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sexta-feira, 3 de março de 2017
Doutor Estranho e o Espiritismo
Poderia falar sobre o corpo astral, as múltiplas realidades, particularmente a espelhada, as lutas místicas paralelas ao nosso dia-a-dia, que são tantos temas que o Espiritismo aborda de outro modo e com outros termos, mas o que quero falar mesmo é da trapaça da Grande Anciã.
Leia apenas quem já assistiu ao filme, porque aqui falo sobre o nó górdio da questão:
(pausa)
- Para proteger o mundo é preciso trapacear as leis naturais.
Kardec nos falava que não havia fenômenos sobrenaturais, que Deus não precisava demover suas leis com milagres para fazer as coisas acontecerem. Tudo era natural, até mesmo o que dizíamos sobrenatural. Ao mesmo tempo, entendia que Deus poderia sobrepor a natureza se quisesse, já que era dela soberano. A posição de Kardec era, assim, mais ou menos cartesiana, tendendo a leibniziana, e quase iluminista. Teria realmente Deus a possibilidade de derrogar suas leis já que tão perfeitas? Se elas não precisassem ser derrogadas de forma nenhuma, então seria como em um relógio em que o criador dá a corda e já não precisa fazer nada.
Em Doutor Estranho, vimos que a primeira grande metáfora geradora de todo o despertar do herói foi a quebra das mãos (que proporcionava sua arte regeneradora de vidas) e, logo depois, do relógio (símbolo da precisão e da referência absoluta da física clássica). Isso teve de acontecer para dar lugar a mente-espírito e ao indeterminismo, pois revela-se por todos os lados uma realidade cambiante ao infinito.
Na história da nossa ciência, quando Heisenberg semeou a incerteza no então bem sólido edifício da física, algumas pessoas entenderam que era o golpe final ao Deus cristão. Mas, não! Na verdade, era o anúncio do regresso. Um universo incerto carece de um agente universal, como que um Grande Arquiteto, que o faça coerente. Este pode ser um Grande Espírito Cósmico, talvez Deus. O fato é que a realidade que escapa ao determinismo só tem sentido como realidade palpável, cuja obviedade vemos e sentimos cotidianamente, se um agente externo estiver atuando para que ela seja assim.
Não adianta os profetas da Nova Era insistirem em falar que a mente pode tudo, se o que nos é exterior se impõe de forma esmagadora. A intimidade da matéria revela sua indeterminação? Como não nos afogamos nela, então? É que esta indeterminação é virada ao avesso diuturnamente por um trabalho secreto de inteligências invisíveis que nos dão segurança.
A história de Doutor Estranho retoma a lenda dos magos celtas que possuíam um conhecimento prodigioso sobre as forças ocultas da natureza. Fala sobre um conjunto de guerreiros que se debruça na manutenção da ordem planetária em níveis supra-humanos. Fala mais ainda que a virtude do mago não é prestar culto ao determinismo das leis, mas ser flexível para deixar-se levar pela correnteza de certo veio que deve emanar da verdade da vida, que é fluida por definição.
Perceba que, mesmo diante de tantos possíveis que explodem aos olhos de Stephen Strange, um imperativo ético acaba guiando sua conduta. Nem tudo é possível, pois. Ainda sobre-existe uma transcendência robusta, a qual ele aceita em sabedoria.
Alguns podem interpretar que a fonte desse imperativo é a própria pessoa (seria uma imanência). Defendo que a própria pessoa só chega a ter esse poder todo se ela houver, enfim, encontrado a fonte de tudo, que é Deus (é uma transcendência na imanência). Não é que no fundo de nós sejamos o Deus, mas sim que as marcas de Deus em nós nos levam a Ele.
Deus, portanto - e esta já era uma hipótese latente no Espiritismo, elucidada pelo professor José Herculano Pires(1) - é, não apenas o que cria a realidade, mas o que incessantemente dá coerência a ela. Todo grande herói deste mundo há de imitar esse trabalho cósmico em escala menor, entre nós. Protegendo a vida, espalhando o bem (que é a vida em abundância[2]) e lutando contra o mal (que é a morte de tudo - Dormammu).
Por que Deus precisaria de heróis? Como a coerência da realidade cósmica pode ser profanada por ações más? Por que Deus simplesmente não pulveriza aqueles que querem manchar sua criação? Estes são assuntos intrigantes para outras postagens.
(1) "Deus é o poder gerador e mantenedor dessa realidade sem limites" (J. Herculano Pires in O Centro Espírita, cap. 5: Deus no Centro)
(2) "O ladrão não vem senão a roubar, a matar, e a destruir; eu vim para que tenham vida, e a tenham com abundância." João 10:10
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