sábado, 20 de janeiro de 2018

Psiquiatria e Espiritismo



Fui convidado para falar sobre esse tema. Decidi partir das minhas experiências pessoais de encontro com a psiquiatria. 

Antes disso é preciso deixar explícito o que acho que devemos ter em mente ao tentar o diálogo com estes assuntos. 


  1.  Não julgar; 
  2.  Amparar sempre;
  3.  Não querer ser o salvador das pessoas; 
  4.  Respeitar o momento de cura de cada um; 
  5.  Os remédios são importantes, mas não suficientes; 
  6.  A cultura influencia, mas não devemos culpá-la de todo; 
  7.  Somos seres imortais e responsáveis pelos nossos movimentos de cura e adoecimento
  8.  Uma vida não basta para pensarmos sobre estas questões;
  9.  Jesus está bem ali para o milagre, mas espera nosso despertar.

Dito isto, minha fala se constrói em torno de três momentos, que são minhas próprias aproximações com os transtornos psíquicos. 

No primeiro narro as imagens que guardo de certo homem com retardo mental motivo de chacota e insultos das crianças da cidade pequena onde me criei. Dele surgiram minhas dúvidas sobre "como é possível doenças da mente que nascem com as pessoas?". A reencarnação me ajudou a formular repostas. Essa aproximação teve um caráter apenas intelectual, e distante.  

A segunda aproximação refere-se ao meu encontro com certa menina que foi do meu círculo de colegas na escola e que, então, estava devastada pelo sofrimento psíquico, internada em um hospital. Pela proximidade e semelhança, ela me fez pensar que poderia ser eu em seu lugar. A pergunta que nasce então é "o que aconteceu para que não fosse?". A reencarnação surge ajudando a explicar a questão em termos espirituais, mas também expliquei as companhias que podemos trazer de outras vidas, vingadores de outrora. Não que eu tenha um passado ilibado ou isento de desafetos, mas aparentemente meus desvios não incidiram no império da mente, não mais, não por ora. Essa aproximação teve um caráter um pouco mais emocional, tocou algo de mim, mas ainda não o que me é central. 

A terceira é quando definitivamente o transtorno psíquico me bate à porta, tomando pessoas que amo de assalto. Assim, passo a testemunhar a luta, a angústia, o desespero de quem vive com as doenças contra as quais os psiquiatras se esforçam. Ainda mais quando os remédios são vãos, e a escuta terapêutica, impotente. Essa última aproximação toca no íntimo, permitindo que eu tenha uma noção mais justa do que é o sofrimento mental. 

Essa espiral de aproximações entendo ser mais fiel do que simplesmente tentar a pureza do conceito e a adequação das palavras: do int-electo ao ínt-imo. 

Da última aproximação, conduzo a reflexão cristã de tentar fazer ressuscitar a esperança apesar de qualquer escuridão, já que esse foi o caminho do próprio Cristo. Talvez essa seja, na verdade, a condição humana de aquisição de sabedoria, ou do Reino dos Céus. Ninguém que almeje a cura, que é outro modo de dizer a salvação da alma, pode se eximir de enfrentar seus próprios abismos. 


   

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

As palavras de Jesus: nosso critério de verdade


"Singulares parecem algumas palavras de Jesus, por contrastarem com a sua bondade e a sua inalterável benevolência para com todos. Os incrédulos não deixaram de tirar daí uma arma, pretendendo que Ele se contradizia. Fato, porém, irrecusável é que sua doutrina tem por base principal, por pedra angular, a lei de amor e de caridade. Ora, não é possível que Ele destruísse de um lado o que do outro estabelecia, donde esta consequência rigorosa: se certas proposições suas se acham em contradição com aquele princípio básico, é que as palavras que se lhe atribuem foram ou mal reproduzidas, ou mal compreendidas, ou não são suas." (Allan kardec: Evangelho s. Espiritismo, cap. 14, item 6)

Na postagem passada mostrei como Kardec em A Gênese reveste o Espiritismo de um caráter muito dinâmico. A princípio pensaríamos que ele, então, seria isento de âncoras, flutuando no espaço das verdades, leviano, escolhendo a que mais brilhasse. Não é bem assim. 

Mesmo a ciência moderna não pode se dizer completamente isenta de fundamentos metafísicos que possibilitem sua forma de existir. Ela tem como pano de fundo que a realidade é cognoscível e que o homem possui estruturas mentais para conhecê-la. 

O Espiritismo, além do mesmo pressuposto da ciência moderna, apresenta um fundamento que Kardec deixa claro nesse excerto: Jesus diz a verdade e não se contradiz. O Evangelho segundo o Espiritismo todo é fundado nessa premissa, e o resto do Espiritismo por consequência. 

De fato, não poderia sermos uma doutrina consoladora se tivéssemos deixado a fé das pessoas à deriva nas descobertas científicas. O tempo mostrou o quanto a ciência moderna é volúvel. Hoje anatematiza o que amanhã idolatrará. 

O método rigoroso, o crivo racional, a seleção criteriosa das comunicações mediúnicas, tudo o que Kardec usou, pretendendo-se científico, acabou não sendo o carro-chefe do Espiritismo, mas Jesus. Foi o Cristo que tornou sólida nossa perspectiva. Todo o movimento de Kardec foi para deixar, novamente, o ressurgido do Calvário palpável para os homens. 

O Espiritismo se tornou, assim, nossa eucaristia. Abriram-se as lápides não apenas do túmulo de Jesus mas de toda a humanidade, revelando nossa imortalidade, apesar das chagas. Não apenas o corpo de Jesus se mostrava redivivo, mas os de todos os entes que amamos, com quem compartilhamos o pão e o vinho diários. 

Outro aspecto importante dessa perspectiva kardeciana de considerar o verbo de Jesus uma necessária verdade não-contraditória é de esta ser a definição cartesiana, por excelência, da ação de Deus no mundo. Como nos vai revelar postumamente, Kardec entendia Jesus como o médium de Deus, cuja fala, pois, estava em sintonia perfeita com o Autor de todas as coisas

A ciência oficial menospreza o Espiritismo, entre outras coisas, por esse deslize, por essa adesão despudorada. Mas, como diz Kardec, a ciência espírita prossegue a partir do ponto em que a materialista estaciona. 

O que significa a ausência de dogmas no Espiritismo?



"O Espiritismo, pois, estabelece como princípio absoluto somente  o que se acha evidentemente demonstrado, ou o que ressalta logicamente da observação. Entendendo-se com todos os ramos da economia social,  aos quais dá o apoio das suas próprias descobertas, assimilará sempre  todas as doutrinas progressivas, de qualquer ordem que sejam, desde que  hajam assumido o estado de  verdades práticas e abandonado o domínio da utopia, sem o que o Espiritismo se suicidaria. Deixando de ser o que é mentiria à sua origem e ao seu fim providencial. Caminhando de par com o progresso, o Espiritismo jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrassem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificaria nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará." (A Gênese, cap. 1, item 55, parágrafo 2)

Considero esse excerto o mais intrigante, angustiante, assombroso de todas as obras básicas escritas por Allan Kardec. 

Quem me fez enxergá-lo assim foi minha esposa. Vinda de uma cultura católica que tinha a missa dominical como a única forma de se entrar no reino dos Céus, quando ela se encantou com o Espiritismo, achou estranho uma religião ser tão flexível a este ponto. 

Esse excerto deixa claro nosso desapego a dogmas, ritos, símbolos. O Espiritismo é o que for certo ser, o que se verificar certo. Pelo menos é o que Kardec sugere. 

Para uma religião isso é deveras problemático. Nunca uma religião se comportou assim. Não é culpa delas. Toda religião flerta com a eternidade. Seus fundadores sempre foram considerados emissários de Deus ou de algum grande deus, quando não o próprio Deus ou deus encarnado. Como sua fala poderia estar errada? A tradição primordial do Hindu, Krishna, Buda, Lao-Tsé, Moisés, Cristo, Maomé, todos tiveram suas palavras e gestos sacralizados.

Por que a missa dominical (ou a de qualquer outro dia da semana) do catolicismo é o caminho da salvação? Porque nela o adepto atualiza sua comunhão com Cristo através da eucaristia. Qualquer coisa pode mudar no mundo, mas enquanto a eucaristia estiver sendo realizada, ainda há a ligação com a eternidade, isto é, salvação. 

Nesse excerto Kardec diz que a eternidade do Espiritismo está na sua capacidade de mudar. Devemos entender que não é uma questão de tudo ser impermanência e, portanto, quem se adaptar melhor à passagem de tudo sobreviverá. Mas sim, que a verdade é revelada progressivamente. 

Kardec acreditava e defendia uma verdade última em vários outros momentos. Contudo, esclarece que ela nunca foi revelada em todo seu esplendor sob pena de cegar os homens. O que ele quer dizer, dessa forma, é que o Espiritismo deve estar disposto a caminhar com a progressão da revelação da verdade. 

O espírita assim carrega essa angústia no peito: não se apegar muito a qualquer certeza, porque ela pode passar. Todavia, ter como pano de fundo que a realidade é boa, justa, bela, que há uma Inteligência Suprema a nos governar, e que as mudanças rumam para Ela. Seria esta tríade a nossa pedra angular. 


Não é mais um dogma ou um gesto primordial que sustenta nossa fé, mas uma busca dialética.

Importa enfatizar, todavia, que Kardec nunca deixou de acreditar que Jesus era um norte seguro, cujo discurso real não deveria apresentar contradições, sendo o mestre perfeito da humanidade. A revelação progressiva da verdade, então, seria a compreensão perfeita do verbo de Jesus. Falo melhor sobre isso na próxima postagem. 

Conversando com amiga psiquiatra



Uma amiga psiquiatra, que anda rondando o Espiritismo, me disse assim: "o Evangelho segundo o Espiritismo é lindo. Gostei mais dele do que do Livro dos Espíritos. Ele traz mais esperança".


Desde a primeira vez que ela me abordou, não imaginava que ela iria mergulhar tanto. As pessoas vêm a mim, pedem dicas, passam de raspão e seguem. Mas, algumas param, leem, se encantam. O conhecimento passa por três grandes vias: o estranhamento, o encantamento e o encontro. Por elas, entendo ter passado essa moça.

Venho construindo um ambulatório de saúde mental na atenção primária, e já havia me esquecido o quanto os pacientes de lá são intrigantes. Abstração feita da ansiedade e depressão – mal do século, que nos conduzem à busca de uma escola de pensamento que dê mais alento do que apenas medicalização – as ditas alucinações de alguns pacientes nos intrigam sobremaneira, tamanha a “elaboração” e, em certos casos, a inocência. Por que medicalizar essas visões de convivência pacífica? Muito pano para manga para estranhar. Foi o que disse a ela: 

“Por mais escolas de pensamento que a psiquiatria tenha engolido, sentimos que ainda falta explicação para a estranheza dos fenômenos mergulhados nas profundezas das pessoas.” A amiga aquiesceu.

Admirei, então, que ela, tão mergulhada em ciência, tenha se encantado mais com o Evangelho Segundo Espiritismo do que com o Livro dos Espíritos. Não que o Livro dos Espíritos seja científico, mas é mais a fim da produção de saber da ciência, pois são diálogos, argumentos, contra-argumentos e comentários, do que mensagens de consolo e direcionamentos morais, como o é aquele primeiro livro.

Quando entramos no universo da psiquiatria, um véu de explicações é posto sobre nossos olhos a fim de apaziguar a angústia de ver todas aquelas personalidades desestruturadas vagando nos corredores dos ainda manicômios. Algumas pessoas se apegam ao discurso estritamente racional para elevar a visão aos píncaros cerebrais, e afastar-se do coração. Todavia, o que vejo se espalhar por aí, como dizia Chico Xavier, é uma “saudade de Jesus”. Nesta personalidade, era menos ciência e mais acolhida, mais amparo, mais nortes, mais amor.

Como que uma projeção laica do que foi aquele encontro histórico da humanidade com o que demos de denominar salvador, parece ser isso que procuramos hoje em dia: menos ciência, mais acolhida, mais amparo, mais nortes, mais amor. Não que a ciência deva inexistir. Isso nos devolveria à selvageria. Por isso o Livro dos Espíritos, o Livro dos Médiuns e, de certa forma, a Gênese. Todavia, quando Kardec ousou atrelar, indelevelmente, o Espiritismo ao Cristianismo com a sua “Imitação do Evangelho”, acrescentou entre nós o (re)encontro com o Cristo, buscando tocar o sentimento que é grande parte de nós, sem prescindir da razão, essa ponta de iceberg. A isso ele chamou de “fé raciocinada”, o que, para os detratores da religião, parece um absurdo, mas que para mim, criado nesses moldes, é uma doce razão – aquilo que adoça a razão.

Sinto que, feito meu amigo ateu, terei muito o que falar sobre essa visita mansa de minha amiga.

Demolidor e Espiritismo



Demolidor é a face heróica de um advogado nova-iorquino que, querendo fazer cumprir a lei obsessivamente, assume o papel da polícia para além da lei. O advogado, obediente à Deus sobretudo em sua profissão, assume o papel de perseguidor do crime sob a fantasia de um demônio. A história faz questão de por em evidência todo o paradoxo que é assumir estas duas funções: a de Deus e a do Diabo na mesma carne.

Da idade moderna para cá, o papel que Deus exercia de fora, sendo vigilante de nossos atos, fosse para nos premiar ou para nos castigar, foi deixando de ser transcendente, passando a ser democrático e, perto dos dias de hoje, com a tendência de ser íntimo.

Cada uma dessas “formas de Deus” se manifesta perfeitamente em uma política. Quando entendíamos Deus como absolutamente transcendente, nos dominava um rei eleito pela própria natureza que comungava com a divina. Ao termos pendido para a democracia, derrubado a bastilha, destronado o rei, Deus se encarna no povo. Dá-se início a um processo de secularização sem precedentes na história da humanidade. Ao contrário do que muitos advogam, secularizar não é matar Deus, mas interiorizá-lo de tal forma que Ele não precise existir fora de nós, a nos dar ordens como se fosse uma terceira voz. Na democracia que temos, a vigilância se dá por cada vizinho, respaldado pelas instituições que fazem cumprir as leis. Esse processo, pela lógica do movimento, tende a um Deus que habita perfeitamente o interior da cada um, sem necessidade de instituições ou vizinhança para nos disciplinar.

Neste ponto, não se precisaria de constituições, pois a lei estaria impressa no nosso próprio código genético, exteriorizada sem falhas, já que o espírito teria se harmonizado, enfim, com a Lei que rege tudo.

Demolidor é um híbrido dessas fases. Ele tanto necessita de um Deus absolutamente exterior a si que mantém contato permanente com o seu padre confessor, responsável por guiar aquele coração católico nos impasses de sua luta contra o crime. Como advogado, ele é o elemento do povo consciente da lei, o representante da instituição que trabalha para que ela seja seguida. Como Demolidor, ele também é um vigilante das regras, mas fazendo-as cumpridas para além das instituições. Ele se faz uma nova instituição de justiça, uma que parte do próprio indivíduo, elevado a categoria de herói.

Para o Espiritismo, Deus não é um ser distante da criação. Não a criou e se afastou, mas pulsa em seu íntimo, fazendo-a vicejar. Contudo, para os seres humanos, deixou uma ilusão de separação que lhes permitisse um desenvolvimento consciente.

A Lei que emana de Si, quer Ele que ela brote espontaneamente do coração de cada um. Para isso, o que menos importa é o castigo do inferno e as recompensas do céu, mas a construção do seu Reino de Justiça, Amor e Caridade, como ensinado por Jesus, dentro da consciência individual.

A sociedade perfeita – ouso elaborar o conceito dela agora – seria aquela em que cada indivíduo pudesse agir escutando a voz da própria consciência, então, burilada por “n” milhões de anos, esculpida que foi pela dor e pela alegria de cada vida por onde passou. Essa voz amansada pelo esforço próprio de crescer, enfim, coincidiria com a de Deus, aquela mesma que ressoa no âmago de tudo. Na maioria das vezes ignorada porque a ansiedade da vida nos provoca distrações demais para não conseguirmos ouvir nem mesmo a nossa própria voz.

***

P.S.: Ah! esqueci de dizer que esse advogado faz tudo isso sem enxergar um palmo à sua frente, ouvindo apenas os sons de toda essa agitação que é o mundo. Minha metáfora, portanto, com a audição não desliza nesse último parágrafo por acaso. Nem tão pouco a cegueira das coisas do mundo está por acaso estampada em um herói católico que vive a vida em busca de escutar o chamado divino de justiça.

Prece para abençoar os caminhos de uma criança em seu batizado

Senhor,

Que o Teus caminhos se cumpram nesta vida, é o que preciso desejar. E que se houver algo mais, seja a lucidez para que esta criança consiga enxergar a nobreza de cada palmo que trilhar. Afasta-a da cegueira, pois das ilusões não é possível afastar. Que o seu propósito, homem entre homens, não seja perdido da lembrança. Sempre que perdida, que seus olhos sejam sedentos da luz que alumia em toda parte conduzindo-a para a casa, que é tudo, que somos todos. Enxergar no mundo e nos homens a própria morada. E que esse amor que sobre ela já se derrama vindo dos pais, se a morte vier lhe usurpar, possa ela compreender que maior amor não há senão o de existir, e isso já é ser amado - por Ti.

(De inspiração spinozista)

As razões da fala "Ele deve pagar pelo que fez"



Estamos sempre sujeitos à traição do que esperávamos acontecer. Porque a vida não segue nossa cartilha. Mas, como o nosso eu sangra, vem a revolta. Daí podem partir dois caminhos: o perdão ou a vingança. É a esse último campo que pertence a fala “ele deve pagar pelo que fez”. 

Esse pagamento que desejamos de quem acreditamos estar em dívida conosco pode seguir basicamente dois caminhos: um ativo, em que sujamos nossas próprias mãos; um passivo, em que almejamos que os outros sujem as mãos por nós. A essa última ordem pertence nossa satisfação com o castigo que cai, a distância, sobre o nosso, assim considerado, agressor.

Se elevarmos esse desejo passivo até as últimas consequências metafísicas, é o nosso mais íntimo – e vil – consolo que Deus desça Sua pesada mão esmagando nossos inimigos. No cristianismo, é esse o mesmo Deus que acreditamos ser todo bom. Então, nossa literatura religiosa se esmera em criar cenas dantescas e imaginar (revelar?) os sofrimentos mais atrozes para os que foram contrários a nossa forma de pensar a moral sã.

Não é preciso que alguém faça algo diretamente contra nós. Basta que a pessoa tome a liberdade de se desviar do caminho que consideramos justo. Como esse caminho, seguido religiosamente, é a nossa mais nobre verdade, o sustentáculo de nossa identidade, o nosso caráter, que almejamos ser rocha, também os desviados devem ser punidos pela sua má escolha. É o que nos mantém caminhando na trilha certa.

Esse comportamento que descrevi em poucas linhas é um dos mais primitivos da consciência religiosa. Tão primitivo quanto, mas menos abstrato, é o da vingança pelas próprias mãos. Alguns dizem, com razão, que é covardia o desejo de um deus exercer a vingança por nós. Projetamos a ideia de um deus que encarna a força que gostaríamos de ter para colocar em prática nosso ódio.

Existe, contudo, outro tipo de consciência religiosa infinitamente superior a essa: não se importar com o que vai acontecer com quem nos fez mal ou praticou o mal. Acreditar mesmo que eles possam se dar bem ao final. E que outro tipo de felicidade os espera. Ou, de forma ativa, desejar-lhes o bem. Como, então, sustentar nossa vontade de virtude se os que consideramos maus, devemos vê-los com olhos felizes?

Eis a virtude inquebrantável: a que não precisa se erguer sobre o sofrimento dos maus. Ela é independente. Basta por si mesma. Não precisa do contraste para existir. Repousa em olhos de criança. É a serenidade por excelência. Um universo construído sobre esse olhar não tem inferno. Nem céu. Essa é a imagem do eu em paz consigo.

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Criança

Quando os entendidos falam do alto de seu Eu que o nosso eu é vão, dá-me vontade de rir. Um Eu que fala a outros que eles não prestam é um dominador. Mas, quando vem o pecado em mim e, apesar de todas as minhas defesas contra a depressão, caio, a Virtude suprema, o Eterno bem e sua Pessoa me vem a mente, um verdadeiro Eu para quem sou nada. Porém, me tens como filho, me acolhes do infinito, em Ti me recomponho. A experiência das crianças é a mais honesta que se pode ter, quando somos humildes.

domingo, 7 de janeiro de 2018

O novo entendimento de santo

 

Por que, no mundo, tão amiúde, a influência dos maus sobrepuja a dos bons?“Por fraqueza destes. Os maus são intrigantes e audaciosos, os bons são tímidos. Quando estes o quiserem, preponderarão.” (O Livro dos Espíritos, pergunta 932)

Pode parecer estranho falar em novo entendimento de santidade, já que esta participa daquelas categorias que se subsumem no divino, e este seria a invariância por excelência. Mas, é isto mesmo, o divino é invariável, porém a santidade é ação humana impulsionada pelo divino. E, no que tem de humanidade, está submetida ao processo histórico. 

O que há de eterno, por outro lado, é que as várias formas de santidade que se apresentaram na história humana são como faces perfeitas de um ângulo de Deus. 

Na idade Média a figura icônica do santo era mais ou menos aquela figura monacal, distante da vida enraizada no mundo, trabalhando desde a madrugada entre preces e mortificações para remediar o pecado de seu corpo. O espírito deveria se render a Deus. 

Francisco de Assis foge à esta imagem, talvez, apenas pela distância corporal com o mundo (embora em espírito ainda fosse um estranho) e pelo aspecto lúgubre das mortificações (já que era um bobo alegre de Deus). 

A cultura do renascimento traz outras formas de enxergar a virtude. A mais cultuada era a da audácia de conhecer coisas novas. Era o retorno do heroísmo clássico, transmutado pelo espírito do cavaleiro medieval, rumo às exigências de um mundo que crescia exponencialmente a olhos vistos. A África era margeada, as Índias descobertas, a Mongólia desvendada, as Américas inauguradas aos olhos do europeu. 

Como deve ser o novo santo?

Não pode mais viver em um mosteiro. Deve participar do mundo. A riqueza que vai acenando em todas as partes aponta que o paraíso talvez ainda estivesse por aqui, e não perdido em uma transcendência qualquer cercada por arcanjos furiosos.

Como toda verdade revelada, foi corrompida. A insânia humana de conquista quis subjugar o mundo, todas as culturas que se descortinavam, à sua forma de ver. 

Pensam os espíritos corsários que Deus lhes havia dado novas terras para que delas fossem proprietários, ao ponto de fazerem o que bem entendessem por lá. Engano. As novas terras eram novos ares para sanar as chagas de seres que há muito vinham mergulhando a história em sangue.  

O novo santo nestes tempos de mundialização deve ser um que não ignora o chamado de Deus para assumir o mundo. Amplia sua visão de irmão para além da gleba, do clã e da ordem. Sacrifica seus rituais em favor do necessitado. Reencontra Deus para além do santuário. É aventureiro como todo santo deve ser, já que sair de si para encontrar Deus, em qualquer época é arremessar-se em um mar bravio a nado.  

Espírito Santo segundo o Espiritismo



Papai, que foi catequisado em cidade do interior do Ceará, afilhado de Padre Cícero, médico, um dos melhores de sua turma, muito sabedor de história, leitor contumaz de livros culturais, me confessava não entender muito a tal da santíssima trindade. Tendo me iniciado no espiritismo, passou a incumbência desta compreensão para mim.

Mesmo sendo uma seita herética em relação à igreja católica, entendo que não devamos desprezar a experiência da crença de toda uma história da comunidade cristã. O Espírito Santo e a Santíssima Trindade da qual ele participa são símbolos muito significativos onde todo aquele que se quer cristão, ainda que herético, deve se situar.

Já vi no movimento espírita se dizer que o Espírito Santo seria a plêiade de Espíritos superiores comunicantes que trouxeram a revelação espírita ao mundo. Seriam, portanto, Espíritos santos. Podendo ser tido como uma pessoa apenas simbolicamente, isto é, uma comunhão de Espíritos. Dizem ainda que as três pessoas da trindade não seriam consubstanciais. Pai originou filho que originou os Espíritos santos*. 

Como a trindade é um dogma fundamental, vê-se já por aí que, ao contrário do que Kardec imaginava em 1862, não dá pra ser espírita e católico ao mesmo tempo.   

Diz, contudo, o próprio catecismo da igreja católica do ocidente que "a tradição oriental exprime o caráter de origem primeira do Pai em relação ao Espírito" (art. 248) e que Este se origina Daquele a partir do Filho. Então, já que nem as igrejas católicas se entendem, acredito não estarmos cometendo tão grande pecado em discordar também e manter a posição: Pai origina Filho que origina Espírito Santo. 

Não creio, todavia, que o Espírito Santo seja os Espíritos santos, pois a grandeza do que a tradição cristã entende por Espírito Santo está em algo difuso que antes falava pelos profetas e após a promessa de Cristo do Paráclito passaria a estar para sempre entre os discípulos os conduzindo. O poder que essa descrição tem ultrapassa e muito essa ideia de uma legião de Espíritos norteadores. É como se fosse um poder de Deus capilarizado pelos seus filhos. 

O que seria, então, o Espírito Santo?

Ouso levantar a hipótese de que seja algo em nós de divino que Jesus despertou ao deixar seu rastro histórico. Está fora de nós e em nós ao mesmo tempo. É como um cordão umbilical renovado que nos religa (religião) a Deus. Ele nos permite prodígios e é o que torna possível a caminhada para a salvação. 

Os que se denominam portadores da mensagem esotérica cristã sempre falaram da dimensão da doutrina do Cristo que não nos queria salvar de fora, mas que nos devolvia o poder de salvarmo-nos a nós mesmos. 

Encarando assim o Espírito Santo, isto é, esta força beatífica que nos envolve e nos invade, despertada por Jesus, acredito que as duas visões se reconciliam: Jesus nos salvou acordando o poder salvífico em nós. A mediunidade é apenas um átomo desse poder, outros tantos surgirão, outras tantas forças hoje tidas como parapsíquicas, o homem novo, o homem-psi, ou ainda melhor, o homem santo que vai acordando gradativamente para sua inalienável imortalidade.  

sábado, 6 de janeiro de 2018

O discurso demoníaco deve ser calado a todo custo?



Na postagem passada falei sobre o discurso demoníaco que a ciência busca combater, restabelecendo a verdade divina. Todavia, outra questão que se deve considerar é se o discurso demoníaco deve ser calado a todo custo, ou, em outras palavras, exorcizado.

A posição espírita é diferente da do exorcismo. Se é verdade que o este discurso é identificado com a crueldade absoluta, por outro lado o que chamo de discurso demoníaco não se encarna por inteiro no ser humano. Ele é como uma ideia transcendental, uma categoria analítica necessária para entendermos certos movimentos da realidade. Kant falava assim da ideia de Deus, de sua necessidade para entendermos o movimento da ciência como legítimo. 

Assim como não há Deus encarnado no homem, abstração feita da crença cristã a respeito da existência histórica de Cristo, não há o demônio. O que encontramos é sim o divino e o demoníaco tomando mais ou menos espaço no coração das almas de forma flutuante. 

A cosmovisão espírita endossa a judaico-cristã:  

O divino é perman-ente, e o demoníaco é transi-ente.  

A esfera em que imaginamos Deus é superior a em que transita o demônio. O que isso significa? Que qualquer ação demoníaca é passageira. Por outro lado, o homem tem vontade de Deus, e qualquer vontade demoníaca que o mova nem é perpétua nem é forte o suficiente para superar a vontade divina a longo prazo.

O que se vê, então, é o movimento demoníaco sendo um caminho alternativo ao divino, porém sem possibilidades de determinar o destino do homem. O livre-arbítrio permite o clinamen, mas Deus atua para o retorno. É o que se chama, na tradição cristã, de ação salvífica de Deus. 

O exorcismo como atitude castradora da ação demoníaca não é o caminho do espiritismo, mas o diálogo com o que de mal se manifesta no discurso a fim de redirecionar o indivíduo, encarnado ou desencarnado, para o bem. 

O discurso demoníaco deve ser calado a todo custo?

- Não. Deve-se compreender quais as condições que permitiram sua instalação e, sem muitas delongas, reconduzir o indivíduo para caminhos de reencontro com a vontade de Deus.    

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

Ciência como denúncia contra o demônio



Por que tanta crítica e desconfiança tanto na filosofia quanto na ciência?  Por que tanta rigorosidade metódica para extrair a verdade dos fenômenos? Por causa do discurso demoníaco.

Talvez você dissesse: "não, é pelo soberano bem, pela felicidade suprema". E nada disso, nem o soberano bem, nem a felicidade suprema, não fariam sentido suas buscas se não houvesse o demônio. 

Não estou falando necessariamente de uma entidade antropozoomórfica que espreita a queda do homem, mas sim de tudo o que espreita a queda do homem. 

Se de um lado a tradição cristã colocou Deus como Aquele que preparou para seus filhos o paraíso, de outro, enxergou uma divindade menor que serpenteia a natureza humana calcando sua perdição. São duas forças metafísicas ativas: uma oferecendo a salvação, a outra, o contrário. 

É mais condizente com a realidade circunvizinha entender estas duas forças como existentes do que definir uma pela ausência da outra. O holocausto nazista não se sobressaiu em crueldade pela mera ausência de democracia.   

O que seria a força demoníaca, então? Todas estas ações com força própria que levam o homem ao mal: a trapaça, a mentira, a ganância. Não entraria aqui o engano, por exemplo, pois este não é uma força ativa, mas o deslize de alguma força. 

A filosofia e a ciência, pois, não se esmeram em extrair verdades da pedra apenas pelo gosto lúdico de acertar. Elas querem salvar almas, e sabem que uma mentira que se propaga propositadamente como verdade é geradora de morte, merece, pois, ser questionada e desmascarada. Sabe que a trapaça se imiscui entre os fatos, e que é preciso denunciá-la a fim de que não faça vítimas.

Um artifício demoníaco que se incrustou nas ciências humanas foi a defesa de que não há verdade, apenas interpretações. Este subterfúgio permite que o discurso demoníaco seja acolhido como mera perspectiva. As ciências exatas não caem de todo nessa falácia, e é ainda o que nos permite estar vigilantes. 

Eis um fundamento metafísico da filosofia e da ciência que ignoramos, mas sem o qual não podemos entender a energia movente de muitos cientistas e filósofos genuínos.

Qual o incoveniente de se construir uma doutrina em torno de um médium?



Tive vontade de escrever esta postagem porque é disso que se trata alguma parte do posicionamento de certos antropósofos com quem venho tendo contato, mas também boa parte do movimento espírita que, sem dar valor à obra de Kardec, vai fundamentando seus conhecimentos apenas em romances mediúnicos.

Vamos começar por este ponto: o médium pode trazer informações falsas ou frutos da própria imaginação. Quando assim é, não é difícil de entender onde está o inconveniente. 

Digamos, porém, que o médium traga apenas informações aparentemente boas, justas e belas, e que a própria imaginação não tenha causado interferência. Como saber se são, de fato, boas, justas e belas se não pelo olhar crítico das pessoas?

No primeiro caso seria uma doutrina fundada na falsidade, no segundo, na possibilidade da falsidade.

Vamos avançar e considerar que o médium possui um desenvolvimento intelecto-moral tal que consiga controlar o teor de suas comunicações e mesmo acessar os "mundos superiores" sem se perturbar. E que ele, ainda, tem a virtude de passar estas informações de forma clara e precisa. É o que parecem considerar certos antropósofos em relação à Rudolf Steiner ou muitos espíritas em relação à Chico Xavier. Qual o mal disso? É que, nesse momento, a verdade flerta com o poder de forma muito perigosa. 

Uma tal pessoa, portadora desta aura de verdade, imporia suas concepções facilmente sobre muitos. Qual o problema se for a verdade mesmo? O problema é que, como Kardec bem considerava, não temos condição de saber a verdade de uma revelação apenas pela índole do médium mas apenas após a análise do conteúdo da mensagem, isto é, a verdade passa pela interação do médium e do ouvinte em pé de igualdade e respeito. Considerar como verdade qualquer informação emitida por um sujeito pretensamente portador de autoridade intelecto-moral é dar o pescoço à uma possível guilhotina. 

O projeto socrático consistia exatamente em ensinar às pessoas a, analisando as questões por elas mesmas, chegar a verdades construídas em diálogo que tem a força de apaziguar as exigências de dois espíritos sequiosos de verdade. Saíamos, assim, de uma monarquia para uma democracia. 

A natureza humana não comporta ainda estas perfeições projetadas em muitos médiuns e gurus. Toda monarquia guarda em si a corrupção do totalitarismo, e a democracia, a da demagogia. Aquele que se arvora portador de uma verdade limpa extraída de mundos superiores contra a qual ninguém pode se levantar está mais para um déspota ou demagogo do que para novo messias.

De outro modo, me parece que Steiner dava muito valor à filosofia da liberdade, pedindo para que todos os indivíduos analisassem suas verdades com o cuidado necessário, e Chico Xavier nunca tentou ser chefe de doutrina, sempre submetendo suas revelações ao evangelho de Cristo e às obras básicas de Kardec. Assim deve ser.

O esoterismo da escola do meu filho



Estou tendo acesso a literaturas esotéricas, principalmente porque meu filho estuda em uma escola cujo fundador da proposta, Rudolf Steiner, foi um alemão imerso nestes conhecimentos. 

O que me encanta na pedagogia é muito do que os tempos pós-modernos estão precisando: menos pressão, mais respeito pelo ritmo da criança, mais arte, mais investimento na sensibilidade, no entendimento estético, mais corpo, mais movimento, mão, suor, sujeira. E, particularmente bem evidente nas obras Steiner, o desenvolvimento do olhar místico, ou simbólico se preferir.

Há toda uma corrente filosófica originada do romantismo alemão que aponta ser o entendimento da vida e das pessoas através do sentido estético o futuro da humanidade. Entenda-se futuro não a utopia ingênua, mas o que é necessário ainda acontecer para conseguirmos apaziguar muitos conflitos atuais - presentes.

O filósofo Luc Ferry, bastante influenciado pelo pensamento alemão, havia dito que a grande questão contemporânea sobre a qual a filosofia mais devia se debruçar era o problema do gosto para era democrática, isto é, de como a arte possibilita um entendimento entre as pessoas por caminho diverso ao da razão. Ora, as grandes guerras mostraram que a razão não parece ser um preventivo ideal contra o totalitarismo. A Alemanha e a Itália eram nações muito cultas. Pelo contrário, parece mesmo favorecer: a razão que quer engolfar tudo, dar conta de tudo, saber tudo, entender tudo, subjugar todos à verdade do Partido. Se o gosto tiver o mesmo poder de permitir entendimento entre os diferentes, seria uma força política mais sã? Permitiria o crescimento sem guerra? Essa é a questão!

Já sou bastante herege por ser espírita para criticar quem quer que fuja da norma católica, mas várias questões me inquietam no esoterismo steineano: 

1. A falta de um método claro que permita o compartilhamento, e portanto a crítica, universal da verdade que se prega

Steiner quis ultrapassar isso tentando iniciar as pessoas em sua forma de ver o mundo, ou melhor, os mundos superiores. E em algumas palestras ele é bem duro com os interlocutores dizendo, por exemplo, que se a pessoa não teve o resultado esperado segundo o que pregava sua "dica" é porque ela não fez direito. 

Vá lá que esse é o mesmo argumento que meus professores de medicina carrascos davam aos alunos que não chegavam a um certo resultado dentro do laboratório. Mas, não é do totalitarismo que estamos querendo escapar? Para que Auschwitz não se repita...

O espiritismo diz que esta visão dos mundo superiores não se alcança por esforço. É uma possibilidade dada por Deus em certa encarnação, a que poderíamos chamar de dom. Não seria Steiner portador de tal dom e queria ele que todos o fossem forçosamente? Kardec achava que tal esforço só poderia originar produtos da imaginação. Daí outro ponto...

2. O exagero de revelações

O espiritismo já havia provocado uma ruptura com a tradição católica que rezava ser apenas, e unicamente, através da aceitação de Cristo, com a consequente e necessária adesão à sua igreja apostólica romana, o caminho da salvação. O espiritismo vinha dizer que não, que era a caridade. 

No fundo, olhando a argumentação toda de Kardec, significava dizer que a pessoa que verdadeiramente abraçou a Cristo mostrava o distintivo desta adesão com o esforço de abertura ao próximo. 

O que as igrejas cristãs oficiais pregam, devemos buscar entender, é que nenhuma obra substitui a aceitação amorosa da figura de Cristo. Essa aceitação é condição sine qua non de todo o resto. 

Steiner faz as vezes de aceitar o Cristo como centro de sua teoria esotérica ou teosófica, ou ainda, antroposófica, mas insere um conjunto de elementos estranhos aos discursos oficiais que, creio eu, perturbam mais do que esclarecem. 

Outras incursões, todavia, são muito bem-vindas, por exemplo, a de reconhecer a vida humana como impulsionada por uma força crística, e a história da humanidade, pelo mistério do Gólgota. Sem pudor vai estabelecendo parâmetros para mostrar o que seria o comportamento saudável tanto da encarnação do espírito no corpo, como do progressivo domínio deste por aquele. São voos que nem Kardec nem os Espíritos através de Chico Xavier decidiram dar tão altos. É que, defendia o codificador na sua sensatez, perde-se o ar em zonas tão rarefeitas das esferas das revelações, e as figuras poéticas tomam o lugar da precisão.

3. É possível acessar conhecimentos dos mundos superiores e tê-los disponível ao intelecto encarnado de forma clara?

Steiner fala da "piscina" Akáshica, que seria um todo de conhecimentos bem vivos do mundo espiritual ao qual poderíamos ter acesso em êxtase místico. 

Os seguidores da antroposofia advogam que Steiner conseguiu ter fôlego para entrar lá e trazer a coisa bem clara. Por que ele e não João, e não Daniel, para citar autores apocalípticos que trouxeram revelações akáshicas milenarmente guardadas? 

O que quero dizer é que a literatura apocalípitca, que mais akáshica não poderia ser, está toda encarnada em um simbolismo profundo que desafia as maiores mentes exegéticas e provoca dissensões escolares. Steiner seria o iluminado supremo que teria ultrapassado a capacidade dos autores apocalípticos de expressarem coisas transcendentes para as mentes imanentes na carne? Sem desprezar a grandeza do homem, acho mais sensato pensar que este grande especialista de Goethe trouxe de lá outras tantas imagens que, ao se encarnarem na linguagem humana, viraram símbolos de portentoso valor. É o mesmo que acredito acontecer com outros tantos romances de Chico Xavier. Tomamos eles ao pé-da-letra para melhor lê-los, mas não os deveríamos levar a ferro e fogo, senão extrair a essência das lições morais que permeiam aquelas cenas.

 

Por fim...

Queria pontuar, que, apesar destas considerações, a ciência espiritual de Steiner é muitíssimo intrigante. Uma mente prolífica que saiu espalhando milhares de conferências sobre os mais variados assuntos em um mundo entreguerras, semeando verdades inquietantes nos mais diversos terrenos (medicina e terapias diversas, arquitetura, agricultura, religião, pedagogia, dança, pintura, política), e que frutificaram angariando adeptos fervorosos. 

Assim como Chico Xavier, renegado pela ciência oficial, este é outro médium que precisamos estudar com calma.