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sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Rito de renovação

Tive que reaprender algum comportamento ritual depois de grande. Vivi os ritos normais de uma civilização quase-cristã, meio-romana, vagamente judaica.

O ano começa com um rito de renovação. Geralmente passávamos essa data no interior, pequena cidade natal de mamãe. Era o período das férias que ia do final de novembro ao final de janeiro. O rito começava pela ansiedade do presente natalino, envolto pelo alegre mistério de um velhinho que distribuía magicamente presentes pelo mundo. A muito custo tentavam enxertar a mensagem de que Jesus era o grande motivo das festas. Eu entendia que o menino do presépio era importante, que ele era o grande responsável pela paz no mundo, mas se o presente não chegasse às mãos seria infeliz. 

Papai Noel era o símbolo de que alguém muito poderoso olhava para as crianças o ano inteiro e as queria bem. Todas as crianças estavam irmanadas como objeto de seu bem querer. 

Era o momento também de comparar presentes, o meu com o das outras crianças, primos e amigos da vizinhança. Ganhava, muitas vezes, os melhores. Não atentava que por trás dessa diferença se escondia o status de papai, médico da região, a luta de minha tia para criar um, dois, depois três filhos sem pai presente, ou ainda, que o presente refletia bem a riqueza da própria casa de cada um. Minha casa ocupava quase um quarto de quarteirão. Nela cabiam cerca de cinco ou seis casas de amigos.

Depois falarei sobre a casa de vovó, e o quanto aquela vizinhança deu as principais cenas da meninice. Falarei também sobre vovó, e o quanto aquela mulher ajudou a construir os melhores lugares de mim. 

Passando o Natal, era o ano novo. Desejos de prosperidades eram trocados nas ruas. Alguns fogos de artifício coloriam o céu, que no interior é especialmente estrelado. Eu ainda não havia me deslumbrado com o céu da zona rural. Ainda não havia me dado conta o quanto as luzes da terra apagam as do céu. Deslumbrado ficava era mesmo com a cidade grande. O quanto ela se modificava após dois meses de férias, novas ruas, diferentes sentidos, novos prédios. 

Percorridos cem quilômetros de caatinga, entrar no perímetro da mata atlântica, penetrar na conurbação metropolitana, saber que, pouco depois de se ter visto as chaminés das fábricas de castanha, entraríamos na grande veia que nos conduziria ao nosso edifício, perdido na confusão de outros tantos edifícios no coração da cidade. Era bom ir para o interior. Era bom voltar para a cidade grande. Ficava uma saudade para trás. Mas, havia um encantamento na frente. Não eram os shoppings ou os parques de diversão. Não sei bem o que era. Aqui possuía bem menos liberdade, amigos, lugares para onde ir. 

Havia o quinto andar do nosso primeiro prédio que, para a infelicidade de quem morava no quarto, era a área de lazer. Os espaços exíguos invadidos pelo asfalto não permitiram uma margem para um parquinho. Foi uma novidade boa quando nos mudamos para um lugar que havia espaços de lazer no térreo. Havia um certo parque atravessado por um riacho por onde eu passava apressado, apenas acompanhando papai, que ia comprar o jornal no sábado e no domingo. Apenas uma vez na semana, mamãe encarava uma ida ao parque da faculdade de direito, quatro quarteirões adiante, onde havia balanços, escorregadores, crianças brincando de pega-pega, comidas de barraquinhas. 

No interior era a bicicleta que abria as portas de toda a cidade, de uma ponta à outra. Essa liberdade merece um texto a parte. Basta por ora entender o quanto a cidadezinha da zona rural me dava liberdade espacial infinita. Até mesmo o video-game só poderia ser ligado lá. O quanto a cidade grande era pequena. Todavia, acho que eram os olhos. Pronto, os olhos. Os cenários que enxergava entre as grades eram tantos e tão diversos que não cansava de os mirar. Talvez fosse a disciplina do tempo. Ao contrário do que as crianças pensam, criança adora disciplina. Um horário certo para acordar e dormir. A exigência de almoçar tal hora, logo após se arrumar, para em seguida ir à escola. A ânsia de reencontrar os amigos de classe e e a tia da turma. O que será que aprenderíamos de novo naqueles tempos cronometrados? Eram duas felicidades que marcaram a respiração da minha infância: a expansão do corpo nas férias, a expansão da inteligência nas aulas. 

Claro que sei não ser certo binarizar. A inteligência infantil se alimenta das emoções do corpo livre, contudo algo que havia esquecido, e que só agora tomo a reviver nestes relatos, é o quanto a inteligência e as emoções infantis são desafiadas pela clausura. Contrair para expandir, voltar a contrair. É uma verdade fisiológica vivida pela alma, pela civilização, pela história, dizem mesmo, pelo universo.

O ano se iniciava com largas asas. Então, era voá-lo. 

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