sábado, 14 de março de 2015

Uma síntese da cosmovisão católica



Estávamos discutindo em um grupo de médicos sobre a oficialização ou não do uso de drogas recreativas. Muitas falas coerentes e importantes, algumas contra, outras a favor. Mas, eis que chega um colega católico que expõe sua posição que considerei um belo e inteligente resumo da concepção de mundo católica numa perspectiva tomista. Decido transcrever aqui para o blog a fim de deixar registrado no marcador Outros Credos essa visão de mundo para os que tem vontade de melhor entender:

Médico Católico: Só uma contribuição para o debate, que, concordo, não dever ser erístico e polêmico. Quanto à questão das "leis de Deus", devemos entender que não se trata de imposição ou proibição. Trata-se mais de amor. Uma resposta de amor a um Deus que nos amou primeiro. E que, ao mesmo tempo, concedeu-nos o livre-arbítrio, sem o qual não se poderia amar. Veja que ninguém pode amar verdadeiramente se não for livre (basta imaginar alguém com uma arma na sua cabeça ordenando: "Ama-me!")... Nunca vai funcionar. Ou melhor, pode até haver amor de um lado, mas como não há livre resposta/reciprocidade nunca se obterá amizade. Foi para isso que Deus nos criou, para uma amizade com Ele, para participar de sua beatitude, da vida divina. Assim, os mandamentos constituem não um legalismo de "faça isso ou aquilo e não faça isto ou aquilo". São, antes de tudo, "um manual de instruções" que indica o uso apropriado do "equipamento" a ser manuseado, no caso, a vida humana. Como um inventor, que antes de construir seu invento, concebe sua finalidade, também Deus tem seus desígnios e concebeu o homem dentro de uma ordem e uma finalidade. Igualmente, se cremos tão facilmente que enzimas e proteínas outras agem conforme uma lógica, porque não se pode intuir que haja uma ordem na vida humana do ponto de vista ontológico? Sei que Kant fez o desserviço de acabar com a metafísica (e olha que era um "cristão piedoso"...) dizendo, em linhas gerais, que nada do que não puder ser verificado empiricamente, não pode ser conhecido ou intuído... Problema é que ele não deixou claro baseado em qual experiência ou dado empírico ele afirmou essa restrição. Pura paralaxe cognitiva*. Bom, sem mais delongas, as tais "leis de Deus" seriam um caminho de cumprimento da finalidade para a qual o homem foi originalmente concebido. São recomendações, que não se tornam um fardo pesado para quem ama. Ninguém precisa obrigar alguém a amar a sua própria mãe. Simplesmente se ama e, sem muito questionamento, sabe-se que suas orientações são dignas de crédito. O Criador deu balizas seguras para que a criatura se realize dentro do plano para o qual foi concebida. Mal comparando: o inventor da cadeira (se é que existe um!) pensou nela para assentar o traseiro e não para pôr na cabeça como chapéu; igualmente, o ser humano tem um desígnio para o qual o Criador o criou, e muito logicamente não foi para algo tão pequeno como o prazer fugaz de um entorpecente. 

Allan: Parece-me, Amigo, que a posição de Kant é bem coerente com a de cristãos piedosos. O que ele basicamente fez foi tirar do capítulo da lógica a "prova da existência de Deus" e devolver ao campo da fé. Nossa lógica não funciona para defender a existência de Deus - nem defender nem refutar, ela dá tilt em certo momento. Devemos nos valer de outros parâmetros, outros sentidos, outras sensibilidades. Falar de como deve ser a lei de Deus é complicado para alguém que não é Deus. Podemos, sim, confiar que, por exemplo, uma pessoa fantástica como Jesus e um povo respeitado como o judeu estejam falando verdades extremamente válidas. Confiar, crer, ser fiel, formular um discurso coerente que as sustente na razão esquematicamente. Provar que é assim? Complicado. Daí que, nessa perspectiva kantiana, longe da teocracia, em plena ebulição democrática, a discussão levantada pelo nosso colega é (infelizmente para alguns) mais do que pertinente. E o cristianismo é UMA fala possível e merecedora de respeito tanto quanto...

Médico católico (após ter digitado minutos seguidos, entendo que tecendo uma resposta tão clara quanto sintética, sem perder a profundidade): Deus não precisa ser provado mesmo, caro Allan, mas razão e fé jamais serão incompatíveis. Não se trata de querer provar com argumentos ou fórmulas a existência de Deus. Mas, o que Kant legou à humanidade foi a impossibilidade total de que Deus pudesse ser, ao menos às apalpadelas, buscado através da razão natural e da filosofia. O homem é sim "capaz de Deus" (capax Dei), e esse legítimo esforço, empreendido por homens como Aristóteles, que se aproximou bastante de uma contemplação da existência de Deus (embora a plenitude da revelação cristã tenha se dado com Jesus), passou de repente a "não ser algo possível" após a Crítica da Razão Pura, pelo menos o homem moderno/racional/empírico/científico, etc. E outra coisa importantíssima a se pontuar é que o pressuposto básico do Cristianismo é que Jesus é Deus que se "fez carne e habitou entre nós". Então, se isso não estiver bem claro, aí realmente Jesus vira apenas mais uma personalidade elevada ou um líder religioso. Quando digo que o homem é capaz de Deus, não estou dizendo que a razão natural desvenda todos os mistérios de Deus. Mas, que é possível, por exemplo, enxergar na criação muitos vestígios de Deus, tal como alguém que contempla uma obra de arte e percebe/intui, ainda que de modo imperfeito e limitado, algumas características do autor da obra, sem ter a pretensão de esgotar toda a grandeza do autor. Isso é possível. Mas, para além disso, Deus mesmo se encarnou e nos deu a conhecer muito mais do que só a razão poderia alcançar. O Autor fala de si mesmo. Ninguém melhor, claro. E se Ele é Deus, como crêem os cristão desde o princípio, Ele não se engana nem engana ninguém (nas origens do cristianismo foi necessário inclusive enfatizar a natureza humana da pessoa de Cristo, pois ninguém duvidava da divina...). Mas, nem por isso ele impediu o homem de, através da inteligência, e da razão, meditar sobre as verdades que se conseguem enxergar com esse dom que Ele deu: a inteligência. Não uma sensibilidade extraordinária, que Ele pode também conceder, mas essa razão universal e comum a todos nós, que nos dá inclusive o nome de Homo sapiens. Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo. [essa última frase, o nosso debatedor retira ipsis litteris da encíclica papal de Bento XVI, como você pode constatar aqui]



*Paralaxe cognitiva (esclarecimento feito por outro médico do grupo): é um conceito estudado por Olavo de Carvalho. De acordo com o jornalista brasileiro, a paralaxe cognitiva é "o afastamento entre o eixo da construção teórica e o eixo da experiência real anunciado pelo indivíduo". Se trata de um fenômeno de autoengano coletivo, que surgiu na modernidade e que se encontra patente em várias obras de pensadores e cientistas.

REFERÊNCIAS de leituras sugeridas pelo nosso amigo:
1. Este site: padrepauloricardo.org
2. Encíclica de João Paulo II: Fides et Ratio

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