MÉDICO: Olá, Allan. Ontem atendi uma paciente que me deixou encucado.
Idosa, com depressão de longa data, vem à emergência com agitação aguda mal caracterizada por seus familiares. Como ela já estava em acompanhamento psiquiátrico apenas solicitei alguns exames e prescrevi um tranquilizante. Mas, o que me deixou encucado foi o motivo da agitação que a idosa disse, de forma bem clara, detalhada e consciente, entre uma "crise de agitação" e outra:
Que estava sendo perseguida e possuída por dois espíritos malignos; um era de um velho sujo e o outro era de um louco, que não saía de perto dela.
Sabe me dizer algo sobre a relação entre doenças psiquiátricas e o espiritismo?
ALLAN: Partindo da cosmologia a que me filio, os espíritos dos seres humanos sobrevivem à morte e apresentam uma vida paralela a nossa que mantem contato constante através da comunicação e influência via pensamento, que não está limitada ao corpo físico, mas se irradia pelo espaço.
O indivíduo não muda da água para o vinho. Continua com os mesmos projetos e anseios de antes. Se ele apresentava projetos ligados a assuntos espirituais, mais fácil será de ele se engajar nalgum projeto que envolva a ajuda para as pessoas encarnadas encontrarem o caminho do espírito, da sabedoria, da iluminação - a vitória sobre as angústias da vida. Se foi muito apegado aos afazeres materiais e à mera sobrevivência, terá dificuldade em se engajar em algo que não seja material e, diante da liberdade e invisibilidade relativas, poderá se dedicar a projetos odiosos que podem prejudicar muito os encarnados.
A vingança é um deles.
E a maioria do que chamamos de obsessão* nasce de relacionamentos quebrados que o espírito desencarnado entende merecer vingança.
MÉDICO: Como cuidar disso?
ALLAN: Tem que cuidar dos dois lados. Nos centros mediúnicos espíritas, os espíritos perseguidores devem ser esclarecidos. Nas sessões de terapia, a pessoa perseguida deve ter suas fragilidades psíquicas trabalhadas a fim de que tenha mais segurança em se conduzir sem eles. Por vezes há uma simbiose doentia entre ambas as partes formada por complexos de culpa e inferioridade.
É como se ela não quisesse ficar boa!
Os antidepressivos têm a função de ajudar a pessoa a se abrir para novas perspectivas que a terapia há de conduzir. Os antipsicóticos, de diminuir no cérebro a conexão entre perseguido e perseguidor permitindo àquele mais tempo de sobriedade para elaborar as questões que fortaleçam seu espírito e o permita se libertar dessa simbiose.
Chamo particular atenção à relação simbiótica. Ela é um dos motivos principais pelo qual a pessoa se torna refratária ao tratamento. E Freud não deixa de ter razão ao tentar resolver esses motivos procurando laços afetivos doentios nas relações familiares. Frequentemente a história envolveu mais de um indivíduo presentemente encarnados (temporariamente) naquela família. Daí a importância de muitas vezes resolver conflitos familiares em terapia sistêmica familiar.
MÉDICO: Assumindo que espíritos existam e obsediem (é esse o verbo?) um paciente, como irei diferenciar um simples delírio de influências espirituais não benignas? Gostei bastante da resposta, embora a veja com ressalvas devido ao meu ateísmo.
ALLAN: Veja bem, existe todo um caminho de terapêutica da paciente que independe do tratamento do espírito obsessor. Esse caminho terapêutico é cada vez mais abordado e melhorado pelos psicoterapeutas e psiquiatras. A princípio, deve-se investir nesse caminho para todo mundo, obsediados e portadores de delírios não-obsessivos. O mecanismo da obsessão é, no fundo e grosso modo, o mesmo para qualquer sofrimento psíquico: a culpa, o remorso, a mágoa, a deseperança, a negatividade. Todos esses sentimentos são os que o filósofo Espinoza chamava de paixões tristes, ligados a uma forma não-sábia de ver a vida.
O objetivo da terapêutica é criar estruturas interpretativas na mente do indivíduo que o permita sair das paixões tristes para as alegres. Quando não tem obsessor desencarnado no meio, há os "obsessores encarnados" e, sempre, a própria pessoa como obsessora de si mesma. Ninguém consegue influenciar ninguém se não houver uma imagem muito forte do influenciador em si. Explico melhor: se uma pessoa tem sérios conflitos com sua imagem corporal, esse conflito está dentro dela, cultivado por uma história familiar intensa e complexa, relacionado com um passado reencarnatório denso e emaranhado. Nessa cadeia psíquica, a pessoa quase não passa de um barril de pólvora que o obsessor só precisa acender uma faísca perto.
O problema é quando os processos se tornam tão intensos que tudo se confunde. É o que chamamos de obsessão de fascinação e a de subjugação. É como se o influenciador tivesse uma força de influência para além de qualquer possibilidade de defesa do indivíduo. Aí é quando a terapêutica mediúnica, buscando esclarecer o obsessor e convencê-lo de se afastar da paciente tem função primordial. Sem nunca deixar de lado a terapêutica sobre a própria paciente.
De forma objetiva a resposta é: não precisa se preocupar em diferenciar até que você perceba que o caso é refratário à terapêutica habitual. Na verdade, essa é a situação em que a maior parte dos psiquiatras começam a duvidar da sua teoria maternal e vão a procura de outras abordagens, entre elas, a espírita.
MÉDICO: Bem interessante realmente. Suas respostas são tão boas que geram centenas de dúvidas. Acredito que é uma forma de abordagem bem completa e complexa, embora também bastante cômoda, já que, num primeiro momento, ela se isenta da responsabilidade sobre o paciente e não interfere em conceitos e tratamento já estabelecidos. Mas, assumo minha ignorância. Não sei o bastante sobre a psiquiatria nem sobre espíritos, muito menos suas relações passadas ou vindouras com os viventes.
ALLAN: Muito bom a parte do "bastante cômoda". Você tem razão! Mas, isso tem muito de mim que tive de tentar, nestes anos imersos na faculdade, de conciliar o Espiritismo e a Medicina materialista na minha cabeça, para não explodir meu coração. Talvez se eu fosse um militante mais radical e tivesse uma prática psiquiátrica que desse suporte aos meus estudos, eu seria mais contundente e defenderia uma prática espírita mais presente em todos os âmbitos da saúde mental.
MÉDICO: Nao acredito em espíritos. mas reconheço q a psiquiatria nao explica tudo. Na verdade, nem a metade. Ou pior. Explica o dobro… [ironia sobre o fato de às vezes a psiquiatria inventar teorias demais sem resultados concretos]
Boa noite, Allan. Muito obrigado. Fico feliz mesmo por tuas respostas. Abraço.
ALLAN: Abração!
* Obsessão, em espiritismo, é a relação patológica entre um Espírito ainda animando um corpo material, que denominamos de encarnado, e um Espírito desencarnado. Ela é patológica porque, no comum dos casos, o desencarnado insiste em influenciar negativamente o encarnado através da sugestão persistente de pensamentos e atos prejudiciais à vida moral. Dizemos obsessão simples quando o encarnado ainda mantém seu juízo crítico e entende estar realizando atitudes e tendo pensamentos que não são de sua índole; obsessão de fascinação, quando este juízo crítico se esvai; e subjugação ou possessão quando o domínio sobre o próprio corpo está comprometido.