deles. Decidi mudar para a casa de minha mãe, para nem correr o risco desse irradiação os fazer qualquer mal. Olhava-os pela câmera do celular. Cheguei até a ir de carro lá, vê-los de longe. O menorzinho só ficava olhando o carro, sem entender porque não estacionava. O maior queria ir para o carro brincar. Para o menor, eu estava invisível, para o maior, intangível. Sabe o quanto isso me feriu? Esse apego é o que mata! Esse apego é o que salva, meu amigo. Se não fosse por ele, eu seria mais um perdido nesse mundão. Todo esse esforço por sair de mim, amando, me tornou um ser tão singular, com sentimentos tão próprios, na mesma medida em que ia vendo a singularidade daqueles seres amados para mim. Um dia fiquei com uma menina que se enamorou por certa beleza que enxergou em mim e admirava certa força que via em minha fala. Dias depois ela já estava com outra pessoa. O que eu fui para ela? Mais um com certa beleza e certa força. Todos os dias eu conheço cada vez mais a beleza da minha esposa e a força de meus filhos. Todos os dias eles se tornam cada vez mais especiais para mim, insubstituíveis. Sempre amei meus pequenos com toda a devoção, e se eles tivessem morrido recém-nascidos, eu teria sofrido, como sofri com o aborto espontâneo que sofremos na primeira tentativa. Mas, quando os temos nos braços, vemos saindo de nossos braços, andando, correndo, depois pulando, enfrentando as águas, cada conquista dessa vai tornando-os tão mais especiais que a possibilidade da perda só sinaliza a profundidade da dor que seria.
Melhor seria não os ter.
Bobagem! Deixa que eu os tenha e que sofra a possibilidade de não mais os ter. Essa é a nossa sabedoria, irmão.
Sabedoria da dor.
Sabedoria da vida. A vida que vem com o que tem de bom e de finito.
Voltando, então, para a tentativa de lhe esclarecer: não é finito.
Voltando para a tentativa de lhe fazer enxergar: a noção de infinito tem gosto de teoria para quem ainda sente o peso da carne, não consola tanto quanto o cheiro das pessoas que amamos. Consola? Tem lá o seu consolo. E não repreendo você por estar me conduzindo nessa teoria. Devemos nos esforçar para amplificar o amor, mostrar o quanto o túmulo pode não ser o fim. Só a eternidade para dar um sentido para o finito. Só não devemos nos enganar e achar que esse sentimento poderá ser enfiado na consciência de quem vive intensamente a carne. E eu não estou falando de concupiscência ou luxúria, mas apenas de seres sencientes. Ah! Saborear o outro! Quem nunca teve isso no corpo, pouco poderá entender o que falo. Quem se escondeu no deserto para não sofrer me vê falando uma língua estranha. O peso dos corpos sobre o seu noites a fio, até o dia em que você está tão leve e quebradiço que o próprio filho pode te carregar.
Sua tristeza lhe corrói.
Deixe de ser criança. Isto é o próprio processo de morrer. Ser corroído até não sobrar mais nada, apenas este Espírito desencarnado que você prega. É doloroso? Sim. É angustiante? Sim. Mas, é também a vida. Todos esses sentimentos que lhe falei fazem parte do corpo do qual vou sendo expulso. Não me arrependo de nada, eis tudo o que é bom! Se as lembranças forem comigo, menos mal. Se eu puder voltar para vê-los, tanto melhor. Mas, faz parte do corpo o apego. Corpo do pai nos braços do filho: que o pai voe enfim, e o filho o assimile. Eis nossa sina de ser adubo e horizonte, os dois, para os que ficam.
O Incal é uma história em quadrinhos de 1980, idealizada pelo cineasta e psicólogo chileno Alejandro Jodorowsky e ilustrada por Moebius que devorei em três dias.
Conta a história da salvação da humanidade a partir de um único ser humano tosco, menor, sensual, fraco, inquieto, impuro, porém sem maldade. Sedento de amor carnal e de sentir a realidade. Esse é Jonh Difool.
Sua profissão era detetive, porém era medíocre nela. Em nenhum momento é mostrado Jonh Difool exercendo seu ofício de investigador. Contudo, é ele, e ninguém mais, que chega ao fundo dos mistérios do universo, mesmo se esquivando o tempo todo dessa busca.
Tudo começa com uma mini-pirâmide que termina em suas mãos por caminhos misteriosos. Um monstro extra-terrestre a entrega - para Jonh Difool especificamente - antes de morrer. Esta mini-pirâmide é o Incal luminoso.
O Incal é portador de dons divinatórios e curadores. Todos o querem para domínio do universo, mas o próprio Incal vai forjando estratagemas para vencer o principal e verdadeiro inimigo que se aproxima: a Escuridão.
A outra metade da pirâmide, o Incal negro, foi dominada pelos humanos que se devotaram à Escuridão. Mas, logo é resgatado, e não apenas a fusão da luz com a sombra, mas também a sua melhor possibilidade de expressão através do andrógino perfeito permite, em sucessivas descobertas místicas, a batalha final.
Assim, Jonh Difool sem querer e sem saber vai conhecendo a existência da mais pura beleza e verdade semeada no íntimo da feiura, do grotesco, do asqueroso, do pútrido. Cada batalha que a história narra é a busca do equilíbrio das contradições, mas sempre, isso é imperioso explicitar, a partir da humanidade demasiadamente humana de Difool.
O andrógino perfeito, Solune, por exemplo, que em certo momento passa a ser a manifestação perfeita da consciência do Incal, é filho de Jonh Difool com uma espécie de semi-deusa, Animah. Mas, esse amor não é sublime. Ela havia se disfarçado em uma prostituta para poder gerar Solune. O desejo por Animah, todavia, passa a animar a motivação mais forte no coração de Jonh Difool e sempre retorna como o único argumento possível para que este enfrente os desafios da jornada.
Ao final de toda a história, quando morte e destruição já haviam se espalhado por grande parte do universo, e a Escuridão prosseguia seu domínio com fúria, o andrógino perfeito, médium do Incal unificado, é elevado ao lugar do imperador/triz do universo, profetizando o único jeito de derrotar a escuridão: que a galáxia sonhasse. Todos os habitantes do cosmos deveriam entrar em sono profundo a fim de fornecer a energia psíquica para o enfrentamento final com a escuridão. Um comandante solitário de um planeta qualquer reclama dessa loucura:
- Justo quando o inimigo está mais perto, ele vem pedindo para dormir. Está louco!
- Mas, chefe, desta vez, talvez sonhar é que seja revolucionário. O planeta que deu o maior exemplo de que isso seria possível era aquele onde viviam crianças, há muito recebendo as lições de sábios, os Arath, que um dia tiveram a missão de guardar a entrada para os mistérios do sol interior, em meio à floresta de cristais, destruída pela encarnação maligna da tecnociência.
Aqui é preciso um aparte. Já não dá para vislumbrar a solução final? Quando todos os sóis tiverem desaparecido, que luz restará?
Jonh Difool, que irremediavelmente não se entregava para a saga da salvação da humanidade, é, de novo e mais uma vez, colocado como único possível de finalizar a missão de adormecer o universo. Faltavam 78 bilhões de seres para cair no sono, e quem eram eles? Seus filhos. Explico.
Há não muito tempo, Jonh Difool havia se entregue em uma experiência idílica com uma entidade chamada Protogenitora. A cada cinco mil anos ela acasalava com um grande guerreiro. O Incal fez com que Difool vencesse a competição e fecundasse a Protogenitora. Contudo, de fato apaixonada por Difool, ela se desfaz em ódio e rancor quando este a deixa por Animah. Todos os filhos da protogenitora, 78 bilhões!, neste planeta distante que Difool estava fadado a converter para o sono salvador, representavam o que havia de pior em Difool e numa mulher traída. O penúltimo desafio de Difool para sua autoiluminação é ter que ver os filhos do rancor e do amor traído que gerou, a imagem e semelhança de sua sombra.
Faltando pouco tempo para o ocaso, iluminada pela verdade que soprou ao seu ouvido através de um pássaro, Deepo, aquele que sempre mergulhou para salvar Difool nas horas mais drásticas, a Protogenitora entende que o que ela amou em Difool nunca foi o próprio homem, mas a luz que havia nele: o Incal.
Quero que você perceba o quanto o Incal vai parecendo um pretexto material para ir abastando todas as arestas e dissipando todas as discórdias. Sua força inicial, gerada da união do luminoso e do sombrio, continua, ininterruptamente provocando uniões.
A Protogenitora sai do ninho em todo seu esplendor, apazigua seus filhos, pede-lhes que escutem ao pai, e este os adormece. Até mesmo as raças que foram subjugadas como escória nesse planeta, por terem perdido a batalha do acasalamento, são reintegradas no chamado da Grande Mãe.
Tudo está pronto para a batalha final. Os grandes sábios Arath conduzem as mentes dos setes escolhidos (Difool e seus amigos que lutaram bravamente até aqui) para o embate último com a Escuridão. Ela desperta o pior pesadelo deles. O único que não foi dominado por esse encanto foi nosso detetive medíocre. Explica o Incal que a experiência de acasalamento com a Protogenitora havia deixado o detetive Jonh imune. Mas, talvez é que o pobre já vivesse no pesadelo, no pior inferno do giro da vida, aquele que o fazia ser escravo da sensualidade perpetuamente. De todo modo, expulso o Incal do corpo de Solune, o andrógino perfeito, assume o ser místico o corpo de Difool, o homem insaciável. A partir dele as últimas rebeldias das almas da pessoas se apaziguam:
- Parem de lutar contra os monstros dos pesadelos. Aceitem-nos, eles são apenas as partes de si mesmos que vocês tem medo de enfrentar. Transformem-nos. Cada horror contém uma semente positiva. Um pesadelo não passa de um dom disfarçado.
E assim, Difool, possuído pelo Incal, faz perceber, a harmonia por trás da tecnociência, as energias criativas por trás da violência, o correto domínio da realidade por trás da morte, a interminável totalidade por trás da individualidade, o efêmero rumo ao eterno pelas vias do que parece um corpo decadente, enfim, o assassinato do amigo que entrega seu pescoço ao lobo voraz como a doação suprema em prol dos outros.
Após estas reconciliações, o Incal luminoso é dominado pelo negro. Cada um se entrega à sombra, em chamas. Menos o ego de Difool, que se torna a eterna Testemunha do Ser supremo, da Luz Imortal, Orh, de onde tudo provinha: o Incal, a Escuridão e a aventura épica de toda a reconciliação.
- Não sabia? O núcleo da Escuridão é feito de Luz. (...) Translucidez é minha última mutação.
O Ser supremo transfigurado na face de um velho áureo se torna infante de novo e permite Difool voltar no tempo, lembrando de tudo o que viveu.
Como viver essa nova velha vida, então? Eis algo que realmente deveríamos investigar, detetives medíocres que somos da existência.