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terça-feira, 6 de março de 2018

E fez-se a luz... e a escuridão!

Ideia de peça segundo a concepção que tenho da criação do universo, em linhas mitológicas.

(Deus tem um corpo avantajado feito uma montanha, mas tem movimentos leves de bailarino. Neste dia está resfriado e feliz. Entra em palco dançando e, de repente, um grande espirro. Um estrondo se faz ouvir, as luzes apagam, gradativamente vão-se acendendo luzes pequeninas no pano de fundo: são as estrelas que nasceram de seu espirro. Uma atriz vestida de estrela despenca no palco e se levanta mostrando a barriga grávida. Lembrem sempre que Deus é um dançarino e que a cada novo espirro há estrondo e estrelas).

Deus: Minha Vida, você traz vida para mim!
Estrela: Meu Senhor, você me faz viva assim. Grávida de todos os seres que começarão a habitar nossa mansão. 
Deus: Tinha você em pensamento desde o início da eternidade. E o amor que de lá trago parece ter se feito todo em você. Veja o tamanho da barriga!
Estrela: São muitos, meu Senhor, mas fico aflita em saber que serão deles quando saírem de mim.
Deus: Tenho trabalhado leve em um berço duro para lhes acolher. Meus queridos espíritos... Espíritos... Está bom estes nomes para nossos filhos?
Estrela: Sem querer questionar Sua sabedoria, queria que cada um fosse chamado diferente.
Deus: E serão! Mas, são tantos e tão diferentes que cabe perfeitamente que os chamemos assim: espíritos. Nossos bebês! Vai que nasce um e se chama José. Será José amado como José. Vai que nasce outro e se chama Maria. Será Maria amada como Maria. Vai que nasce mais um e se chama João. Será João amado como João. 
Estrela: Venho já costurando o nome de muitos neste negro bordado que nos envolve, cada constelação. 
Deus: Venho fazendo berços de pedra para que os possamos acalentar. 
Estrela: Venho aquecendo meu corpo para os ninar. 
Deus: Venho esfriando bolotas de fogo para os ver correr por aí, escapulidos das pedras, pelo canudo das plantas, engolido por animais, revestidos por corpos humanos...
Estrela: O Senhor, meu esposo, já fez todo um programa de diversões para nossos pequenos. E eles apenas aqui estão. (aponta a barriga enorme). 
Deus: Não se preocupe que eu esteja pensando no futuro deles, minha Vida. É que o tempo na minha cabeça não passa. Ontem quando os criei já não mais existe, tanto quanto o futuro em que, depois de crescidos, viverão ao meu lado. Nem ontem, nem amanhã. Nada existe lá, porque tudo está aqui, no meu coração presente. Vivo a sua gravidez com a mesma intensidade de quando engravidou e de quando vai parir. 
Estrela: Difícil entender o tempo que se passa aí. 
Deus: Pára de compreender, fecha os olhos, acalma, deixa nossos filhos sair. 


(A Estrela dança uma valsa com Deus em que ele a conduz até o sono. Deus funga toda a luz da cena e sopra no ventre de Estrela. Uma grande luz se faz. Risos de crianças se espalham pelo ar. Estrela acorda já sem barriga e passa a admirar os risos, os sininhos e, por fim, a caixinha de música que toca ao fundo. Um berço de pedra está balançando no centro do palco. Uma música começar a tocar. De dentro do berço um homem de pedra sai engatinhando e, no ritmo da dança, ganha o espaço até estar bem ereto a bailar. Deus e Estrela entram na dança de vez em quando, apenas conudizindo-o  até ele conseguir dançar sozinho. Outros homens de pedra se misturam na dança até serem aos poucos substituídos por plantas, depois por animais e, enfim, numa cena, em que Deus e Estrela a assistem suspensos em tronos em nível superior. Vê-se surgir homem de carne, quase pelado, se encontrando no palco, reconhecendo o corpo, reconhecendo o enredor, e vendo, ainda, pedras, plantas e animais a gravitar em seu redor).

Deus: Filho, como estás?
Homem: Sinto-me estranho, meu Pai. Meu corpo é frágil, não tenho raízes, mal tenho agilidade nas pernas, meus pêlos caíram quase todos, mas eis que me encontro aqui a poder lhe falar tudo o que sinto. 
Estrela: Você está lindo, meu Filho!
Homem: Mas, estranho... Tudo que ao redor existe, para eles vejo uma função. Para mim, para que sirvo? O que devo fazer?
Deus: Depois de ter aprendido sobre como manter seu próprio corpo coeso, e ter entendido a importância das raízes; depois de ter conhecido o lar que criei para você, explorando o espaço, devo te entregar o mais precioso dos bens.
Homem: Qual seria, meu Pai?
Deus: A oportunidade de conhecer a si mesmo através de si. 
Homem: Eu me conheço desde sempre. Sou Seu filho e a Sua vontade cumprirei. 
Deus: É da minha vontade que meu filho não seja meu servo, mas venha a mim pela própria vontade. Até então estive lhe guiando com uma intensidade que encobria o seu mérito. A partir de hoje devo entrar em silêncio e me confundir com o espaço. 
Homem: Pai, já não lhe vejo! Onde estás?
Deus: Sempre ao seu lado. 
Estrela: Meu Senhor, permita-me iluminar o caminho desse menino.
Deus: Seja feita a sua vontade!
Homem: Mãe, não posso olhar para a senhora, há brilho demais!
Estrela: O que houve, meu Esposo!
Deus: É chegado o momento de ele construir as próprias leis, querida. Se você estiver muito ao lado dele, pode cegá-lo ou queimá-lo e nunca, assim, atingirá a lição derradeira. Permito que você o ilumine e o aqueça, mas de longe, muito longe.
Estrela: Entendo!
Homem: Não se afaste mãe, não se afaste! Por favor...
Estrela: Não se preocupe, meu bebê. Centuplicarei o meu brilho para que possas aproveitar o calor do meu colo e, ainda distante, sua vida se nutrirá de mim. Não posso ser onipresente como Seu pai. Mas, posso brilhar com tamanha intensidade, que é como se eu estivesse sempre ao lado. 
Deus: Porém, como ele irá conhecer tudo o que a ele pertence, se todo o tempo o seu brilho de mãe ofuscar o resto do universo? Preciso, querida, que todos os dias se esconda um pouco para que ele possa ver os outros irmãos que espalhei por aí, semeados em outros planetas iluminados por outras luzes que não a sua. 
Estrela: Que seja feita Sua vontade, Meu Senhor! Não se esqueça de mim à noite, filho. Trarei meus braços ao amanhacer para lhe acalmar. Permita, ao menos, que ele descanse quando eu estiver longe, querido. 
Deus: Permito! A isso chamarei de sono. E nesse momento, poderás ser livre da matéria para vir até nós ou vagar por aí caso decida não nos encontrar ou se vier a nos esquecer. 
Homem: Nunca irei me esquecer daquele que sei que é a fonte de toda a vida!
Deus: Você precisa crescer, filho! Nunca acontecerá isso se ficar todo tempo no nosso encalço. Preciso que conheça seus irmãos, amando-os como se eles fossem o bem mais precioso. 
Homem: O Senhor é o máximo bem! Minha mãe a mais sagrada companhia! 
Deus: É por esta relutância que a partir de hoje permito que possa duvidar da minha existência, tapar os ouvidos à minha voz, seguir a própria vontade, ainda que ela signifique a morte. Sempre farei com que renasça de novo até que Me encontre de fato.  


(A grande luz de Estrela se apaga e o homem passa a ouvir apenas os barulhos da noite).

Homem: (assustado) Pai? Mãe? Onde estão? Falem comigo? 

(Chega a Mulher tão assustada quanto o Homem).

Mulher: Quem é você?
Homem: Eu que pergunto: quem é você?
Mulher: Não sei mais. 
Homem:  Nem eu...

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