Todos os princípios espíritas partem da
revelação dos Espíritos quando questionados por Kardec. O professor lionês,
para assumir as respostas como sendo pontos de doutrina, criou o seguinte
método: o controle universal dos Espíritos. Entendia que se uma mesma resposta,
ou semelhante, estava chegando para responder às suas perguntas de diferentes
partes do globo, através de médiuns que não tinham a mínima possibilidade de
trocar ideias, ela deveria se aproximar da realidade. Mas, ele também não
deixava a análise racional de lado. Era criterioso, e se algum ponto
questionasse os conhecimentos da ciência de então, mantinha-o em reserva para
análises futuras. Dizia ser melhor rejeitar mil verdades que assumir uma
mentira.
A reencarnação foi um dos poucos princípios
doutrinários que passou pelo seu crivo sem provas materiais cabais, porque a
insistência dos Espíritos em confessar sua natureza reencarnante era grande.
Todavia, Kardec fazia o exercício de, colocando de lado a massa das
comunicações afirmativas, arrazoar o quanto este princípio tinha consistência
lógica para explicar os fenômenos da vida. É o que encontramos no capítulo 5,
parte 2, “Considerações sobre a pluralidade das existências”:
“Examinemos de outro ponto de vista a matéria e, abstraindo de qualquer intervenção dos Espíritos, deixemo-los de lado, por enquanto. Suponhamos que esta teoria nada tenha que ver com eles; suponhamos mesmo que jamais se haja cogitado de Espíritos. Coloquemo-nos, momentaneamente, num terreno neutro, admitindo o mesmo grau de probabilidade para ambas as hipóteses, isto é, a da pluralidade e a da unicidade das existências corpóreas, e vejamos para que lado a razão e o nosso próprio interesse nos farão pender.”
Coisa semelhante se deu junto aos
princípios da pluralidade dos mundos habitados e dos espíritos na natureza. A
ciência de então não havia detectado vida além da Terra, mas os Espíritos não
só afirmavam como mostravam o quanto essa vida espalhada correspondia a grandeza
de Deus.
Ah! Outro ponto importante e sem o qual não
conseguimos entender a Doutrina Espírita: Deus existe e é todo bom, todo justo
e todo sapiente. Parte-se dessa definição. Ela está inscrita na tradição
cristã, a qual Kardec estava filiado. No Ocidente, essa visão de Deus era quase
senso comum. Descartes não a negava. Spinoza e Leibniz tentavam, cada um a sua
maneira, justificar a magnanimidade de Deus. Voltaire, apesar de toda sua
crítica corrosiva contra Igreja, endossava a necessidade de uma nova religião
que se coadunasse com essa visão divina. Rousseau explicitava-a na “profissão
de fé do Vigário Saboiano”. Mesmo Kant, que demonstrou ser impossível ter
acesso ao conceito de Deus pelas vias da razão, admitia que esta ideia era
necessária para guiar o progresso da ciência. Sem falar dos homens simples que
a tinham tatuado no espírito.
Portanto, quando vemos Kardec colocando
como pedra de toque a grandeza de Deus para balizar as verdades que vinham dos
Espíritos, não é de se admirar. A ojeriza por esse critério de verdade que se
tem hoje em dia nos meios filosófico-científicos é notável. Passamos por um
processo de secularização incomensurável. É que não houve doutrina
suficientemente potente que tenha acalentado o coração das pessoas enquanto as
múltiplas destruições do homem moderno foram se desenrolando. O absurdo da
existência, trazido pela crueldade dos homens e a ferocidade dos abalos
naturais, falou mais alto que todos os argumentos construídos. Feridas
profundas ainda por cicatrizar e permitir que enxerguemos de novo as luzes do
otimismo da vida.
Allan Kardec enxergou propósitos grandiosos
para a Doutrina dos Espíritos. Profetizou que ela se espalharia rápido e
transformaria o mundo em pouco tempo. Mas, as coisas de Deus se processam em
percursos cósmicos. A lentidão da História inquieta as almas desesperadas. O
Espiritismo veio aportar no Brasil junto a negros, índios e brancos. E vai aos
poucos ganhando corpo para exercer a missão que seu codificador um dia sonhara.
Unir os povos, quiçá os mundos, em um só ideal de amor...
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