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quarta-feira, 7 de maio de 2014

Noé, o filme, e os eternos conflitos do dilúvio em nós - Parte II




Pai e filho estão sob as barbas brancas, alvas nuvens de Deus. O mais velho vai passar ao mais moço o legado de ser homem. O que é ser homem para você?

Essa pergunta caiu na minha primeira prova de psicologia médica na faculdade. Não me fui bem na resposta porque o professor perguntava “segundo os conceitos da psicodinâmica”. E eu respondi, brilhantemente, segundo os conceitos da minha vida. Antes que me chamem de pedante, me respondam: Quem pode falar mais brilhantemente sobre minha vida se não eu?

A pergunta, rigorosamente, era assim:

- Segundo a psicodinâmica, você é filho ou homem? Explique.

Esquecendo a psicodinâmica e as instâncias da mente, o que você responderia?

A definição de homem, isto é, de maturidade espiritual. Os hebreus, consequentemente, os judeus, dão um valor sobrenatural para a paternidade e a gestão da família, célula-máter da comunidade. Colocar em risco essas bases é fazer estremecer todo o povo. Muitos dizem que a novidade trazida por Jesus é a de tratar Deus como Pai (Abba). Não é verdade. Deus-Pai está em toda a tradição. A forma como se encara esse Pai é que difere. Freud, que era judeu, parece ter entendido bem isso, dando importância fundamental a relação edipiana - trágica! - de como acontece essa relação e sua influência na formação da personalidade do filho. Perceba que os grandes guias da comunidade hebraica surgem da ordem que o Deus-Pai dá ao seu filho mais velho, enviando-o aos irmãos mais moços. Entenda mais velho em um sentido espiritual, isto é, aquele que “cresceu" o suficiente para entender sua vontade.

Aí está a grande chave para entender porque Noé pode ser considerado um homem. Ora, porque obedece a vontade do Pai. Eis porque ele diz para o filho rebelde, na cena em que começa a chover para o dilúvio, que, por mais doloroso que pareça, ele está a lhe ensinar a ser homem, fazendo não o que o desejo pede, mas o que é necessário fazer: o dever. Aliás, isso é o que representa, no sentido negativo, o mito de Adão e Eva. Um filho que passa a sofrer as conseqüências de ter ouvido mais a voz da sedução (serpente e Eva) do que a de Deus.

Retrógrado? Se for, essa visão de mundo não está só. Ouvir a voz de Deus e obedecê-la, entre os filósofos estóicos da Grécia, era perfeitamente traduzível por aceitar o seu lugar no cosmos. Aqui, mais perto, entre os iluministas, seria ouvir a voz da razão. Perder o juízo é sinal de loucura, de deixar-se dominar pelas emoções, de ser infantil e não homem. A gente muda o nome de Deus por Cosmo, Razão, Verdade. E para cada um destes pensamentos, uma forma de maturidade espiritual se anuncia.

A grande diferença entre o Deus judaico-cristão e estas outras formas de Deus engendradas por estas outras culturas é a abertura para o amor. Nem o Cosmo, nem a Razão, muito menos a Verdade (no que ela tem de estritamente racional) são capazes de nos amar. Não faz parte de seus atributos. Mas, Deus, este que foi espalhado por Jesus, resgatando um tema levítico, este é pleno de amor, ou ainda, é pleno amor. É a superação do conflito "dever x amor” que dará nova vida para tudo na Terra redimida pós-diluviana. Ou melhor, como diria Jesus, foi o amor, e não a água, que cobriu todos os pecados.

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