domingo, 13 de setembro de 2015

É preciso perdoar Deus


Clarice Lispector, em 1970, publicava um conto, no Jornal do Brasil, intitulado Perdoando Deus. Nele descreve o sentimento de um êxtase estranho em que se vê tomada por um amor por tudo o que existe - Deus sendo tudo o que existe - como se fosse a mãe do vasto mundo. Amar à Deus de forma solene é o que a religião nos ensina. Mas, como sendo dele a mãe?! Isso é profanação. De súbito, topa com um rato morto a lhe quedar para o outro extremo do divino, desce aos infernos de si. É dessa viagem psico-astrológica que tira a seguinte dedução:

"Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda."

Depois disso ela vai percebendo que é impossível amar o mundo sem aceitá-lo por completo, no que há de esplêndido e de grotesco. Talvez o asco contra o podre do mundo, e de Deus por conseguinte, é o desprezo por esse outro lado de si. 

Entretanto, a foto que postei no início dessa reflexão não parece se encaixar nesse movimento de alma. Dirão os teólogos mais radicais que parto do lugar errado: o que é preciso perdoar é o homem que provoca toda essa miséria. Todavia, o lugar filosófico é o que me importa: quem criou o homem e sua pulsão de morte?

Daí que, ao contrário de todos os movimentos religiosos que partem sempre da visão de Deus olhando para o mundo, eu me coloco na visão dos transeuntes olhando para o universo e assim perdoar Deus. Sei que a profanação dessa frase é sem medida. Contudo, o movimento de perdão é justamente o movimento cognitivo-emocional de se abrir para o outro em toda a sua alteridade, o que significa em toda a sua estranheza. 

- Por que o Senhor silenciaste? - pergunta o ortodoxo papa emérito Bento XVI quando visitou o campo de concentração do holocausto judeu em Auschwitz. 

Infelizmente, não venho neste post trazer uma resposta plausível. Não quero falar das dívidas que arrastamos da encarnações pretéritas, sob pena de menosprezar a dor. Quero, de fato, deixar o coração aberto, e não mergulhar em alguma "matemática errada". Coração aberto, coração sangrando. 

Na temática do perdão à Deus, meu filósofo materialista Sponville disse que a única desculpa é Ele não existir. 

Não quero desculpas. Desculpar é por demais exato. Perdão é a única palavra que encontro para o movimento da alma que envolve carinhosamente o agressor e deixa-o existir dentro de nós, talvez mesmo conduzindo-nos a pensar que nós tenhamos sido o agressor. Ela, enfim, e então, nos confunde.  Querer que Deus seja a imagem e semelhança de tudo o que eu acho que Ele deveria ser, eis a grande prepotência humana, a verdadeira profanação. É o que Clarice enxerga ao final:
"Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha vida maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe."

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