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quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Como foi a desencarnação de mamãe

Vitimada há quatorze anos por um Parkinson raro que provocava nela tremores, dores e muita rigidez que nunca havia permitido brincar com meus filhos, entra na emergência com pneumonia grave já com uma vontade previamente expressa que não queria UTI. 

Rapidamente foi iniciado o antibiótico, mas por medida de conforto, tamanho foi o desespero do cansaço, sedaram-na. Supus que ela morreria no mesmo dia. Pedi para meu primo que não trouxesse a tia, não daria tempo. Só que ela não morreu. O coração batia forte apesar de uma respiração pouca e superficial. Sete médicos a rondavam e constatavam atônitos: ela resiste. Pensei: ela espera se despedir da tia. Convoquei com urgência nossa família do interior. Eles chegaram rápido. Juntamo-nos, choramos seu estado, afagamo-la, oramos, conseguimos um padre que conduzisse a unção dos enfermos. A cada instante da cerimônia eu imaginava: agora ela vai. 

Vocês que não tem ideia de pacientes críticos nunca poderão entender o milagre de um coração resistir viver sob o peso de uma respiração dificultosa, borbulhosa, adicionado de dois sedativos-analgésicos endovenosos, em infusão contínua, extremamente necessários todavia para tirar sua dor. Ela resistia. E até mesmo deu sinal de melhora da oxigenação, da pressão. Por Deus: ela quer voltar!

Insone que eu estava, vigilante para que a equipe do hospital a tratasse com todo o desvelo e sem procedimentos desnecessários, madruguei no outro dia em busca de agilizar os exames que apontassem seu caminhar para a recuperação, o que justificaria tirar a sedação. Três médicos estavam de acordo com essa idéia. Descobri, ao contrário, que o corpo dela entrava em falência. Desesperei-me. Caí em prantos. Tive raiva dela: a senhora nunca fez o que os médicos queriam, sempre cuidou dos outros e esqueceu de si, e mesmo agora na morte, você é cabeça dura. Pare de sofrer! 

Paralisei no ar. Vaguei perdido pelos corredores. Ia e voltava de casa tentando entender o que ela queria. Tive a ideia de uma reunião espírita de meus amigos para cantar e ler o evangelho. Preparamo-nos no outro dia para tal. A respiração dela do mesmo jeito, terrivelmente fraca, ruidosa, o coração pulsando forte. À noite, então, estávamos lá, dez pessoas no quarto cantando em coro músicas espíritas que falavam de Jesus, da libertação da alma, da renovação de tudo. O Espírito de meu pai se comunica falando estar preparado para recebê-la. A cada instante, olhava para o peito dela que resistia, resistia e resistia. O que fazer, Senhor?! O que fazer?! 

Meus pés estavam inchados de tanto andar, meditar em pé buscando alguma resposta. Meus nervos também inchados de tanto remoer os dados médicos, tentando captar se algo da medicina havia sido equivocado. Passei e repassei a história daquela internação para seis médicos. Todos eram unânimes: 

- Não se culpe, tudo que foi feito está nos conformes. A doença dela não cabia de fato procedimentos invasivos. Além do mais, era da vontade dela não ser intubada. 

Gritei dentro de mim: "Se você morresse! Mas você não morre! Você é dura!". Comecei a delirar. Será mesmo se ela realmente não queria ser intubada? Eu tinha ouvido isso da boca dela. Saí perguntando para os mais próximos se também haviam ouvido isso. Minha irmã confirmou, minha esposa também ouvira. Todos os cuidadores ouviram a mesma coisa. Será se todos deliravam igualmente? Meu Deus, se todos deliram, e fui aquele que abriu a boca para dizer à equipe médica que a suposta vontade dela era aquela... eu... matei... minha mãe. 

As enfermeiras já suspiravam aflitas quando eu repisava o corredor. Todas as vezes que chegava no posto de enfermagem eram os olhos vermelhos ou lágrimas grossas. Meu irmão não dormia. Meu primo não dormia. Minha irmã não dormia. Tive vontade de sair pela rua a fora. Em vez disso saí com um amigo, recontei para ele tudo. Ele novamente me mostrou que nada faltava. 

No último sol dessa aflição, escorado ao leito do hospital, tive a ideia de, mesmo com todos os indícios de deterioração clínica, desligar todas as bombas de analgesia e sedação, deixá-la acordar ainda que em agonia brutal para que ela gritasse o que queria. Compartilhei a ideia com o médico do dia. Diante do meu sofrimento e da própria angústia dele sem entender aquele fenômeno de resistência, anuiu que fizéssemos um teste. Qualquer indício de sofrimento, seria necessário voltar a infusão de sedativos. Combinado. A bomba foi desligada. Enquanto esperava ao seu lado olhando fixamente seus olhos, sua boca, seu braço, se este voltava a tremer, eu que passei esses últimos quatorze anos pedindo aos céus que aquele braço não tremesse mais, estava ali esperando qualquer sinal de retorno de consciência e falando com amigos, entre eles uma paliativista que disse delicadamente para mim: 

- Não faça isso. A morte é um momento muito especial de cada um. Cada qual faz do seu jeito. Este é o jeito dela. Ela deve estar com medo da passagem. Respeite-a. Não deixe que aconteça com dor, com desespero. É o tempo dela na vontade divina. Eu vou aí. 

Então religamos a bomba, e pela primeira vez fui esclarecido que a audição e o tato são os últimos sentidos que a pessoa perde. Chamei meu irmão que chorava e chorava, mas ainda não tinha tido um momento a sós com ela. Pedi para que todos saíssem do quarto que aquele momento era dele e dela. Ele passou cerca de dez minutos falando para a mãe. A médica, então, mobilizou-a, tentou diminuir o desconforto respiratório dela. Tudo com muito cuidado. Falando com ela todo tempo, tocando-a com muito carinho. Minha alma estava se acalmando. Parecia que a médica fazia massagens no meu coração. Cada palavra, um alento. Respeitou minha dor e todos os meus movimentos de filho médico até agora. Mas, disse enfim: 

- Não seja mais médico, seja só filho. Toda e qualquer decisão ligue para mim. 

Sugeriu-me então uma enfermeira paliativista que combinou vir às 18h. Fui em casa tomado por uma paz que há dias não tinha. Revi minha esposa, meu filho mais novo, o mais velho havia saído com a outra avó. Deitei na cama e tive a ideia de fazer um áudio com a mensagem dele para a vovó Irami. Havia sido conselho da médica. 

Às 18h em ponto estávamos lá no hospital, todos os cuidadores, minha irmã e minha esposa. A enfermeira massageava minha mãe e explicava como se deveria massagear. Os cuidadores seguiam suas orientações. Começaram a mobilizá-la, em busca de confortar sua respiração. Já se iam cerca de 90h de respiração ruidosa, que naquele dia havia sido amenizada pelas intervenções das paliativistas. Eu comecei a entender que aquele momento não era a resistência de mamãe mas a última fase de sua doença. Uma fase em que ela, livre das dores, dos tremores e da rigidez, tinha a oportunidade de passar os últimas dias com os que amava. 

Nesses dias para mim sombrios, para ela havia sido os dias em que recebera orações como nunca, cânticos, declarações, cuidados a vontade. Os cuidadores se uniram entendendo que seria o último esforço. Ela ouvia todos dentro do quarto lembrando do quanto ela foi mãe de todos. Até dos cuidadores. Relembravam seus gostos, seus afetos, o quanto era feliz com todas as crianças que se aproximavam dela. 

As massagens em seu corpo continuavam, quando de repente ela abre os olhos. A enfermeira percebe aquela oportunidade única e diz: Allan, conduza a todos para que falem com ela um a um. O último de nós, meu irmão, chega para visitá-la exatamente nessa hora. Olhos semi-serrados, cada um olhou naquele acastanhado bonito e falou: os cuidadores, que ela não se preocupasse que também cuidariam de nós, seus filhos, e nós, os filhos, que ela partisse em paz que cuidaríamos uns dos outros feito irmãos. Nunca havíamos dito isso para ela, separados que estávamos pelo trabalho de cada um. Por fim, coloquei o áudio do meu caçula no ouvido dela, olhando no fundo de sua alma. Terminado o áudio, a enfermeira toma a dianteira para melhorar a posição dela na cama, é quando eu e minha esposa percebemos o último suspiro. E a cor do lábio se esvaindo. Dou alguns passos a frente e tomo seu pulso carotídeo. "Ela morreu". Choramos. 

Agradeço à enfermeira por ter proporcionado aquela despedida. Convido todos a se darem as mãos em um grande círculo ao redor do corpo de mamãe. Agradeço a Jesus por aquele momento com palavras de improviso nascidas do coração. Emendamos com um Pai Nosso e uma Ave Maria. Abraçamos-nos uns aos outros. Agradeço a cada um e a todos. Mamãe atravessara, enfim, o portal. Era aquilo. Tudo foi tão rápido. Ela só queria ter a certeza que não iríamos ficar desamparados. 

Tenho outras tantas reflexões, e houve muito mais entre cada respiração do que posso contar agora. Mas, como sempre digo para meus meninos ao contar historinhas que se alongam: são cenas dos próximos capítulos.

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