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sábado, 20 de junho de 2015

O Amor precede a Existência



Sartre disse que o cristianismo diz: "A essência precede a existência". Fundando sua teoria de liberdade, Sartre replica: "Não. A existência precede a essência." Sem imaginar que pudesse estar me inscrevendo nessa disputa, eu disse: "O amor precede a existência". E o que essas coisas verdadeiramente significam?

A primeira nos fala que quando Deus nos criou, semeou-nos um propósito no coração. Para a consecução dessa vontade heterônima nossa existência é guiada. A segunda quer nos libertar desse fado e proclama que a nossa essência será aquilo que fizermos existir em nós, ou ainda, a forma como nossa vontade moldará nossa existência, e não estes mandamentos externos que vivem a nos ditar. 

Veja, essas duas frases geralmente tomam a perspectiva do sujeito que está em jogo, a primeira pessoa, o eu. Uma filosofia construída sobre as palavras francesas: je e moi. Para libertar o je, Sartre quer que tomemos consciência do quanto os outros - este inferno - nos fazem ser moi. Quando a sociedade, por exemplo, nos faz dizer: Eu (je) sou médico (moi). Então, é um filosofia de adolescente. Um sujeito que peleja para se construir em meio a uma sociedade que não lhe enxerga autônomo. 

Quando eu disse: "o amor precede a existência". Essa é um filosofia que fala sobre o outro, como o outro se encaixa no meu mundo. Não é a minha representação do outro na consciência, mas a radicalidade de sua diferença em mim. É o que faria com que eu saísse da prisão cartesiana do "je pense, (donc) je suis" [Eu penso, (logo) eu existo]. 

Apenas posso considerar existente aquilo que percebo no meu pensamento? Os idealistas foram longe demais e quiseram nos convencer, então, que tudo fora de nós são ideias nossas exteriorizadas. Mas, não. A experiência do amor nos faz explodir esse ensimesmamento. Os namorados sabem o quanto custa fazer durar uma relação. A todo instante colidimos com o que o outro espera de nós, e ele, com o que nós esperamos. E, para surpresa de ambos, vivemos a nos estranhar: somos radicalmente diferentes. Escapamos constantemente da ideia, da representação do outro. 

Então, quando digo "o amor precede a existência" não quero dizer que, como um deus, o meu sentimento cria a pessoa, senão que, como um ser humano, eu permito que ela aconteça em mim. Acontecer é um verbo da língua portuguesa magnífico. As pessoas o utilizam muito mal. Algo só acontece verdadeiramente se ninguém esperava que acontecesse. "Haverá uma morte..." é completamente diferente de "Acontecerá uma morte...". A primeira frase se enche de certeza, a segunda, de mistério. 

O mistério pelo o qual o outro acontece em mim, passando a existir de fato, só é possível quando eu abro as portas para ele, amorosamente. Acontece de o amor ser um acontecimento. Isso não exime de nós a responsabilidade de a partir de seu fiat lux ele ser uma construção da casa em que agora habitamos, juntos - existência. 

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