Estive ausente da reflexão demonológica por uns tempos, porque outras questões me tomavam o espírito. Relembro que introduzi o assunto esclarecendo, em rápidas linhas, a concepção espírita de céu e inferno. Depois, desvendei de onde parece a teologia cristã herdar a figura de Satanás. Agora, localizo onde está o Condenado na concepção cristã oficial.
Não está no início de tudo. Pois o início se deu com Deus. Daí, a concepção antropológica de Rousseau, no início de Emílio, ser de uma cristandade sem limites: “Tudo está bem quando sai das mãos do autor das coisas, tudo degenera entre as mãos do homem”. Se ele tivesse dito o motivo da degeneração, fecharia a visão cristã: a liberdade e a influência maligna de quem desafia a ordem de Deus. Lembrem que eu disse que diabolos era tudo aquilo que provocava o afastamento do que é divino. Mas, na teologia cristã, há uma personificação desta força centrífuga: o Satanás, o Demônio, o Sete Peles, o Anjo Decaído...
Ele era um anjo, portanto, como bem percebe Rousseau, um ser bom saído das mãos do Autor das coisas. A liberdade de sentir orgulho o fez despencar da sua altura, manchar a sua alvura. Essa metáfora, digo, este pecado da queda do que, puro, ainda assim quis subir até Deus é conhecida pelos hebreus:
“Como caíste desde o céu, ó estrela da manhã, filha da alva! Como foste cortado por terra, tu que debilitavas as nações! E tu dizias no teu coração: Eu subirei ao céu, acima das estrelas de Deus exaltarei o meu trono, e no monte da congregação me assentarei, aos lados do norte. Subirei sobre as alturas das nuvens, e serei semelhante ao Altíssimo. E contudo levado serás ao inferno, ao mais profundo do abismo.” (Isaías 14:12-15)
Dizem outras línguas que a criação de Jesus, também no início dos tempos, como mediador salvífico da humanidade, provocou a inveja neste ser de que vos falo. Como que em um movimento dialético, a criação do mediador da salvação gerou o mediador da perdição. No meio dessa mesa de ping-pong, o homem. O movimento de sua alma corre segundo o fluxo da própria vontade contra ou a favor dos ventos que sopram para os lugares antípodas da salvação.
Perceba as semelhanças e diferenças com a mitologia grega. Dioniso era um deus lindo, mas devotado ao prazer, a concupsicência. Não foi sua culpa ser assim. Desde sua fecundação, ato de traição, até a sua gestação, perto do sexo plural de seu pai, tudo o impelia ao que ele era. Não houve queda de Dioniso e, mesmo os homens, não cometiam realmente pecado ao estar nas dionisíacas. Eram mais ou menos brinquedos desse deus. Aliás, Dioniso não era devotado a perverter o homem. Ele vivia sua vida libidinosa porque essa era a sua forma de viver. Quem o seguisse que agüentasse os gozos e os desmandos desse deus. Já Lúcifer não foi criado mau, mas caiu! Tudo por causa de uma vontade mau direcionada, uma liberdade pessimamente utilizada. Essa questão da salvação ligada à liberdade traz consigo a genealogia da culpa e do mérito.
Na cosmologia judaica-cristã, parece haver um certo antropocentrismo. Deus cria o homem... o perde. Gera o meio da salvação... a perdição vem no encalço. Tudo ao redor do homem. Que o destino último seja a reconciliação com o Criador, portanto, um teocentrismo, não impede percebermos que essa história faz gravitar uma constelação de missões sobre-humanas (a de Jesus, a de Satanás) ao redor do mísero ser humano. Seríamos mesmo tão mais importantes que o resto da criação para merecermos tanta atenção? Ou seríamos apenas mais uma vida de uma Grande Vida?
Algumas dúvidas preenchem o escuro deste espaço, entre as mais adoradas estrelas: (1) Se Deus é acima de todas as coisas e, no início, era apenas Ele, o mal deve ser algo extremamente relativo e, naturalmente, temporário, não? (2) Por que a necessidade de uma intermediação, pro bem ou pro mal? Rousseau, no mesmo Emílio, criticava: “Quantos intermediários entre mim e Deus?!” (3) Tudo partindo de Deus, o Bem supremo, como é possível o mal em qualquer escala na humanidade? Se o mal inexiste, tão pouco existe a missão satânica, e quem a pretende cumprir é um grande iludido. (4) Por que Deus permitiria essa ilusão?
Vencer a ilusão: tema grego. Vencer o arrastamento ao mal: tema cristão. Vencer...: tema espírita. Preencher estas últimas reticências é a que me dedicarei na próxima postagem sobre este assunto.
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