sábado, 26 de agosto de 2017

Diálogo sobre um jovem pensando em suicídio à mesa mediúnica

[Nas duas mediúnicas anteriores, falei diretamente com o obsessor. Esta sessão ele não veio. A mão do médium ficou inerte por um tempo até vir dois ou três abalos, então alguém se manifesta.]

- O Espírito com que você se comunicava não veio. Estou em nome da família espiritual do jovem que você assiste a fim de lhe fornecer esclarecimentos.

- Queria primeiro agradecer pela disponibilidade. Eu entendo que todo indivíduo encarnado possui uma família que o acompanha. Mas, poderia me falar um pouco mais sobre a magnitude dessa família. 

- Você deve entender da mesma forma que nenhum indivíduo surgiu ao nascimento que vocês presenciam. Desta família que ladeia o rapaz, não sou nem o mais novo, nem o mais velho. Há os mais novos que se uniram à nós, que são os que mais sofrem com as dores de nossos irmãos. Há os mais velhos, cuja experiência nos passa uma serenidade de saber que o bem sempre ganha ao final. Situado entre os extremos, já tive meus momentos de chorar e me desesperar em demasia pelos meus amores. Venho enxugando as lágrimas e perguntando mais aos nossos superiores. 

- Você fala como se houvesse toda uma hierarquia e de fato uma família quase como que consangüínea no plano espiritual. Nunca pensei ter esta força tangível estes laços. 

- Na matéria, o sangue nos aglutina, mas muitas vezes é um força odiosa e pouco querida que nos amarra. Alguns desafetos estão sob o mesmo teto, e isso é uma infelicidade constante. Todavia, há o dedo de Deus, que sendo Pai de todos, quer que todos se entendam. No espaço, por outro lado, soltos do peso da carne, desobrigados das exigências sociais que nos unem para a sobrevivência, os laços dos Espíritos são feitos de afeto, e, por isso, ainda mais tenazes. O amor que parteja cada membro dentro do nosso círculo nos faz ter uma devoção por vezes doce, outras vezes angustiante de seguir suas aventuras na carne. Por ora, estamos constritos pelo destino do nosso amado. 

- Perdoe-me evocar esta possibilidade, mas o que acontece quando algum de vocês falham, digo, por exemplo, nestes casos de morte por suicídio. 

- Ah! Amigo, são tantos os motivos que conduzem uma pessoa a desertar da existência como a forma de elas chegarem a nós. No geral, um desespero horrendo acompanha a mente que, aflita, rasgou suas promessas e planos de antes de ingressar na carne. Alguns descrevem agressores que pululam ao seu redor, outras vezes é apenas um em particular. Todavia, o que mais me compadece nas cenas que vejo dos que se enveredam no abismo do suicídio é o trauma íntimo da experiência. Toda a lógica do universo parece se estilhaçar na mente, nada faz mais sentido. Todas as potências do espírito estão nele presentes, mas sangrando. Se levantar é um suplício, pior é voltar a se sentar porque já não se vislumbra a possibilidade de andar. E quando se anda, marcha trôpega, cada passo evoca uma experiência de dor. Que importa quem berra ao lado impropérios, insultos? A perda do sentido é a violência mais assassina que existe! Se pensava não existir sentido em vida, tão pouco a morte revelará qualquer luz.

- O que é feito para ajudar estes irmãos?

- Tudo o que podemos, e não é pouco. Mas, nenhuma força pode superar a vontade do Espírito. 

- Nossa ciência anda falando da força da química cerebral. 

- Com a visão fixa apenas na vida atual, a química cerebral e a genética parecem dois monstros indomáveis a determinar a ação do indivíduo. Quando nos afastamos do momento atual e enxergamos a solidariedade entre as vidas, chega o instante de termos a visão clara dos motivos que costuraram os desfechos atuais. Se o universo é obra de Deus, a vida de cada Espírito é obra própria. De forma nenhuma quero desmerecer os avanços que o Grande Pai permitiu que a ciência tivesse para ajudar os cambaleantes. O que devemos é exaltar a força de cada filho de Deus de alcançar a iluminação. Se você pensar bem, não faz o menor sentido culpabilizar a química ou a genética. Quanto mais o homem se aproxima destes temas, mais eles escorrem pelas próprias mãos. Esquecem, então, que é no próprio homem que se encontra a chave de seus males. Nele e em Deus. Nestes dois pontos juntos. Homem e Deus, religados. 

- Você pode me descrever algum resgate de uma alma querida que chegou à vocês nesta situação em que falamos?

- Eu chorava em meio ao escuro de tudo. Depois de anos que meu amado esteve perdido em si mesmo, olhos opacos para qualquer coisa, uma faísca se acende em seus olhos. Era Deus que germinava em sua lembrança. O amor que rompia seu encastelamento. Já não falava, já não fitava qualquer semblante há tempos. Sei, porque frequentemente me permitiam ir a ele. Encontrava-o, tomava-o nos braços, derramava lágrimas sobre seu corpo, e ele não me via, não me sentia, não me retornava. Naquele dia, sua mão encrespou na minha. Eu me assustei. Uma lágrima escorria de um olho. Refletia a luz distante que vinha da zona de socorro onde eu estava hospedado. Uma oração sincera nasce de meu peito. Faço-me luz envolvendo-o por completo. Eu e ele éramos um, indiscernível naquele momento. Pela primeira vez sinto atravessar de novo seus sentimentos, como cavando os escombros que o asfixiava. O calor do seu corpo é retomado, e algumas palavras emergem de sua boca: "a-ju-de-me... D-e-u-s". Seu corpo se faz leve como vento, o meu volita junto ao dele e, em um pensamento, chego ao hospital do acampamento de socorro. Evoco vários amigos. Deito-o sobre uma maca. Os médicos e enfermeiros cercam-no e assumem os cuidados. Aproximo-me de alguns da nossa família e choro convulsivamente todo o agradecimento ao Pai que estava no peito. Damo-nos as mãos e passamos a orar pela sua recuperação. Em breve estaria entre nós. 

- Nem sei o que dizer. Essa cena me emocionou muito. Você é o mesmo daquela outra comunicação?

- Não. Sou mais um. 

- Quantos são, esta família?

- Quantos ela precisar. Somos. 

- Posso divulgar esta conversa?

- Não se esconde a luz sob um alqueire, mas põe-na ao velador, para que ilumine a todos. 

- Grato.

- Eu que o sou. 


segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Carregar o pai nos braços

A experiência de carregar o corpo desfalecente do pai nos braços queima a pele do espírito. Foi assim comigo.

Era uma manhã comum, em que madruguei estranhamente junto com ele e tomei seu café amargo. Fui pegar o carro na garagem quando minha irmã chega aflita anunciando o mal estar dele. Nunca nem lhe vi chorar uma lágrima sequer, sempre ativo e buscando resolver os problemas imediatos da existência. Raramente alguma conta se atrasava. Raramente nós nos atrasávamos em uma reunião. Parecia uma viga mestra entre nós. E, naquele dia, encontrei-o pálido sobre o sofá de espera do condomínio.

Carreguei-o, sofregamente, ao pronto-socorro; atordoadamente, ao velório; melancolicamente, à sua cidade amada. Ouvi as histórias de quem, como médico, ajudou. Segui a procissão que o enterrou no cemitério do lugar. Desde, então, seu Espírito me visita aqui e ali. Estou tendo menos consciência dessas visitas na medida em que venho me tornando ele: médico, pai, sem deixar atrasar os compromissos da casa.

Mas, aqui e acolá um sonho estranho vem, a guarda baixa, e a melancolia aperta. Diz o espiritismo, essa religião dele e minha, que a melancolia é uma saudade da liberdade que o Espírito gozava antes do nascimento na carne, uma vontade de voltar à liberdade, uma esperança que retornará. É sempre, portanto, uma ausência doce que acalentamos. Desse jeito que a sinto, também é a ausência dele.

Ontem, tive a sua imagem onírica bradicárdica sobre a cama em que assistia aos jornais. Eu prescrevia em seu consultório um soro para uma criança doente. O raciocínio pesava, a mão era lenta até que recebi a notícia de que passava mal. À época de sua verdadeira morte, não sabia as fases do morrer como sei hoje. Já conto algumas tantas pessoas que assisti o atravessar. Vivi o silenciamento de cada som do corpo, e dos monitores. Parece que estes sonhos que me devolvem para aquele dia no sofá fazem-me ter consciência dos sons que se calaram, e que não sabia existirem.

Outros sons são presentes. E como disse, parecem que vão se tornando menos conscientes na medida em que vão se reencarnando, em mim. O amigo que passar um pouco do dia em minha casa me verá assobiando para os filhos, roncando na sesta, 
com o lençol nos olhos, após ter lido algo, ou ainda, deixando que os meninos batuquem na minha barriga. É ele. 

Se há algo que me faz compreender a relatividade do conhecimento humano em relação à perspectiva em que se encontra, esse algo é a experiência que tive de pai. A partir do que vivi quando criança, só posso querer ser mais, e, no muito, venho conseguindo ser cada vez mais quase igual. Que posso julgar daquele que não teve essa presença? É um esforço inaudito de construir uma forma de existir através de palavrórios das escrivaninhas de especialistas. Que posso julgar daquele que, com essa ausência, não acredita em um Pai Maior? É a não conexão com algo que nunca existiu. Pai e Deus são experiências, no finito, de encontro. E o desejo, no infinito, de reencontrá-los.

domingo, 20 de agosto de 2017

O amor comeu o meu nome e deixou nele pai

É a primeira vez que venho ao meu blog para falar deste assunto. Meu filho mais velho, mas ainda muito pequeno, tem esta condição neurológica a que chamam de autismo. É leve. Algumas singularidades muito especiais apontam para o diagnóstico. De todo modo, as duas questões que mais deve pesar sobre os pais destas crianças já nos tomam: o esforço de estimulá-lo ao máximo e o medo de ele ser rejeitado pela diferença. 

Revezamos-nos, eu e minha amada, de tal forma que sempre há um de nós presente, e à noite, os dois. Diverti-lo com qualidade terapêutica é uma busca diuturna nem sempre bem sucedida. Algumas vezes é o cansaço que bate, outras é o desejo de ser casal, e outras poucas é a necessidade de estar sozinho. 

Alegria é o que ele não nos cansa de dar. E, sentido pra vida. Sossego, nem tanto. Lembro que quase tudo que fiz até antes dele foi regido por muitos sonhos, excitação e pouca consecução. Do que venho mantendo até agora como os projetos sobre os quais posso falar em paz com Deus, há um de palhaçoterapia, há a medicina, e há a família. 

O de palhaçoterapia, nem sou tão assíduo na contribuição, mas já dediquei boa parte da filosofia que estudo para o engrandecer. A medicina é minha relação de amor e ódio. Na verdade, não gosto muito dela, mas, justiça seja feita, é a atividade que me permite estar diante do sofrimento humano, semanalmente, com alguma ferramenta útil para diminuí-lo. Todavia, a família é um caso à parte.

A família primária sempre foi esse misto de "não escolhi nascer aqui" e "que bom que vocês existem". É onde já pude gritar e ser amado, brigar e ser querido, fugir e ser aguardado.  E olhe que nem sou tão rebelde. Inimizades de berço foram desfeitas, admirações foram plantadas, saudades cresceram. O que já passei é o que quase todos passaram. E, por tudo, sou grato. 

A outra família, o núcleo que venho construindo, não foge desta intensidade de poder se revelar em carne viva, nas próprias contradições, em meio ao amor. São experiências que não se pode viver em qualquer lugar. Contudo, penso que a família possui um elemento especial de proteção divina para suportar os choques de egos. Se não, deveria ter. Só Deus para fazer sobreviver ao encontro de pessoas despidas pelo cotidiano. É, de fato, para mim, o projeto mais meritório que poderei entregar a Deus, após selada esta vida. 

Neste, meu filho trouxe um capítulo bem especial. Imagine o que é inclinar-se sobre o útero que acolhe corpo'ealma, ver este Espírito nascer para a Matéria, acompanhar suas conquistas diárias, tê-lo nos braços, levantá-lo do chão, sacrificar o sono nas febres e nas asmas, e estimulá-lo a ganhar o mundo. 

O projeto de ser pai é um que abraçamos em uma noite amada, antes mesmo da noite da paixão. No escuro da nossa consciência, dorme a lembrança de quando recebemos de Deus a incumbência de cuidar de alguém que não é nosso e nunca será. Sabendo que a vida dele corre risco se não estivermos por perto. E que, quando não mais o podermos proteger, é que será o dia de ele ir para longe.

A família, eu dizia, é esse misto de "te quero" e "não te quero". Sinto que ser pai é esse misto de "é meu" e "nunca será". O símbolo de São José se repete em cada paternidade. Que deus cada menino guarda? Sentar no silêncio da marcenaria do dia e olhar que é preciso protegê-lo do mundo. A porta de grades, um dia ele saberá abri-la, cada cadeado. O mundo será pequeno para sua ânsia. 

- Mas, menino, volte aqui e venha tomar café! Ainda sou seu pai.