sexta-feira, 6 de março de 2015

Ilusões da ciência ou Discurso do método ao avesso



Quero falar, na verdade, das ilusões da maioria das pessoas que dizem pautar seus julgamentos pelo pensamento científico. Passam longe de fazê-lo. 

Um aluno de medicina abordou-me, sabendo que eu era espírita, sobre o significado e a pertinência real dos processos obsessivos e, no geral, da influência que os Espíritos exercem sobre nós. 

Expliquei tão bem quanto podia. Ao final, falou que era interessante, mas não acreditava. Balizava-se pela ciência que tinha uma visão mais enxuta, porém mais sólida da realidade. O Espiritismo se valia de premissas demais (Espíritos ao nosso redor, oceano fluídico em que estamos imersos e de que nosso corpo é feito, possibilidade de manipulação desses fluidos pela força do pensamento) para ser credível. 

Vou analisando os argumentos dele em termos de falácias, isto é, as concepções truncadas que ele tem do que é o pensamento científico. 

Falácia 1: A ciência é um pensamento que enxuga a realidade, deixando-a mais sólida. 

Tese: Por uma herança matemática, as hipóteses científicas são formuladas pelo quesito da elegância. Supõe-se que, entre duas hipóteses, se ambas explicam igualmente a realidade, deve corresponder à verdade a que se vale de menos subterfúgios para chegar ao mesmo fim. 

Refutação: Isso é válido para a elegância não para a verdade, não para a realidade. Esta é complexa, cheia de meandros, circunvoluções, sombras. Poderia se argumentar como Leibniz: foi a forma mais econômica de se dispor as coisas. Contra-argumento imediato: não temos nenhuma outra forma para comparar. O universo que há aí é o que é. É pegar ou largar. Se ele precisa de muito mais premissas do que as que as hipóteses tradicionais aventam para ser compreendido, que nos resta fazer senão abraçar? Fórmulas enxutas só tem um mérito além do da elegância: o de enxugar a realidade.  

Depois, me pergunta se há alguma máquina que tenha capturado a imagem desse universo fluídico. Eu desconheço (sabia das máquinas Kirlian, mas vejo mil vieses nos experimentos as envolvendo, achando melhor dar por ignorado esse assunto). 

Falácia 2: Para ser científico é preciso ter o objeto estudado, de alguma forma, tangível. 

Tese: Por uma herança da física clássica, os objetos que não podemos tocar para os submeter aos instrumentos de experimentação devem ser ignorados como objeto de ciência. Quase que os astros ficavam de fora da abordagem científica, mas, embora intocáveis, eram passíveis de observação por instrumentos científicos de forma "direta"*. Os espíritos e os fluidos não. 

Refutação: E o átomo, cuja existência foi pressuposta por feixes catódicos? E o elétron, cuja posição já não pode ser medida ao mesmo tempo que sua velocidade - ou se toca em um dado ou no outro? Não, não é pelo toque que se faz a ciência. Aliás, essa concepção originou as experiências mais cruéis da história da medicina. 

Então, tentando melhor me explicar em que se baseia o pensamento científico, assevera:

- Quando vou passar uma dipirona para um paciente, tenho em mente que aquele remédio é válido porque baseado em experimentos que revelam uma resposta terapêutica 30% superior ao placebo, por exemplo. 
- Que experimentos? - replico.
- Experimentos sobre pacientes.
- Que pacientes?
- Os que participaram do estudo.
- De onde eles eram e quantos eram?
- Não sei bem estes por menores da pesquisa científica...

Falácia 3: O experimento científico nos confere uma resposta universal para nossas perguntas. 

Tese: Ainda por uma herança da física clássica, tomando a gravidade como modelo, as leis que ela sugere tem o mérito de valer para todas as pessoas do mundo, senão pela eternidade, pelo menos por um bom tempo. 

Refutação: É válido para todas as pessoas do mundo, mas na ordem de fenômenos do cotidiano. Os pilares da física clássica perdem precisão no infinitamente pequeno, no infinitamente grande e... no íntimo do ser humano. Não se pode, quando se trata de ser humano, desconsiderar as particularidades locais e vivenciais dos indivíduos e dizer que tal experimento feito no Japão com um punhado de pessoas pode ser válido para os brasileiros. Se for, muito bem. Se não for, era de se esperar. Claro que mais vale se basear em algo que tenha algum fundamento para ser extrapolado do que no achismo de um iluminado. Não podemos é elevar esse fundamento experimental à categoria de verdade transcendental da humanidade.  

Quando devolvi estas refutações ao rapaz, não tinha a pretensão de fazê-lo desacreditar na ciência que ainda acho um dos métodos mais grandiosos para se "aumentar de forma gradativa o conhecimento, e de elevá-lo, pouco a pouco, ao mais alto nível, a que a mediocridade do [nosso] espírito e a breve duração da [nossa] vida nos permitam alcançar."

Acabei de citar o homem que criou a nossa moderna forma de pensar ciência. O que as pessoas esquecem é dessa ressalva dele, não menos valiosa que o método que engendrou:

"Contudo, pode ocorrer que me engane, e talvez não seja mais do que um pouco de cobre e vidro o que eu tomo por ouro e diamantes. Sei como estamos sujeitos a nos enganar no que nos diz respeito, e como também nos devem ser suspeitos os juízos de nossos amigos, quando são a nosso favor."

Daí, todo bom cientista sempre olhar cabreiro para as teorias que duram demais.  


* O fato de haver uma lente entre mim e o objeto estudado já mostra o quanto é indireta a observação. Se levarmos ao extremo esse pensamento, o fato de eu só ter acesso à realidade exterior pelos órgão do sentido já mostra o quanto a minha forma de ver a realidade é uma filtragem. Conclusão: a realidade em si é uma pretensão intangível para mim.

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