domingo, 26 de fevereiro de 2017

Ascendência da Pomada do Vovô Pedro





Havia uma passagem que sempre estranhei nas histórias sobre Jesus:

"(...) Enquanto eu estiver no mundo, eu sou a Luz do mundo. Depois de Jesus ter dito isto, ele cuspiu no chão e fez um pouco de lama com a saliva. Depois passou a lama nos olhos do cego (...)" (João 9:5-6)

E fez-se a luz para o cego!

A interpretação canônica vai fundo na simbologia e diz que Jesus aqui imitou o gesto primordial de seu Pai que pariu o mundo no fazimento da luz. Quando Adão foi gestado, ele nasceu do limo, do barro, da lama. Ele estava, portanto, submerso na escuridão da pré-criação, cego, inexistente, e da lama passa a enxergar. 

Entre os espíritas brasileiros, e para os simpatizantes, algo que se afilia acontece. É uma pomada singela que promete servir para amenizar vários males. Ela tem cheiro de ervas e uma consistência mais viscosa do que as pomadas comuns. Conta-se que a receita é mediúnica e, se revelada, perderá o efeito*. É que o Espírito, o vovô Pedro, quis que ela fosse gratuita para todos, seja porque, em Espírito, já não precisa de dinheiro ou fama, seja porque o restabelecimento da saúde deveria ser um bem não capitalizável. O fato é que nacionalmente ela é reproduzida por voluntários que a fabricam em prece. A posologia é fácil: "passar na zona afetada como se desse um passe". 

À época de Kardec, soube-se de uma pomada assim, mas de receita livre. Em novembro de 1862, a médium Ermance Dufaux permite a publicação dos ingredientes de um ungüento que um Espírito havia lhe passado. Prometia, assim, um efeito extraordinário de sanar vários males. 

Eram grãos, tubérculos, raízes misturados em uma cera. 

A minha hipótese para essa panacéia não se reduz ao efeito placebo. Como algo que cumpre o que promete, ao ponto de atrair novos voluntários e usuários, serve para tão grandes aplicações? A medicina ocidental oficial geralmente nos traz remédios com um espectro de ação muito obtuso. Penso que o efeito não está nos ingredientes em si, mas que servem como meio excelente de acumulação e propagação de fluidos de cura. Como uma pilha a acumular carga, a pasta absorve as preces dos voluntários e se potencializa com a prece do enfermo. Os componentes lançam ao organismo todo esse conjunto de fluidos curadores e, daí, provocam as alterações celulares necessárias para o restabelecimento do equilíbrio. 

Antropologicamente é um fenômeno maravilhoso, como tantas outras formas de a comunidade tentar restabelecer a própria saúde por meios não oficiais. Imagine milhares de pessoas devotadas religiosamente a fabricar um bem gratuito para todos os enfermos. A simbologia desse gesto já dá o que pensar.  

Como acontece na base da crença espírita sobre os milagres do Evangelho, vê-se que as ações de Jesus podem ser reproduzidas quando as pessoas, com fé, se irmanam a mover montanhas. É a herança que Deus nos deu de fazer brotar luz da lama. 


sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Não acredito mais em Deus



Foi o que um jovem me disse numa conversa privada. Nem desenvolveu muito os motivos, mas completou logo em seguida que carregava o crucifixo consigo por tudo o que ele significava em sua história de vida. 

Perguntei desde quando ele havia deixado de crer. Foi acontecendo aos poucos, acelerando a partir do ensino médio, se aprofundando na faculdade de medicina.

Eu também não acredito mais em Deus, digo, no deus da minha infância. Lembro quando desenhava Sua silhueta em cima de nuvens resplandecentes nas folhas de ofício da sala de alfabetização. 

Junto ao Centro Espírita, as evangelizadoras me falavam o que significava onipresença. Então, eu ficava brincando de imaginar um homem múltiplo, um homem em infinitos lugares. Mas, por mais que eu multiplicasse essa presença ao meu infinito, o universo ainda tinha vazios. Seria por onde entraria o mal?

Na adolescência, conheci a metáfora de Kardec: um fluido que abraçava tudo, sem centro de massa concebível. A múltipla presença do homem que imaginara havia coalescido. Era uma coisa só. Mas como entender onde estaria sua atenção? Inconcebível. Como ele pode me ouvir, ouvir a prece de um plutoniano e as preces que ecoam em todas as galáxias, e mesmo até em outros universos possíveis. 

O que mais feria meu raciocínio sobre Deus, todavia, era menos a sua presença, que sempre senti, do que a sua onipotência aliada incondicional de sua bondade infinita. A gente vai crescendo e entendendo o corpo caquético das crianças na miséria. E, cá entre nós, dá um pouco de vergonha dizer que há uma justiça reencarnatória por trás disso. Porque nunca consegui responder o enigma da possibilidade do mal em um universo criado pelo bem infinito. 

Kardec ainda nos propôs ser um viés de uma visão parcial. O conjunto é bom. O mal: uma ausência de bem. Uma ausência de enxergar o que há de bom por trás, também. Contudo, cada vez mais, parece ser outra coisa. O mal: o bem ausente. O mal, quando o bem se ausenta. 

Deus, Aquele que venho conseguindo entender, me parece, perdoem-me a blasfêmia, um Deus de guerra. Ele forja combatentes do bem. Incita-nos a luta contra o mal. Deseja que experienciemos o amor que há no final da batalha, o amor que há durante a batalha, o amor que imperava antes dela. Um Deus de amor, pois e também. O meu amor pelo estudo da história é esse: entender o que houve que destronou o amor onipresente, o que houve no coração humano que permitiu o surgimento do mal. 

Jesus dizia: "nem sempre foi assim". Dizia depois: "foi pela dureza de seus corações". Uma dureza que mostra a fragilidade maior: os nossos corações.